Arquivo da categoria: Poemas

Voo intuitivo de Salut Navarro

Intuición

Salut Navarro Girbés, Valencia, España

En la abstración de mi pensamiento
te encuentro absorto en tu esencia,
araño las albas no vividas
agotadas ya em nuestras quimeras.

Un canto extrañamente seductor
me convierte en ave blanca
para llegar a tu puerto y besar
las alas que te permiten volar.

La tristeza me cubre y me descalza.
mi soledad bate em tu corazón
trazando arco Iris en la hierba negra,
y adviertiendo que mi destino es el mar.

Intuição

Na abstração de meu pensamento
te encontro absorto em tu essencia,
arranho as albas não vividas
esgotadas já em nossas quimeras.

Um canto estranhamente sedutor
me converte em ave branca
para chegar a teu porto e beijar
as asas que te permitem voar.

A tristeza me cobre e me descalça.
minha solidão bate em teu coração
traçando arco-íris na erva negra,
e advertindo que meu destino é o mar.

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Versão em Português e ilustração: C. de A.

Jamil Snege faz muita falta (Wilson Bueno)

A frase é simples, quase rotineira. Sempre aparece quando perdemos uma pessoa querida. Mas Wilson Bueno, no ano passado, quando sequer imaginava que também se juntaria a Jamil Snege, em algum canto da nova vida (em duplo sentido), a escreveu com a saudade de um amigo cultivado por quarenta anos. Jamil Snege faz muita falta.

Hoje, domingo, oito dias após o aniversário de Jamil, encontrei entre meus livros o seu O jardim, a tempestade (que Bueno considerava a sua melhor obra) e também bafejou aquela brisa de saudade.  Também fomos amigos por muitos anos e convivemos em sonhos e realidades. Uma delas foi o Tempo Sujo, de 1969, seu primeiro livro, por mim ilustrado e editorado com os recursos da época. Na dedicatória grafada n’O Jardim, em 19 de junho de 1989, Jamil fez um P.S. rememorativo: “Nosso Tempo Sujo comleta 22 anos em dezembro próximo. Você acha que ‘limpou’ alguma coisa? Abração, J.S.”

É possível, Jamil, porque temos que acreditar que sempre virão tempos melhores. E sua poesia ajudou a construí-los. Pois, como disse o também poeta Roberto Piva, que igualmente passou para o outro lado há pouco, “a Poesia não impediu Auschwitz. O poeta não existe para impedir essas coisas. O poeta existe para impedir que as pessoas parem de sonhar”. E o melhor da história é que os poetas não morrem. Tiram férias permanentes e seus versos continuam a trabalhar por eles, a limpar os tempos.

Feliz aniversário, Jamil! Porque, sem tirar os já passados sete anos de perenes férias, foram 71 anos de vida bem vivida e que sempre continuará a viver em seus textos. Como faremos com dois poemas, um deles em homenagem a Wilson Bueno. E na página de Crônicas vai o texto de Wilson Bueno, publicado quando você completou 70 anos.

Aos opacos

Jamil Snege, Curitiba (1939, 2003)


……..Deixem-me arder
……..Deixem-me queimar as asas
nesse vela,
nesse sol, nesse leiser que envenena
as couves embrutedidas
pela treva.
…….Deixem-me arder.
…….Se ofendo sua lógica,
sua prosódias, seus anéis
de sempre elegante curvatura,
esmaguem minha musculatura
e os ossos que a sustêm.
…….Mas me deixem arder
…….Deixem-me arder de infinito
nesse iníquo delíquio
de existir.
…….E se os ofendo,
soprem minhas cinzas,
derramem minha lixívia,
mas me deixem auferir
as estrelas como o úmero roto
açoita o músculo que seu vôo
desencanta.
…….Deixem-me luzir
definhar meu luminoso espanto
onde só lhes é permitido
sobraçar espasmos
e guarda-chuvas.
…….E seu eu venha a ferir,
opacos, o lusco-fusco
de seus baços,
o hálito de hortaliças,
o bolor de queijo
que amadurece em seus
atrios
absteçam-me de mil insultos
…….Mas me deixem incender.

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Osso para Wilson


Penso em Wilson Bueno
como um osso ao relento,
nu e núbil como um osso
a esmo.

Osso que se bastasse
de sua óssea alvura,
nu e núbil de sua própria
lua.

Osso que se recusasse
à sina que o paparica
e se adornasse de sua
própria adrenalina.

Osso à deriva, a dedilhar
seus venenos como uma
visita.

Osso Wilson Bueno
Ouço sua cítara.

De O Jardim, a tempestade. Jamil Snege. Curitiba: edição do autor, 1989.

Amor platônico

Um pouco de música e poesia não faz mal a ninguém. Encontrei por aí, ou melhor, no Youtube, uma música que fala em metáforas e amores platônicos, o que lembra posts anteriores. A música é da cantora Julieta Venegas, que cresceu em Tijuana, Baixa Califórnia, EUA. Iniciou sua preparação musical estudando piano clássico, a partir dos oito anos de idade.

Filha de pais mexicanos, Julieta foi a única de cinco irmãos que se dedicou à música, razão pela qual, além das aulas de piano, também tomou aulas de teoria, canto e violoncelo, tanto na Escola de Música do Noroeste, como no South Western College de San Diego. (Saiba mais em biografia) Abaixo a letra original, com uma versão em português que fiz, com o video do Youtube.

Amores platónicos

Julieta Venegas, Estados Unidos da América do Norte

No me acercaré a tu jardín,
Nunca tocaré tu flor,
Es mejor la fantasía que me dio,
Tu leve cercanía y su color.

Nunca sospechaste la metáfora,
Y lo que puede lograr,
Nunca entenderás da suavidad,
De lo que no sabe adonde va.

Prefiero amores platónicos,
Consuelo de tontos solitarios,
Prefiero amores imposibles,
Consuelo de haber perdido demasiado.

Y así,
Con tu imagen me iré,
De la mano de haberte deseado tanto,
Mejor,
Desenvaino una melodía,
Para hacerle los honores a tu fantasía.

Prefiero amores platónicos,
Consuelo de tontos solitarios,
Prefiero amores imposibles,
Consuelo de haber perdido demasiado.

Que revolución hay en mi corazón,
Y eso sin haberme acercado a tu balcón,
Si que maravilla es el desencanto,
Si hace que todo se vea mejor imaginado.

Prefiero amores platónicos,
Consuelo de tontos solitarios,
Prefiero amores imposibles,
Consuelo de haber perdido demasiado.

Amores platônicos

Não me acercarei de teu jardim,
Nunca tocarei tua flor,
É melhor a fantasia para mim,
Tua leve presença e sua cor.

Nunca suspeitaste a metáfora,
E o que pode alcançar,
Nunca entenderás da suavidade,
Do que não sabe onde chegar.

Prefiro amores platônicos,
Consolo de tontos solitários,
Prefiro amores impossíveis,
Consolo de haver perdido demasiado.

E assim,
Com tua imagem me irei,
Da ilusão de haver-te desejado tanto,
Melhor,
Desvelo uma melodía,
Para fazer-lhe as honras a tua fantasia.

Prefiro amores platônicos,
Consolo de tontos solitários,
Prefiro amores impossíveis,
Consolo de haver perdido demasiado.

Que revolução há em meu coração,
E isso sem haver me acercado a teu balcão,
Sim, que maravilha é o desencanto,
Se faz com que tudo se veja melhor imaginado.

Prefiro amores platônicos,
Consolo de tontos solitários,
Prefiro amores impossíveis,
Consolo de haver perdido demasiado.

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Em defesa da metáfora

Minha amiga Cassiana Lacerda, que conhece literatura como ninguém, mandou-me um e-mail em defesa da metáfora, cuja importância tentei diminuir no poema do post anterior. E também envia a advocacia musical de Gilberto Gil e sua composição Metáfora, que vai aqui para todos os nossos leitores.

Obrigado, Cassiana, por sua rápida intervenção. E saiba que eu também gosto das metáforas e de todas as figuras de linguagem, apesar do pedantismo etimológico grego da maioria delas. Elas são essenciais para a poesia, aasim como as cores para o pintor. Apenas fui mais áspero para tentar abrir caminhos para uma reflexão sobre a vida. Com suas transubstanciações e trivialidades.

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Metáfora

Gilberto Gil, Bahia, 1982

Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: “Lata”
Pode estar querendo dizer o incontível

Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: “Meta”
Pode estar querendo dizer o inatingível

Por isso, não se meta a exigir do poeta
Que determine o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudonada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível

Deixe a meta do poeta, não discuta
Deixe a sua meta fora da disputa
Meta dentro e fora, lata absoluta
Deixe-a simplesmente metáfora

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Eu, direto ao ponto

Metapoética

Cleto de Assis, Curitiba

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, em Ficções do Interlúdio


Por que metáforas, se a palavra real é mais objetiva?
Por que a ilusão de ouvir o céu a cantar,
se sabemos que nuvens ou o distante firmamento
só têm cores para mostrar e não sons maviosos?
Se sabemos que a metáfora faz a transposição de uma palavra para outra
por pura analogia de sensações,
por que não ficamos com a primeira, que é mais exata
e dimensiona de modo simples nossos sentimentos?
Ou serão a metáfora e a metonímia, além de figuras de linguagem
escapismos dos tímidos que não ousam enfrentar a palavra real
e por isso inventam figuras de linguagem?

Perdi em mim a criança que fui
e com ela foi embora a coragem de dizer que ainda sou criança
apesar dos visíveis sinais do tempo.
Mas isso não é metáfora, é puro cumprimento do ciclo vital
somado à vaidade de ser considerado um homem respeitável,
porque um homem respeitável não pode ser criança
a não ser por metonímia.
Uma música me diz que morremos um pouquinho em cada despedida,
e isso não é metáfora, é pura realidade
porque sempre estamos morrendo um pouquinho a cada momento,
diante de adeuses ou reencontros
e é preciso viver a vida
e ver sua beleza através da córnea
e da luz que ela filtra até a retina
e não com supostos olhos da alma.
Tivesse olhos a alma
e tivéssemos alma com olhos
para que carregaríamos
o magnífico par de olhos que fazem a luz convergir
e mostrar ao nosso cérebro que podemos enxergar a realidade
sem artifícios poéticos e com cores mais vivas?

Estendo a mão para que a alcance outra mão:
não preciso de palavras
nem enfeitá-las com metáforas
para dizer o que quero.

Curitiba, julho de 2010

Hoje é mais um dia de futebol

Pois é. A sonhada Copa do Mundo está em seu final. E prova que, em matéria de reboliço nacional, é mais forte que carnaval e eleição. Pois a festa do real início de ano brasileiro dura apenas quatro ou cinco dias, uma semana para os mais exagerados. E eleição é aquilo que sabemos: entusiasmo pouco, inteligência nenhuma. Já a copa, é um mês inteiro de folga. Quando os nossos Zagalos e Dungas escolhem uma seleção, é um Deus nos acuda. Todo mundo dá palpite, exigindo melhor estrutura. Tira esse, põe aquele, assim o Brasil vai perder, onde já se viu? Mas na copa da democracia (como seria bonito levantar a sua taça, com verdadeiro orgulho nacional, de quatro em quatro anos!) os técnicos da política escolhem quem bem lhes aprouver, aparece jogador que nunca calçou chuteira e nem sabe que uma bola é redonda e cheia de ar, e lá vamos nós às urnas, obrigatoriamente, votar em quem não merece. Puro masoquismo, só para podermos falar mal dos eleitos no próximo quatriênio?

Mas a Copa tem seus efeitos benéficos, pelo menos para o mundo da propaganda, no qual as multinacionais se vestem de verde e amarelo e são mais brasileiras que o Zé da Silva. Nunca se vende tanta bandeira e tanta patriotada. Diz-me a voz: “Miséria enfeitada”. E é isso mesmo, já que a festa futebolística ajuda a esconder nossas mazelas. Jamais perdoaremos um técnico que não leve a seleção ou qualquer time de várzea ao final vitorioso, mas tratamos com leniência os jogadores da Assembléia Legislativa, os juízes corruptos dos tribunais reais, os técnicos que dizem governar para um Brasil de Todos e só se preocupam com o time mais íntimo. Juiz de futebol que apita mal é ladrão e tem mãe de má conduta; governante que realmente rouba… ora, deixa pra lá…

Escrevo isso enquanto o Brasil se prepara para enfrentar a Holanda e tentar chegar à final. Já há menos movimento nas ruas, porque dia de jogo é feriado. Ouvi de um vendedor de telefones que as vendas caíram verticalmente durante a Copa. O dono de uma panificadora me disse que seu movimento baixou em 10%, que é o valor de sua folha de pagamento. Sempre ouvi história sobre a queda de produção na cidade de São Paulo, nas segundas-feiras, quando o Corinthians perde no domingo. No Brasil inteiro é a mesma coisa. Durante a Copa, mesmo ganhando,

brasileiro não trabalha
porque o trabalho atrapalha
toda a efusão do esporte.
E o Brasil, de sul a norte
em todos os seus quadrantes
só faz silêncio em instantes
de gol da outra equipe.
Com chuva e até com gripe
brasileiro vai à luta
mas luta sem produção.
Porque, afinal,
o BRASIL… IL… IL… IL… IL !…
é campeão.

Mas como este blog é de poesia e não de lamúrias políticas ou esportivas, vamos recorrer ao nosso correntista de Quedas do Iguaçu, Solivan Brugnara, para encaixar o futebol no mundo das musas.

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Esportes

Futebol europeu

Solivan Brugnara, Quedas do Iguaçu/PR


O brasileiro Noite
recebeu a bola no peito
dominou com acrobacias.
Correu.
Músculos magníficos
cobertos por uma pele cor do universo.
O pé regeu,
pastoreou a bola.
Samba, ginga de mestre-sala
entre miúras.
E chutou com telecinésia.
O que dividiu a multidão
em agonia e êxtase.

O grito das torcidas orientais


Para atingir a perfeição,
precisamos ter muitos defeitos.

Concentração é uma venda.

Tanto o carcereiro quanto
o cativo são prisioneiros.

Determinação
é uma intransigência maleável.

Verdades absolutas mentem.

De Jornal de Domingo, em Encantador de Serpentes, 2007

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Ilustrações: C. de A., com ajuda da Internet

Maurício Ferreira em dose dupla

Segunda-feira da ressaca de Saramago

Maurício Ferreira, Jaú, SP

Dever humano:
Perdoar o Judas
Eternamente.

Nenhuma culpa, nenhum rancor

Apenas gravidades de compaixão
Onde Jesus, Javé, e Alá
Batem bocha, pebolim e rock’n’roll.
Sem árbitro ou arbítrio,
Em alguma sauna da periferia do infinito.

Absolutamente inocentes
Da inesgotável estupidez
Tão nossa.

Pretensiosa pluma no nariz da metafísica.

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Uma pequena vitória do Mal

El gusto es la cualidad fundamental que resume
todas las otras. Es el nec plus ultra de la inteligencia.
Sólo por él residen en el genio la salud suprema y el
equilibrio de todas las facultades.
Isidore Ducassé – Conde de Lautreamónt – Maldoror


As lacerações do mundo distendidas em tripas noturnas
Unico livro lido por Jack the Ripper.
Becos de Londres
Pontes de Paris
Pampas do Uruguai.
Luar e lâmina.
Sempre.

Vai volta retorna
sangue profano,
sacristias blasfemas,
cuspo, gala, escarro
fio, linho, novena,
Sempre

Velas! A chama tremulando
rufadas de vento, doce pios de corujas, bicos sangrentos.
agonias de fome, estertores do devorado vivo.

Todas as belezas sanguíneas da natureza humana.

Rá-Rá Rá-Rá Rá-Rá Rá-Rá.
MaldororMaldororMaldororMaldororMaldororMaldororMaldororMaldoror!!!!!!!

Sua prisão de papel não te bastou.
ERGUE-TE.

Nas montanhas de vidro, concreto e açO
Destila seu veneno novamente,
Verás que tudo está mais difícil,
o homem evoluiu de crueldade em crueldade
E não com bom gosto.
mas prá TI, amante de tubaroas,
como quem finaliza a última casa do paletó,
basta apertar um botão.

Tantos átomos para queimar, não é verdade.
Doces delícias de desintegração em massa.
Bilhões de seres esperando, doce êxtase,
uma simples flexão de Teu dedO

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Ilustração: C. de A.

Eu quero, tu queres, Vera Lúcia queria…

Esse homem

Vera Lúcia Kalahari, Portugal

Queria esse homem escondido em ti mesmo,
Esse homem  de que tu és apenas uma sombra…
Queria os teus silêncios e os teus sonhos
E essa melancolia que t’envolve como um véu…
Queria o gesto vago que fizeste
Como quem afugenta uma lembrança amarga…
Queria o afago indiferente dos teus dedos
Desfolhando um livro ou escrevendo um poema…
E os pensamentos que às vezes passam um instante
Nos teus olhos, fazendo-te, medroso, cerrá-los um pouco
Para que não escape nada
Queria tudo de silencioso e íntimo, de impreciso e distante
Que ocultas, avaro, em tua grave solidão,
Essa solidão que mesmo nos instantes mais livres
E mais despreocupados, é a atmosfera que respiras,
A nuvem em que t’escondes,
Tua agreste e invisa solidão.
Queria as palavras que não dizes, que não vêm aos teus lábios,
Mais do que num leve e breve sorriso meio triste…
Queria um beijo da tua boca, em tua boca.
Um beijo em que estivesses fremente e palpitante,
Com os teus anseios e os teus mistérios revelados,
E teu corpo ardente estremecendo
De amor intenso, de entrega absoluta,
Na ânsia de revelar-se, de dar-se, de doar-se completamente…
Queria esse homem escondido em ti mesmo.

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Ilustração: C. de A.

A Sexta-feira da Paixão de Saramago

Morre José Saramago

Costuma-se dizer que, quando morremos, temos um encontro com Deus. E quem nele não acredita? Será bem recebido pelo que chamamos de Pai de Todos? Ou entrará simplesmente no eco cósmico, integrando-se ao pó das estrelas? Pode ser o caso do escritor português José Saramago, Nobel de Literatura, que encontrou seu ponto final (após abandonar milhões de pontos e vírgulas, à moda de Joyce) nesta sexta-feira, 18 de junho de 2010. Pessoalmente, gosto de alguns de seus textos, embora discordasse de suas posições políticas últimas. Quase reabilitou-se quando reconheceu publicamente que na ilha de Cuba os direitos humanos não são respeitados, notadamente com relação à liberdade de expressão. Teve a coragem, entretanto, de colocar-se contra as tradições religiosas, albergando-se na fé ateísta (existe?). Mas termina sua vida de quase nove décadas, as três últimas com maior dedicação à literatura, recompensada pelo reconhecimento internacional de sua obra. Nós, os ainda sobreviventes, ficamos curiosos: já do outro lado (existe?), Saramago se decepcionou com o que encontrou? Encontrou a resposta final: existe?Ou já estará satisfeito com a imortalidade que construiu na vidinha terrestre? Seguida à notícia de sua morte, publicamos a manifestação poética de nosso correntista Maurício Ferreira, visivelmente surpreso e entristecido com a ocorrência. Para completar a homenagem, o Saramago poeta, que pouca gente conhece. (C. de A.)

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O escritor português e Prêmio Nobel de Literatura José Saramago morreu nesta sexta-feira em sua casa em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, aos 87 anos. Segundo a família, a morte ocorreu por volta das 13h no horário local (8h de Brasília), quando o escritor estava em casa, acompanhado da mulher, Pilar del Río.

José Saramago havia passado uma noite tranquila. Após o café da manhã, começou a passar mal e pouco depois morreu, de acordo com informações da família.

Biografia

Prêmio Nobel de Literatura em 1998, primeiro escritor de língua portuguesa a obter a honraria, Saramago mostrou ao longo de sua vida uma paixão duradoura pela literatura.

Seus livros são marcados pelos períodos longos e pela pontuação em muitos momentos quase inexistente. Os artifícios formais são vistos como verdadeira barreira para vários leitores, mas outros se encantam com a fluidez de seus textos, sempre entremeados por reflexões fortemente humanistas.

Nascido em 16 de novembro de 1922, em aldeia do Ribatejo chamada Azinhaga, de família humilde, Saramago só veio a produzir sua primeira obra de sua fase mais madura em 1980, Levantado do Chão.

Dois anos depois, Memorial do Convento o colocou como um dos maiores autores de Portugal, posição confirmada com o lançamento do inventivo O ano da morte de Ricardo Reis, em que narra os dias finais do heterônimo de um dos pilares da literatura de seu país: Fernando Pessoa, em uma criativa mescla de fatos reais e imaginados.

Saramago era um autor prolífico. Além de romances, publicou diários, contos, peças, crônicas e poemas. Ainda em 2009, lançou mais um livro, Caim.

Esta obra retoma um personagem bíblico, subvertendo a versão oficial da Igreja Católica. Em 1991, seu Evangelho segundo Jesus Cristo dispôs de artifício semelhante. A “reescrita” do ateu convicto de esquerda não agradou aos religiosos, provocando grande polêmica em uma nação fortemente católica.

No ano seguinte, o livro foi indicado a um prêmio, mas o governo português vetou a candidatura. Insatisfeito, Saramago partiu para um “exílio voluntário” na espanhola Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde vivia desde 1993.

Outro de seus romances, Ensaio sobre a Cegueira, narra uma epidemia em que os personagens perdem a visão, enquanto uma mulher a mantém. A obra, uma das mais conhecidas do português, foi adaptada para o cinema pelas mãos do diretor brasileiro Fernando Meirelles. O filme foi exibido no Festival de Cannes. (Fonte: IG)

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Pô, Saramago?!

Maurício Ferreira, Jaú

Hoje o mundo ficou menos humano
Morreu o homem da virgula
E só nos restou o ponfo final.

Vontade imensa de chorar olhando sua foto, Saramago….
Você que combateu a vida toda a intolerância de qualquer fé
Era o único que considerava espelho…

Suficientemente humano
prá ao menos TENTAR!
salvar o homem de DEUS.

18 de junho de 2010

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Espaço curvo e finito

José Saramago, Portugal

Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.

(De Os Poemas Possíveis, Editorial Caminho, Lisboa, 1981. 3ª edição)

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Ilsutrações: C. de A.


Saramar, Paixão e Vida

Paixão

Saramar Mendes de Souza, Goiânia



Não quero o perfume de olhares
e os carinhos sussurrados.
Quero as sombras de unhas e dentes
e a fome dos noturnos
desenhando profundamente
laços, lanhuras, beijos
em fragor e perdição.
Quero o feroz desfazer-se em gemidos
a fragância da entrega,
os abismos de quem,
perdido em espinhos e sedas,
une pedaços como náufragos
até aportar como os amantes
no leito cansado dos dementes.

Junho 10, 2010

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Ilustração: Kevin Rolly