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Bom dia, Ano Novo!

Meu mantra

Nas várias religiões que cobrem o mundo há discussões infindas sobre o valor das orações repetidas. Fosse eu sacerdote (ou ainda melhor, um bispo) de uma delas, defenderia a repetição como a reiteração do desejo não alcançado, a insistência, a persistência, a reprodução e a multiplicação da vontade. “Ah, mas Mateus ensinou que não devemos multiplicar as palavras, como fazem os pagãos, que usam a força das palavras para serem ouvidos.” Segundo o apóstolo cristão, Deus sabe o que necessitamos, antes mesmo que peçamos a ele. Porém, prevenindo-se contra as dúvidas, ele ensinou a seus discípulos a rezar o Pai Nosso, tantas vezes repetido ao longo de todos os dias.

Mas entre nós, míseros mortais, a força da palavra deve ser usada à exaustão, já que os ouvidos dos poderosos são moucos, mesmo quando sabem, também à exaustão, o que necessitamos.

A oração, para mim, é um ato íntimo (como pregava Mateus), uma busca pelas forças recônditas de nosso próprio ser. Não é prova de abandono, mas de apego à vida, até em momentos em que a esperança é ínfima. Sobretudo, a oração utiliza a energia da palavra para também multiplicá-la em nosso interior. Desse modo, não é preciso ser religioso, no sentido de pertencer a uma determinada organização mística, para fazer uma oração. Noel Rosa fez uma canção em louvor a uma mulher amada e lhe deu um nome adequado: “Feitio de Oração”. E era (é) realmente uma oração, sem necessariamente ser dirigida a um ser supremo. Os pintores também rezam quando produzem seus quadros, porque retiram de dentro de si a energia da criação. Os poetas literalmente oram e predicam em seus poemas, construídos com a força da palavra.

Os budistas e outros religiosos orientais vão além das palavras para proferir suas orações, sempre em busca de um caminho energético. Fixam-se, em seus mantras, nos sons de palavras antigas, algumas incompreensíveis, cuja repetição e, possivelmente, a vibração ou onda sonora com que são produzidos criam vários efeitos sobre a pessoa que as emite ou, como creem os seus adeptos, entre o emissor e aquelas que são alcançadas por tais sons.

Repetir um mantra abre portais para o akasha, que seria, no nosso limitado entendimento ocidental, uma espécie de substrato espiritual, o cosmos, a quintessência universal.

Por isso, retomo um recado ao ano de 2010, publicado em dezembro de 2029 no Banco da Poesia, e dedico-o ao novo ano que abre agora suas portas. A releitura serviu para convencer-me que pouco mudou, nos limites da pátria amada, nem em 2010, nem em 2011. Os poucos avanços que conquistamos foram quase todos inerciais, produtos da energia social que não necessita de apoios oficiais para mover-se, ou de empurrões do mundo globalizado, que nos obriga a acompanhar ou copiar ações de outros países. Continuamos a ser meros exportadores de produtos primários (ou de commodities, como dizem os mais sofisticados) e de alguns semimanufaturados, sem agregar valor às nossas riquezas naturais. Temos pouco desenvolvimento tecnológico, porque nos faltam Educação e pesquisa científica. Recebemos afagos da vaidade quando anunciam que nos tornamos a oitava economia mundial e logo seremos a sétima, passando pelo Reino Unido e pela França, o que só nos distrai de outra verdade mais contundente: o Brasil ainda está na 84ª posição no índice de Desenvolvimento Humano, atrás de muitos países da América Latina, como Argentina, Chile, México, Uruguai, Cuba, Costa Rica, Panamá, Peru, Equador  e Venezuela. A cada novo governo, a cada novo ano, ecoam as promessas mântricas de prioridade para a Educação, combate à fome e à miséria (como se fossem coisas separadas), faxina para os malfeitos (mas nunca para todos os malfeitores). Continuam a ser mantras sem reverberações.

Eis-nos, pois, nascente ano de 2012, novamente embasbacados diante de ti, um novo ano aventuroso, cujas venturas podem se confundir apenas com leves ventos de esperanças. Arrepiados, por exemplo, quando se anuncia, já para janeiro, a troca do roto pelo esfarrapado na pasta da Educação, que deveria ser o ministério mais importante para qualquer governo. Temerosos, novamente, quando ainda perduram as estruturas políticas viciadas e os estratagemas indecentes para manter o poder de determinados partidos. Assombrados porque, diante de um novo ano eleitoral, quando iremos escolher novos prefeitos e vereadores, nada mais existe, em matéria política, que a mera vontade de se ganhar eleições, sob qualquer condição, com qualquer indivíduo, seja ele preparado para o trabalho público ou um virtual aproveitador do dinheiro público.

É hora, portanto, de repetir meu mantra, certo de que, em um ano qualquer mais radiante, conseguiremos fazer com que nossa sociedade nacional cresça e apareça –  mais séria, mais respeitosa e respeitada.

E não custa também repetir, apesar disto ser um velho clichê: Feliz Ano Novo para todos! (Cleto de Assis)

 Oração a 2012

2012,  que estás a chegar
tão cheio de esperanças, tal como teus irmãos passados,
venha até nós com certezas e realizações.
Faze-nos atingir o caminho da Justiça, em todas as suas direções
e realiza o milagre da multiplicação dos pães
sem o auxílio mesquinho de astuciosas dádivas politicóides,
mas alcançado por meio do Trabalho digno e recompensador.
Faze com que a Saúde seja também imperadora em todos os lares
e afasta principalmente as crianças das caliginosas névoas da tristeza
e da fome e da doença.
Acende a chama pentecostal do conhecimento
sobre todas as cabeças, por meio da nobreza da Educação e da alegria do Saber.
Livra-nos das promessas vazias dos homens e das mulheres que querem nos liderar
e encaminha-os ao cometimento de ações sérias e consequentes
com total respeito ao imposto nosso de cada dia.
Não os deixes cair nas tentações das propinas
e não lhes perdoes as suas ofensas, nem lhes dês a benção espúria da impunidade.
Unge-nos com o bálsamo da paciência
para que possamos suportar as falsidades, as descaradas mentiras,
os impropérios gramaticais dos horários eleitorais
e as ladainhas sem sentido dos salvadores da Pátria.

Amigo 2012, tu que vens com data certa para um novo exercício de Democracia,
faze com que ela permaneça entre nós,
senhora que é da Liberdade e da Justiça Social.
Ajuda-a a não ser usada para a prosperidade dos demagogos
ou para o gozo dos déspotas.
Mostra aos pretensos donos do poder que só ela salva
e pode nos garantir o direito de opinião e de expressão
sem termos que nos submeter à censura dos donos das verdades
ou ao estulto absolutismo de um único partido.
No período eleitoral, faze que, quando houver ódio,
possamos também falar de amor sem nos envergonharmos;
quando houver ofensa, que ela seja sucedida pela pacificação;
quando houver discórdia, que possamos remar a favor da união;
quando houver dúvida, que tenhamos de pronto o esclarecimento;
quando houver erro, que possamos chegar rápido à verdade;
quando houver desespero, ajuda-nos a manter a esperança;
quando houver tristeza, que se eleve a alegria;
quando houver trevas, que se faça a luz.

Sobretudo, aguardado 2012,
faze com que finalmente compreendamos o valor da Paz e do Trabalho
para que não precisemos mais suplicar por felizes novos anos .

Cleto de Assis – dezembro de 2009, renovado em dezembro de 2011.

Últimos dezembros

Vivemos um novo dezembro. Fim de ano, renascer de esperanças e renovação de promessas. Festas, comilanças, fome aqui e ali, bebedeiras, ressacas, fogos de artifício, ensaios de solidariedade. Declarações de amor e amizade que, muito provavelmente, serão esquecidas a partir de janeiro ou no tempo que correr após o próximo carnaval. Dizem os apocalípticos que será o último dezembro completo da humanidade, pois está marcada a data fatal do calendário Maia: 21 de dezembro de 2012.

O próximo ano será o ano do Armageddon, a batalha final prenunciada pela Bíblia.  Nostradamus também volta ser lembrado e tem gente que jura que ele (já usado para outras mortes do mundo, em épocas passadas) igualmente previu algo terrível para o próximo final de ano. Mas também há previsões científicas, que dizem ser 2012 o ano do fenômeno da Precessão, ou do alinhamento cósmico, no qual o eixo da Terra mudará seu ângulo em relação à galáxia. Prevê-se também a inversão dos polos da Terra, com cataclismos fantásticos, erupções vulcânicas, terremotos,  tsunamis e colossais tormentas solares, que causarão colapsos nas redes elétricas e eletrônicas.

O pior (ainda pode haver coisas piores do que os desastres anunciados?) será o deslizamento da crosta terrestre, desarranjando novamente a posição dos continentes. A vingança de Gea, por não sabermos dela cuidar. Ou de uma justiceira alienígena, Némesis, a deusa da vingança, uma estrela que poderá afetar terrivelmente a vida terrestre, devido a sua aproximação. Também com agenda marcada para 2012. E os asteróides, já vistos em produções holiudianas, que poderão (ou deverão?) chocar-se com nosso planetinha querido, igualmente no próximo ano?  Têm até identidade própria, alfanuméricas:  2003 QQ47 ou VD17 2004, monstros de pedra que podem por um ponto final na nossa vidinha nem sempre tão mansa como gostaríamos. Tudo isso sem falar no degelo total do polo norte, com suas consequencias imagináveis.

Os mais otimistas ( e ponha-se otimismo nisso) falam no início de uma nova fase para a humanidade, de conscientização universal e de abandono do egoísmo que, até agora, tem comandado nossa história.

Nós, que amamos a Poesia, mesmo quando ela se nos mostra triste e até trágica, preferimos acreditar que a humanidade, pouco a pouco, alcançará o caminho do equilíbrio social e da harmonia universal. Desastres sempre ocorreram e fazem parte da história natural do planeta. Enquanto eles não vem, preferimos acreditar que ainda haverá muitos dezembros felizes para muitos, infelizes para alguns. Dezembros luminosos, não necessariamente candentes devido a bombas ou asteróides vingadores.  Dezembros que continuarão a lembrar o simbolismo de um menino que renasce todos os anos para, depois de adulto, pregar paz e amor. Símbolo bom para religiosos e não religiosos.

Menino despertado, neste dezembro, pela crônica poética de Vera Lúcia Kalahari, por ela enviada lá de Portugal. Menino que lembra todos os meninos que fomos, que somos e que seremos, como o menino de João Manuel Simões, exposto no seu mais recente livro de poemas, Memórias Breves do Menino Antigo, sobre o qual escreverei mais tarde. Atrevo-me a emprestar o texto da amiga Vera Lúcia para dele fazer minha mensagem de Natal, endereçada a todos os amigos do banco da Poesia. (Cleto de Assis)

Crônica do Menino-Deus

Vera Lúcia Kalahari

Nasceste.
Chegaste num dia frio de sol cadente.
Dormirás sobre estrelas e trazias no cabelo o ouro que tiraras delas.
Nas mãos, um tesouro: o peso assustador, esmagador, do mundo…
Nos olhos, a pureza duma açucena, o brilhar de prantos que jamais choraste.

Nasceste. Não vieste para reinar entre pratas, ouro e pedras, como
aqueles que se intitulam teus seguidores.  Chegaste só, com a chuva
que tombava num telhado em ruínas. Agora, dormes num monte de feno
quente, cheirando a campo. Perto, tua mãe vela docemente com o peso
dum filho que é seu, mas que o mundo roubará.

Nasceste, menino, Homem-Deus, mas não ficaste.
Encontraste, em cada esquina, um Judas
para te trair e uma coroa de espinhos para te ferir com o peso dos
pecados a curvar-te, a enterrar-se até ao fundo do teu coração. Estás
em tudo, Menino-Deus…

Pena teres partido. Não teres mantido o teu
reinado, Tua humildade imensa de cordeiro, entre os homens.
Porque então, Menino-Deus, esta não seria a terra de rios intumescidos
de prantos e de gemidos.
E nós, não seriamos estes vermes rastejantes, de olhos suplicantes
virados para Ti, numa ânsia agônica de Te tocar, sem termos forças
para Te alcançar.

 

Feliz aniversário, com felizes silêncios de Eduardo Masullo

Eduardo Masullo, nosso correntista de Buenos Aires, está fazendo aninhos hoje.  Enviamos nosso abraço e comemoramos a data com seus canoros silêncios.

Las cosas de la vida

Eduardo Mazullo

Silencio, por Cleto de Assis

El silencio
A veces
Es un gato negro.
A veces,
Un tordo blanco.
A veces un sable con sueño.

Nunca es la misma cosa
Si una vez el silencio fue el invierno
Ya nunca el invierno será el silencio.
Hay tantas cosas en la vida
Que nunca el silencio quedará solo.
Ayer el silencio
Fue la pelota de fútbol perdida.
Hoy sabemos, que la pelota de fútbol
Ya nunca será el silencio.
Una cosa por la otra.
Dios es justo como mi tío Alberto,
Que me regaló todas las pelotas de la infancia.

Silencio fue mi papá.
Silencio mi mamá. Y los abuelos.
Ahora tengo muchísimo miedo
Porque uno de estos días
Silencio será mi corazón,
Y desde entonces
Seré silencio para siempre.

20/7/2010

As coisas da vida

O silêncio
Às vezes
É um gato negro.
Às vezes,
Um tordo branco.
Às vezes um sabre com sono.

Nunca é a mesma coisa
Se uma vez o silêncio foi o inverno
Já nunca o inverno será o silêncio.
Há tantas coisas na vida
Que nunca o silêncio ficará sozinho.
Ontem o silêncio
Foi a bola de futebol perdida.
Hoje sabemos que a bola de futebol
Já nunca será o silêncio.
Uma coisa pela outra.
Deus é justo como meu tio Alberto,
Que me deu todas as bolas da infância.

Silêncio foi meu pai.
Silêncio minha mãe. E os avós.
Agora tenho muitíssimo medo
Porque um destes dias
Silêncio será meu coração,
E desde então
Serei silêncio para sempre.

Tu mirada

Teu_Olhar_ilustração de Cleto de Assis

¿En qué cava oscura,
Húmeda y maravillosa,
Madura tu silencio?

Allí congrega
Otros silencios
Más antiguos,
Más nocturnos,
De los tiempos bárbaros
En que la lluvia
Era siempre
Un peligro.

Y el silencio
Sube por tu rostro
Como el vino
Dentro de ancha copa
Invertida de coñac
Hasta que tus ojos
Huelen a lo callado,
A lo húmedo, a lo maravilloso.

16/9/2010

Teu olhar

Em que cava escura,
Úmida e maravilhosa,
Matura teu silêncio?

Ali congrega
Outros silêncios
Mais antigos,
Mais noturnos,
Dos tempos bárbaros
Em que a chuva
Era sempre
Um perigo.

E o silêncio
Sobe por teu rosto
Como o vinho
Dentro de larga taça
Invertida de conhaque
Até que teus olhos
Cheirem a calado,
A úmido, a maravilhoso.

Sin título

Pés de outono, ilustração de Cleto de Assis

¿Qué es esa prisa
Que cruje veloz
Entre las hojas secas?

Cruje
El alma del otoño.

Hay un llanto
Que crece
Como hierba entre la piedra.

¿De quién es todo este silencio?

18/9/2010

Sem título

O que é essa pressa
Que estala veloz
Entre as folhas secas?

Estala
A alma do outono.

Há um pranto
Que cresce
Como erva entre a pedra.

De quem é todo este silêncio?

Os dois Mários utópicos

Em linha reta, menos de mil quilômetros os separavam. Um em Montevidéu, outro em Porto Alegre. Em linhas poéticas, nenhuma separação, a não ser de idéias individualizadas. Ambos buscavam a palavra simples, mas de enorme carga emocional. Ambos Mário. Um Benedetti, o outro Quintana. Ambos poetas que já se foram. Ambos menestréis do amor e da paz que ficarão entre nós eternamente.

Este post é dedicado a Manoel de Andrade, em regozijo à sua pronta recuperação.

Utopía

Mário Benedetti

Cómo voy a creer / dijo el fulano
que el mundo se quedó sin utopías

cómo voy a creer / dijo el fulano
que el universo es una ruina
aunque lo sea
o que la muerte es el silencio
aunque lo sea

cómo voy a creer
que el horizonte es la frontera
que el mar es nadie
que la noche es nada

cómo voy a creer / dijo el fulano
que tu cuerpo / mengana
no es algo más de lo que palpo
o que tu amor

ese remoto amor que me destinas
no es el desnudo de tus ojos
la parsimonia de tus manos

cómo voy a creer / mengana austral
que sos tan sólo lo que miro
acaricio o penetro
cómo voy a creer / dijo el fulano
que la utopía ya no existe
si vos  / mengana dulce
osada / eterna
si vos / sos mi utopía.

Utopia

Como vou crer / disse o fulano
que o mundo ficou sem utopias

como vou crer / disse o fulano
que o universo é uma ruína
ainda que o seja
ou que a morte é o silencio
ainda que o seja

como vou crer
que o horizonte é a fronteira
que o mar é ninguém
que a noite é nada

como vou crer / disse o fulano
que teu corpo / sicrana
não é algo mais do que apalpo
ou que teu amor

esse remoto amor que me destinas
não é o despir-se de teus olhos
a moderação de tuas mãos

como vou crer / sicrana austral
que és tão somente o que vejo
acaricio ou penetro
como vou crer / disse o fulano
que a utopia já não existe
se tu / sicrana doce
ousada/ eterna
se tu / és minha utopia

Versão: C. de A.

Ilustração: Cleto de Assis

Das Utopias

Mário Quintana

Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

de:  Espelho Mágico

Eudes Moraes: Multiverso ou um olhar realista do cotidiano

A Editora InVerso, de Curitiba, promove o lançamento, no próximo dia 22 de novembro (terça-feira) do livro Multiverso, do paulista-paranaense Eudes Moraes, com poemas que o autor define como feitos com “temas extraídos do cotidiano, colhidos de uma particular observação do comportamento humano”. São 80 poemas, nos quais Eudes busca, nas palavras, “cores e aromas, transitando por memórias e desejos”.

Paulista de nascimento, Eudes Moraes morou em Londrina por 16 anos, em Brasília por seis anos e reside em Curitiba há 32 anos. Graduado em Psicologia, Teologia, Filosofia e Direito, define-se também como escritor e poeta, com participações em vários livros. Publica artigos em jornais e revistas e gosta de exercitar, no Facebook, sua tendência polemista e de incitador à reflexão. Como empresário (atualmente CEO da empresa Kazatec), foi Diretor no Grupo empresarial INEPAR S/A, por 25 anos, e diretor-geral da Rádio CBN, em Curitiba. É membro do Círculo de Estados Bandeirantes, entidade hoje abrigada pela PUC/PR, fundada em 1929 por um grupo de jovens idealistas, muitos dos quais se tornaram figuras importantes da cultura paranaense, como Bento Munhoz daRocha Neto, José Farani Mansur Guérios, Benedicto Nicolau dos Santos e José Loureiro Fernandes, entre outros.

Para completar sua biografia, publicamos um poema seu, que soa como um libelo em versos diretos,  sem metáforas, no qual ele demonstra seu poder de observação crítica da vida que se (es)vai por aí.

Desejamos sucesso a Eudes, nessa sua empreitada pouco comum de empresário-poeta.

A morte dos mitos  

Eu despontava para a vida e ao longe vislumbrava
nomes de pessoas e figuras ilustres na sociedade,
que pareciam distantes e intocáveis como mitos.
Tinha a sensação de que com elas jamais teria afinidade.

Cresci. Comecei a ler e ver fotografias nos jornais,
vi autoridades, vultos da política e eclesiásticos.
Pessoas no poder e muitas delas endinheiradas,
pareciam ser muito especiais. Eram respeitadas.
Elas representavam os poderes constituídos,
de longe, pareciam probas e de caráter ilibado,
líderes sérios, competentes, incorruptos e eruditos.

Da distância em que eu estava, esses eram os meus mitos.
Da minha humildade, eu os via como modelo.
Via-os liderando, discursando, sendo entrevistados,
Suas opiniões eram regras a seguir, insidioso apelo,
Falavam palavras bonitas com gestuais combinados.

Passei pelas escolas e espaços fui conquistando,
fui me aproximando dos mitos e descobrindo
que eles não eram o que de longe aparentavam,
e muitos desses heróis por mim foram passando.
De família modesta, foi rápida a minha ascensão.
Não tendo posses, só pelo intelecto podia vencer.

De casa saí com quinze anos, num internato estudei.
A universidade da vida é difícil, uma escola do saber.
A vida não me foi fácil e desafios tive que romper,
imaginava que os melhores habitavam nas capitais.

Em Curitiba, via mitos no poder político e empresarial,
a partidos políticos me filiei — casas de vestais.
Jogo sórdido existe em entidades de classes,
fiz política, não tive estômago para tanta podridão!
Fiz futebol, não gostei do que vi, ouvi e como agem,
presenciei hipocrisia e jogo de poder na religião.

De deputados e governadores me tornei amigo,
fiz secretários, indiquei servidores para cargos.
À medida que me aproximava e com eles convivia,
mais desencantos e decepções eu reunia.

Morei em Brasília e mais perto do poder fiquei,
convivi naquela corte com autoridades da República,
fiz amizades nas embaixadas e pelas festas desfilei.

Vi o despreparo humano e fragilidades presenciei.
Os incompetentes são fracos, traidores e covardes,
foi aí que me dei conta do desvalor conceitual,
como se o conceito de um mito se desgastasse,
perdesse o brilho e o encanto se desmanchasse.

Poucos deixaram boas marcas em minha vida,
poucos os que, tendo defeitos, se agigantaram,
pelo caráter, probidade, distinção, pudor, honradez,
e o meu respeito, por seus princípios, conquistaram.

Mito é pessoa comum quando fica lado a lado,
mito é um incompetente que se escala para o poder.
O mito pode ser frágil, antiético, injusto e desumano,
na medida em que se aproxima ele vai nos enojando.

Com a convivência, as pessoas vão se revelando,
mostram seu lado podre e se corrompem na ganância,
são egoístas, desonestas e se perdem na vaidade,
tornam-se chatas, exibidas, cansativas, causam ânsia.

As pessoas se deterioram diante dos nossos olhos,
quando gostam do poder e na ostentação fazem ritos.
Se insuportáveis, fúteis, metidas e cometem delitos,
quebram o encanto, morrem como todos os mitos.

Carícias e palavras acariciantes de Alfonsina

Um mês após a morte de Alfonsina Storni (Argentina,  1892 – 1938), intencionalmente buscada em uma praia de Mar del Plata, um senador seu compatriota a homenageou com estas palavras: «Nosso progresso material assombra a nós e a estranhos. Construímos urbes imensas. Centenas de milhões de cabeças de gado pastam na imensurável planície argentina, a mais fecunda da terra; mas frequentemente subordinamos os valores do espírito aos valores utilitários e não conseguimos, com toda nossa riqueza, criar una atmosfera propícia onde pode prosperar essa planta delicada que é um poeta».

Não serão, certamente, as palavras momentaneamente sábias de um político que farão prosperar o jardim da poesia. As flores sempiternas são os poemas que se produzem e se reproduzem sem cansar ou corromper ouvidos e corações. Alfonsina se foi muito cedo, afogada em água e amor transbordante. E deixou-nos suas belas palavras, suas plantas delicadas, flores, muitas flores.

Para ver mais de Alfonsina, no Banco da Poesia, clique aqui e aqui.

Alfonsina y la mar Banco da Poesia

Ilustração de C. de A. sobre uma foto de Pilar Azaña (Espanha)

La caricia perdida

Se me va de los dedos la caricia sin causa,
se me va de los dedos… En el viento, al pasar,
la caricia que vaga sin destino ni objeto,
la caricia perdida ¿quién la recogerá?

Pude amar esta noche con piedad infinita,
pude amar al primero que acertara a llegar.
Nadie llega. Están solos los floridos senderos.
La caricia perdida, rodará… rodará…

Si en los ojos te besan esta noche, viajero,
si estremece las ramas un dulce suspirar,
si te oprime los dedos una mano pequeña
que te toma y te deja, que te logra y se va.

Si no ves esa mano, ni esa boca que besa,
si es el aire quien teje la ilusión de besar,
oh, viajero, que tienes como el cielo los ojos,
en el viento fundida, ¿me reconocerás?

A carícia perdida

Vai-se de meus dedos a carícia sem causa,
vai-se dos dedos… No vento, ao passar,
a carícia que vaga sem destino nem objeto,
a carícia perdida, quem a recolherá?

Pude amar esta noite com piedade infinita,
pude amar o primeiro que acertasse em chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, rodará… rodará…

Se nos olhos te beijam esta noite, viajante,
se estremece os ramos u. doce suspirar,
se te oprime os dedos uma pequena mão
que te toma e te deixa, que te alcança e se vai.

Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
oh, viajante, que tens como o céu os olhos,
no vento fundida, me reconhecerás?

Dos palabras

Esta noche al oído me has dicho dos palabras
comunes. Dos palabras cansadas
de ser dichas. Palabras
que de viejas son nuevas.

Dos palabras tan dulces que la luna que andaba
filtrando entre las ramas
se detuvo en mi boca. Tan dulces dos palabras
que una hormiga pasea por mi cuello y no intento
moverme para echarla.

Tan dulces dos palabras
?Que digo sin quererlo? ¡oh, qué bella, la vida!?
Tan dulces y tan mansas
que aceites olorosos sobre el cuerpo derraman.

Tan dulces y tan bellas
que nerviosos, mis dedos,
se mueven hacia el cielo imitando tijeras.
Oh, mis dedos quisieran
cortar estrellas.

Duas palavras

Esta noite ao ouvido me disseste duas palavras
comuns. Duas palavras cansadas
de ser ditas. Palavras
que de tão velhas são novas.

Duas palavras tão doces que a lua que andava
filtrando-se entre a ramagem
se deteve em minha boca. Tão doces duas palavras
que uma formiga passeia por meu pescoço e não tento
mover-me para expulsá-la.

Tão doces duas palavras
que digo sem querer: oh, que bela, a vida!
Tão doces e tão mansas
que óleos aromáticos sobre o corpo derramam.

Tão doces e tão belas
que, nervosos, meus dedos,
Se movem em direção ao céu, a imita tesouras.
Oh, meus dedos quiseram
cortar estrelas.

(Versões de C. de A.)

Conversa marcada com Eduardo Mazullo

Nuestra charla de hoy

Hablaremos hoy
De esa caricia que te sobrevuela
Y nunca te llega,
De ese silencio que no se toca,
De esa cosecha que no tuvo
Un amanecer de siembra
Y ahora no tiene sombra.

Hay millones de esas caricias,
Hay cada vez más
Y cada vez valen menos.

Los hombres solos
– y ni siquiera los hombres solos –
saben qué hacer con ellas.

Son una lluvia que no llovió,
Un silencio que no se oye,
Dos sillas idénticas que no se hablan.

¿Qué vamos a hacer con todas ellas?
¿Las fumigaremos con trinitarias?
¿Recuerdas las dulces trinitarias?
Nadie las recuerda.
Mejor dejar a las trinitarias olvidadas.
No olvides que los recuerdos
Son para olvidar, que las calles
son para que se las coma el pasto,
que los hombres son para que se los coman
los gusanos. O los hermanos.
que las miradas son para mirarse,
que las lágrimas…
que las lágrimas son para nada,
Que toda calle termina
por comerte a pedacitos
empezando por tus suelas.

Que de lo que es
Y de lo que será
Ya nadie podrá decir que fue.

Aunque te digan que los adioses
Se dan fuertes en este clima,
No olvides, no olvides esto:
Todos los adioses
Están perdidos para siempre
Entre un hueco negro
Y una estrella enana.

Nossa conversa de hoje

Falaremos hoje
Dessa carícia que te sobrevoa
E nunca te chega,
Desse silêncio que não se toca,
Dessa colheita que não teve
Um amanhecer de semeadura
E agora não tem sombra.

Há milhões dessas carícias,
Há cada vez mais
E cada vez valem menos.

Os homens solitários
– e nem sequer os homens solitários –
Sabem o que fazer com elas.

São uma chuva que não choveu,
Um silêncio que não se ouve,
Duas cadeiras idênticas que não se falam.

Que vamos fazer com todas elas?
As fumigaremos com buganvílias?
Recordas as doces buganvílias?
Ninguém as recorda.
Melhor deixar as buganvílias esquecidas.
Não te esqueças que as recordações
São para esquecer, que as ruas
São para que as coma o pasto,
Que os homens são para que os comam
os vermes. Ou os irmãos.
Que os olhares são para olhar-se,
Que as lágrimas…
Que as lágrimas são para nada,
Que toda rua termina
Por comer-te em pedacinhos
Começando por tuas solas.

Que do que és
E do que será
Já ninguém poderá dizer que foi.

Ainda que te digam que os adeuses
Se dão fortes neste clima,
Não esqueças, não esqueças isto:
Todos os adeuses
Estão perdidos para sempre
Entre um buraco negro
E uma estrela anã.

Versão/ilustração: C. de A.

Dia Nacional do Livro

Hoje, 29 de outubro, comemora-se o aniversário da Biblioteca Nacional, fundada por D. João VI em 1810, dois anos depois de haver chegado ao Brasil e fundado a Imprensa Régia. Nada mais justo, portanto, que o mesmo dia tenha sido consagrado ao Livro, apesar de nossa história não o ter adotado como elemento fundamental para o nosso desenvolvimento cultural. O Rei de Portugal, do Brasil e Algarves manteve severa censura à imprensa. Sob o selo da Imprensa Régia foi editado o primeiro livro no Brasil, “Marília de Dirceu”, de Tomás Antônio Gonzaga. É também fato a comemorar, pois o primogênito da imprensa brasileira foi um livro de poesia! Mas, além das publicações oficiais – inclusive um jornal denominado Gazeta do Rio de Janeiro – nada mais podia ser impresso sem autorização governamental. Mas havia dissidências: um exilado brasileiro, residente na Inglaterra, Hipólito José da Costa, lançou, em Londres, no dia 1 de junho de 1808, o Correio Braziliense, o primeiro jornal brasileiro, clandestino em sua chegada ao nosso país – apenas em outubro do mesmo ano, já que os correios e os transportes não eram tão eficientes. Uma curiosidade: seu editor proclama que o jornal fora criado para combater “os defeitos da administração do Brasil”, o que não é novidade para os brasileiros, passados mais de duzentos anos desse registro editorial. Não deixa de ser lamentável, também, o fato do Brasil só ter sentido o gosto da imprensa no início do Séc. XIX, enquanto outros países da América já a estavam desenvolvendo desde o Séc. XVI. Portanto, e o Livro e o Brasil? Castro Alves deveria ter escrito um poema com esse título, com o mesmo entusiasmo com que comemorou o nascimento da América e sua parceria histórica com o livro. Ou talvez não tenha encontrado razões para se entusiasmar, pois até um presidente que atravessou o portal do Séc. XXI já declarou, pelo menos em duas ocasiões, que não gosta de ler, porque a leitura lhe dá sono.

O certo é que o Livro, esse objeto ainda confeccionado em papel impresso, mas que já tem sucedâneos eletrônicos a pedir passagem, merece ser comemorado todos os dias, como o grande repositório do conhecimento e ferramenta indispensável n o progresso cultural.

Fazemos de Castro Alves o arauto dessa festa, na beleza de seus versos.

O Livro e a América

O Livro e a América - ilustração de Cleto de Assis

Talhado para as grandezas,
pra crescer, criar, subir,
p Novo Mundo nos músculos
sente a seiva do porvir.
— Estatuário de colossos —
cansado doutros esboços
disse um dia Jeová:
“Vai, Colombo, abre a cortina
da minha eterna oficina…
Tira a América de lá”.

Molhado inda do dilúvio,
qual Tritão descomunal,
o continente desperta
no concerto universal.
Dos oceanos em tropa
um — traz-lhe as artes da Europa,
outro — as bagas de Ceilão…
E os Andes petrificados,
como braços levantados,
lhe apontam para a amplidão.

Olhando em torno então brada:
“Tudo marcha!… Ó grande Deus!
As cataratas — pra terra,
as estrelas — para os céus.
Lá, do pólo sobre as plagas,
o seu rebanho de vagas
vai o mar apascentar…
Eu quero marchar com os ventos,
corn os mundos… co’os
firmamentos!!!”
E Deus responde — “Marchar!”

Marchar! … Mas como?…  Da Grécia
nos dóricos Partenons
a mil deuses levantando
mil marmóreos Panteons?…
Marchar co’a espada de Roma
— leoa de ruiva coma
de presa enorme no chão,
saciando o ódio profundo. . .
— Com as garras nas mãos do mundo,

— Com os dentes no coração?…
“Marchar!… Mas como a Alemanha
na tirania feudal,
levantando uma montanha
em cada uma catedral?…
Não!… Nem templos feitos de ossos,
nem gládios a cavar fossos
são degraus do progredir…
Lá brada César morrendo:
“No pugilato tremendo
quem sempre vence é o porvir!”

Filhos do sec’lo das luzes!
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes,
tereis um livro na mão:
O livro — esse audaz guerreiro
que conquista o mundo inteiro
sem nunca ter Waterloo…
Eólo de pensamentos,
que abrira a gruta dos ventos
donde a Igualdade vooul…

Por uma fatalidade
dessas que descem de além,
o sec’lo, que viu Colombo,
viu Guttenberg também.
Quando no tosco estaleiro
da Alemanha o velho obreiro
a ave da imprensa gerou…
O Genovês salta os mares…
Busca um ninho entre os palmares
e a pátria da imprensa achou…

Por isso na impaciência
desta sede de saber,
como as aves do deserto
as almas buscam beber…
Oh! Bendito o que semeia
livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
é germe — que faz a palma,
é chuva — que faz o mar.

Vós, que o templo das idéias
largo — abris às multidões,
pra o batismo luminoso
das grandes revoluções,
agora que o trem de ferro
acorda o tigre no cerro
e espanta os caboclos nus,
fazei desse “rei dos ventos”
— Ginete dos pensamentos,
— Arauto da grande luz! …

Bravo! a quem salva o futuro
fecundando a multidão! …
Num poema amortalhada
nunca morre uma nação.
Como Goethe moribundo
brada “Luz!” o Novo Mundo
num brado de Briaréu…
Luz! pois, no vale e na serra…
que, se a luz rola na terra,
Deus colhe gênios no céu!…

Castro Alves  – 1847-1871

O que é Poesia? (3)

O nosso baú de definições não para de crescer. Agora é a vez de Erly Welton Ricci colocar mais umas moedinhas poéticas neste cofre especializado que recolhe as infindas versões sobre esta arte.  Sua contribuição, além de estar aqui, foi também depositada no seu escaninho, na página especial.

poesia deve ser isso:
o que ferve e congela
o que assombra e desanuvia
o que apaga
e incendeia
acena
à cena vazia

poesia deve ser isso:
o que amalgama e fere
anátema do frio
o que crema e espalha
amassa, esfarela,
e entra no cio

poesia deve ser isso:
morfemas e lexias
qualquer sal
um risco
de difundir
a via
quase
abissal

Erly Welton Ricci

O que é Poesia? (1)

O nosso poeta Manoel de Andrade deixou momentaneamente a poesia em hibernação e mergulhou na prosa. Há vários meses se concentra em reunir memórias de sua peregrinação pelo Brasil e pela América Latina, quando assumiu um auto-exílio, na época do governo militar. Inconformado pela perda de um diário, em um dos últimos percursos de sua caminhada pelo continente, no qual registrava a memória daqueles dias de cavaleiro andante, Maneco (como o chamamos os amigos) tenta recuperar a riquíssima experiência em um livro de memórias com o título provisório de “O Bardo Errante”.
Recentemente, um blog de Portugal – Livres Pensantes, do Algarve –  descobriu seus poemas e passou a publicá-los, assim como artigos seus também publicados na rede. Feita a aproximação, M.A. cedeu um fragmento do livro ainda inédito, que pode ser lido aqui.

De certa maneira, podemos ver em Manoel de Andrade um lampejo de Telêmaco, filho de Ulisses, descrito por Homero também como alguém que andou “errante por muitas terras, viu as cidades de numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes; e, por sobre o mar, sofreu no seu coração aflições sem conta, no intento de” projetar sua voz em direção à liberdade e à solidariedade humana.

Cumprimentando-o por mais essa conquista de sua odisséia poética, fazemos uma homenagem com a publicação de um poema seu, ainda inédito na nuvem internética. Como numa sequencia ao post anterior, ele procura respostas para a eterna pergunta: o que é Poesia?

O que é a poesia…, meu irmão?

a Maria da Graça Andrade

A poesia, Gracinha
não é somente teu sonho
tua paixão de menina…
é a respiração suspensa
por tudo que desatina
é tua voz de criança
o abc que te ensina
a soletrar esperança
é a região proibida
para os que não sabem ver
é onde me despojo e morro
pra me sentir renascer.

A poesia, Gracinha
é cada grão que germina
é o corpo do camponês
inclinado sobre a terra
semeando a própria dor
são os ombros do proletário
suportando no salário
o peso imenso da vida.

A poesia, Gracinha
é o nosso maior pecado
é a flor que o homem pisa
neste mundo devastado
é tudo que agoniza
pelo nosso esquecimento
é nossa vida vivida
além deste eterno momento
é a fome de cada dia
protelada sempre em vão
é a própria sede da terra
sem a chuva de verão.

A poesia, Gracinha
está na raiz do amor
em toda coisa criada
e no ato do Criador
está no macho sobre a fêmea
no pólen gerando a flor
na jornada das abelhas
na flor transformada em mel
está no salto incontido
do filhote em busca do céu
no vôo da mariposa
latente numa crisálida.
Por traz da humana  crueza
a poesia, Gracinha
é o amor parindo a vida
no ventre da natureza.

A poesia, Gracinha
são teus olhos debruçados
numa aurora de verão
é o vulto da minha dor
boiando na solidão
é minha infância num tempo
que o rio escorreu pro mar
é o amor feito  lenha
ardendo no teu olhar
é a rubra flor do teu corpo
desabrochando o desejo
a inocência transformada
numa árvore de beijos
é o lirismo que assoma
no rosto da minha amada
quando meu canto ilumina
os passos da madrugada
é o nosso olhar batendo
nos olhos de quem se amou
a vida buscando a gente
no que a saudade deixou.

A poesia, Gracinha
é minha forma de morrer
quando tenho que cantar
toda dor que me transtorna
é a angústia de te dar
meu canto desfigurado
pelo áspero fardo de dor
que amarga meu sorriso
ao sentir que desfaleço
quando contemplo meu povo
com suas mãos algemadas
caminhando para o abismo
nesta pátria engatilhada
é este jeito de sentir
minha dor multiplicada
pela fé que não me mude
quando o asfalto se mancha
com o sangue da juventude.

A poesia, Gracinha
é o delírio de ver
o homem ensaiar tão alto
a dimensão do seu salto
e a tristeza de saber
que embaixo tanto lhe falta
tornando assim prematura
a vertigem  do astronauta.

A poesia, Gracinha
é uma canção operária
trabalhando solitária
na reconstrução do homem.
É a palavra feita canto
o canto feito esperança
de todo pão repartido
no gesto amplo e fraterno
de um tempo enfim ressurgido.

A poesia, Gracinha
se a mim cabe definir…
é o clarim que anuncia
ao homem que ainda um dia
cansado dos seus enganos
despertará comovido
garimpando atrás dos anos
a fala imensa do amor.

A poesia, eu te digo,
é o gesto dilatado
de toda mão estendida
é o doce sabor dos frutos
a face amarga do mundo
a eterna canção da vida.

Curitiba, outubro de 1968
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Iustração: C. de A.