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O Poder do X

J. B. Vidal, maiêutico, faz seu depósito

Posso dizer que o Banco da Poesia tem o dedo de J. B. Vidal, o poeta e editor de Palavras, Todas Palavras (http://palavrastodaspalavras.wordpress.com/). Foi a ele que, durante a Semana da Poesia do ano passado, organizada por Manoel de Andrade, revelei a primeira idéia: organizar uma cooperativa de poetas. Depois, mais uma influência do poeta auto-desterrado (que inveja!) na Ilha do Destêrro – a sua prolongada ausência na Internet, durante as chuvas de verão que quase arrasaram Santa Catarina e não permitiram que Vidal instalasse o seu QG eletrônico para prosseguir seu prolífico trabalho de blogueiro protetor da Poesia.

De idéia em idéia, surgiu o Banco da Poesia, mas como simples ponto de encontro de poetas e de amantes da poesia. E, para alegria nossa, Vidal manda seu primeiro depósito, um poema com arcabouço mitológico, no qual expressa reflexões existenciais, pedindo intervenção aos deuses do Olimpo. Bem vindo seja, não só como poeta e amigo, mas como padrinho do Banco. Para saudá-lo, reuni, na montagem ilustrativa, os deuses invocados.

MAIÊUTICO

maieutico1
avejão helênico devasso a Hélade anosa,
perscruto Héstia, atenso para copular cioso,

tempestades de parêmias assolam a fleuma,
desértico, acuo na abóbada célica

incidências de ardis no Templo,
inerme ausência de Eros,

zeugmas pairam sobre pélagos,
imanes ofídios balétam virtuosos,

deuteragonista no drama litúrgico,
postergado por Zeus, exsolvido no Olimpo,

Zeus! Ares! Eros! onde estais? por que a indiferença?
novos Titãs fazem guerras de outra essência,
átomos divisos, gases letais descem dos céus!
Hélade existe, também morrem os seus!
amada Héstia, socorra-me com tuas virgens,
permita, por um instante, ser um deus!

retorno exaurido desta viagem reminiscente,
deixei-me levar como se de fato fosse,
ilusão de não estar onde estou e não me sinto,
morre em mim tudo que sonho, nada fica pra depois,
sentidos, pensamentos, escorrem pelas carnes,
resta o tédio, a vontade  de não-ser e abandonar-me

J. B. Vidal
inverno de 2000

Brasil, parabéns pra você!

Ontem foi comemorado o Dia Mundial dos Bombeiros e hoje (22/04) teremos que convocá-los para apagar as 509 velinhas do bolo de aniversário do Brasil. Apesar de tantas, elas representam apenas cinco séculos de desenvolvimento cultural, com alguns apagões no meio. Já começamos atrasados: foi só em 1530 que a coroa portuguesa passou a se interessar por estas terras descobertas por Cabral. Há muito que falar sobre a Terra de Santa Cruz, a Pindorama que os primeiros brasileiros estão redescobrindo e loteando. Mas hoje é só dia de festa. Para comemorar, postamos um vídeo produzido pelo Sebrae, há dois anos, que mostra a nossa diversidade cultural, por meio do Hino Nacional. Parabéns, Brasilsão!

Dia de Gaia

Hoje (22/04) festejamos o Dia da Terra. E, pelo menos uma vez por ano, refletimos sobre nossas responsabilidades como inquilinos deste Planeta. A tradição cultural da humanidade parece, nos ter dado, tal qual James Bond, licença para matar. Se sociologicamente definimos cultura como tudo o que é aprendido e partilhado por membros de um determinado grupo, o que cria identidade ao grupo a que pertençam, filosoficamente a concebemos como o conjunto de ações humanas que contrastam com a natureza ou com o comportamento natural, isto é, tudo o que o ser humano faz para alterar a natureza e adaptá-la – material ou espiritualmente – às suas necessidades de sobrevivência. Esses conceitos podem ser interpretados de maneira a proteger somente a vida humana e menosprrezar noosa indispensável interação com a terra. Se entendêssemos, desde o princípio, que somos parte da natureza e não seus senhores, teríamos uma convivência mais harmônica com o meio ambiente e, por extensão, com nossos semelhantes.

Dois momentos de reflexão: um poema de Fernando Pessoa/Ricardo Reis e um trecho do livro de Robert Russel sobre nossa relação com o Planeta. C. de A.

folhasevento3

A

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde,
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento.

Tentemos, pois, com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes,
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o apaga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?

A HUMANIDADE EM GAlA

Se a biosfera inteira evoluiu como um único sistema vivo, no qual todos os inúmeros subsistemas desempenham papéis diversificados, mas mutuamente dependentes, então a humanidade, sendo um subsistema desse sistema planetário maior, não pode ser dele apartada nem tratada isoladamente. Qual é, consequentemente, a função da humanidade em relação a Gaia?

gaia

Há comumente duas respostas contrárias a esta pergunta. A primeira afirma que a humanidade é como um vasto sistema nervoso – um cérebro global, em que cada um de nós seria uma célula nervosa individual. A segunda possibilidade, mais pessimista, é a de que nós, seres humanos, somos semelhantes a algum tipo de câncer planetário.

No que tange à primeira resposta, a sociedade humana, da mesma forma como o nosso cérebro, pode ser vista como um enorme sistema de coleta de dados, comunicação e memória. Nós, seres humanos, nos juntamos em aglomerados de cidades e metrópoles de maneira semelhante à aglomeração de células nervosas em gânglios num vasto sistema nervoso. Para unir os “gânglios” e cada uma das “células nervosas” existem vastas redes de informação.

Na sociedade, os sistemas mais lentos de transporte – como os serviços postais, em que itens específicos são enviados a diferentes partes do sistema – assemelham-se às redes relativamente lentas de comunicação química do corpo, e.g., o sistema hormonal. Por sua vez, as redes muito mais rápidas de telecomunicação eletrônica (telefones, rádios, computadores etc.) são como os bilhões de minúsculas fibras que unem as células nervosas no cérebro.

Num dado instante qualquer, há milhões de mensagens zunindo pela rede global, assim como no cérebro humano incontáveis mensagens estão continuamente indo e vindo em altíssima velocidade. Nossas bibliotecas e diversos outros arquivos de informação, poderiam ser vistos como parte da memória coletiva de Gaia. Através da linguagem e da ciência, nós conseguimos entender muito do que ocorre ao nosso redor, monitorando o comportamento do planeta como o cérebro monitora o do corpo. Poderíamos ver as culturas do Oriente e do Ocidente como os dois hemisférios do cérebro de Gaia – o esquerdo mais racional/intelectual e o direito mais intuitivo. E a nossa busca de conhecimento poderia ser o modo de Gaia saber mais sobre si mesma e sobre o universo em que vive.

Muitos dos paralelos acima tratam das funções mentais superiores – pensamento, conhecimento, percepção, consciência. Estas funções estão associadas ao córtex do cérebro humano, uma fina camada de células nervosas que envolvem o cérebro por fora, de modo que talvez fosse mais exato assemelhar a humanidade ao córtex do planeta.

Em termos evolucionários, o córtex é um acréscimo relativamente tardio, tendo se desenvolvido principalmente nos mamíferos. Ele não é necessário para manter a vida; o córtex de um animal pode ser extirpado e seu coração, pulmão, sistema digestivo e metabolismo prosseguirão intactos. De maneira semelhante, o planeta Terra sobreviveu perfeitamente bem sem a humanidade por mais de quatro bilhões de anos, e poderia continuar muito bem sem ela.

Isso nos traz à segunda possibilidade, a de que a humanidade talvez seja alguma forma de tumor maligno de erupção recente e que o planeta estaria melhor sem ela. Esta possibilidade ocorreu a Edgar Mitchell* ainda na lua. Imediatamente após o sentimento de identidade com o planeta como um todo, veio-lhe o sentimento oposto, “de que debaixo daquela atmosfera azul e branca havia o crescente caos que os habitantes da Terra vinham gerando entre si. A população e a tecnologia estavam rapidamente fugindo do controle dos homens. A tripulação da ‘espaçonave Terra’ parecia ter virtualmente se amotinado contra a ordem do Universo”.

A analogia com o câncer não pode ser ignorada. A civilização moderna parece estar carcomendo indiscriminadamente a superfície do planeta, consumindo em décadas recursos minerais que a própria Gaia herdou bilhões de anos atrás. Ao mesmo tempo, a humanidade ameaça destruir a estrutura biológica que levou milhares de anos para ser criada. Grandes florestas, essenciais para o ecossistema, parecem devoradas por traças; espécies animais estão sendo caçadas até a extinção; rios e lagos tornam-se amargosos, e grandes áreas do planeta vão sendo transformadas em deserto pela mineração e pelo concreto das cidades. De fato, uma fotografia aérea de qualquer grande metrópole com seus subúrbios espraiados lembra muito o modo como certos cânceres crescem no corpo humano. A civilização tecnológica realmente assemelha-se a um virulento tumor maligno que devora cegamente a sua própria hospedeira ancestral num ato egoísta de consumpção.

Essa é uma visão que parece opor-se à idéia de que a humanidade constitui algum tipo de cérebro global. Todavia, é inteiramente possível que ambas as concepções do papel da humanidade em Gaia sejam válidas. Talvez nós sejamos parte de algum sistema nervoso global que atualmente atra¬vessa uma fase extremamente rápida de desenvolvimento; talvez sejamos para o planeta tudo o que nossos cérebros são para nós. Entretanto, num estágio extremamente crítico, este sistema nervoso parece ter se descontrolado, ameaçando destruir o próprio corpo que sustenta a sua existência.

Se, portanto, pretendemos desempenhar nosso papel como uma parte do cérebro planetário, teremos de sustar o nosso comportamento deletério e reverter nossas tendências negativas. Para tal, é imperativo que modifiquemos, da maneira mais radical concebível, as nossas atitudes perante nós mesmos, perante os outros e o planeta como um todo.

Peter Russel**: O Despertar da Terra – o cérebro global. São Paulo: Cultrix, 2005
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Notas

* Edgar Mitchell – astronauta norte-americano, piloto do módulo lunar Antares, na missão Apollo 14 (1971), foi o sexto ser humano a pisar na Lua.
** Peter Russell (1946) é um autor britânico e produtor de filmes sobre estudos da consciência, espiritualidade e o futuro da humanidade. Na Universidade de Cambridge, estudou Matemática e Física Teórica. Mas, em seguida, tornou-se fascinado pelos mistérios da mente humana e mudou seu interesse científico para a Psicologia Experimental. Perseguindo esse objetivo, viajou à Índia para estudar meditação e filosofia oriental, e, no seu retorno, iniciou uma extensa pesquisa sobre Psicologia e Meditação. Seus principais livros: The TM Technique, The Upanishads, The Brain Book, The Global Brain Awakens: Our Next Evolutionary Leap, The Creative Manager: Finding Inner Vision and Wisdom in Uncertain Times, The Consciousness Revolution, Waking Up in Time: Finding Inner Peace In Times of Accelerating Change, e From Science to God: A Physicist’s Journey into the Mystery of Consciousness.

21 de abril

Hoje é quase domingo. Feriado nacional, quando se enforca o trabalho. Mas não foi para gerar um feriado que Tiradentes foi enforcado.

Conforme cantou Sérgio Porto, o Estanislau Ponte Preta, “Joaquim José / que também é / da Silva Xavier / queria ser dono do mundo/ e se elegeu Pedro II”.

Embora o Crioulo Doido estivesse fora da razão (daí a razão para o epíteto), o certo é que um feriado quase no meio da semana é que é doido. O dia de ontem já foi enforcado em muitos lugares. Municípios fizeram ponto facultativo (você sabe, é aquela data em que assina o ponto quem quer e, por princípio, ninguém quer), escolas fecharam, para aborrecimento de muitos pais que tiveram que emendar sábado, domingo, segunda e terça com a presença das crianças em casa.

Mas não deixemos de relembrar a história de Tiradentes, em cujo dia também se comemora o Dia da Latinidade (quem lembrou dele? Só o Chávez, quando presenteou o já rançoso livro do Eduardo Galeano ao Barack Obama); o aniversário de Brasília (inaugurada em 21 de abril exatamente porque Juscelino queria homenagear um mineiro ilustre); o aniversário de Roma (que não tem nada a ver com Tiradentes, mas em Brasília, na Praça dos Buritis, bem em frente ao palácio do governo distrital, existe uma réplica da Loba com Remo e Rômulo, presente da capital da Itália à capital brasileira –Brasília e Roma são cidades irmãs, devido à coincidência natalícia); Dia Mundial do Bombeiro, homenagem mais que justa (mas sempre apagada – perdão pelo trocadilho – diante da homenagem ao protomártir da Independência), e, ainda no Brasil, onde habita um povo que adora heróicos feriados retumbantes, o Dia da Polícia Civil, o Dia da Polícia Militar (que, possivelmente, serão os únicos a trabalhar neste feriado),  Dia do Metalúrgico (terá Lula lembrado de seus companheiros de antanho?) e, finalmente, o  Dia do Têxtil (que, de certa forma, colabora com a confecção das bandeiras hasteadas no dia de hoje).

Brincadeiras à parte, parabéns a todos os homenageados. Como Tiradentes é o grande nome do dia, vamos homenageá-lo com poesia de sua maior cantora, Cecília Benevides de Carvalho Meireles (1901-1964), em seu épico Romanceiro da Inconfidência, do qual reproduzimos um trecho (três fragmentos de falas). C. de A.

Do Romanceiro da Inconfidência

Cecília Meirelles
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Não posso mover meus passos
Por esse atroz labirinto
De esquecimento e cegueira
Em que amores e ódios vão:
– pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
– avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
– descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.

Ó meio-dia confuso,
ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem condena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
Cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados …
– liras, espadas e cruzes
pura cinza agora são.
Na mesma cova, as palavras,
e o secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentiras e verdade estão.

ceciliameirfelesNão choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta nossa aflição.
Choraremos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em pólos inexoráveis
de ruína e de exaltação.
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão!

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Ilustração: Detalhe do Painel Tiradentes, de Cândido Portinari – Memorial da América Latina, São Paulo

Feliz Páscoa, com Pêssankas

pessankas

Escolhi a Pêssanka como tema para esta Páscoa por dois motivos. O primeiro é sua integração à cultura do Paraná, por meio dos ucranianos que para cá vieram, a partir de 1895. O outro motivo é a sugestão que ofereço sobre esses aparentemente exóticos desenhos feitos com extrema delicadeza em ovos de galinha. Ou de codornas, gansas e até de avestruzes. Ao examinar variadas pêssankas e aprender sobre a rica simbologia que dá origem a suas formas e cores, penso em cada peça muito além de seu significado artesanal. Sugiro, sem exagero, que estamos diante de uma nova forma de poesia, ou seja, o POEMOVO. Ou, tomando a raiz grega, POEMÔON? Ou com a raiz latina – POEMOVUM? Pois se temos o poegrama, o poetrix, por que não o poemovo?

Pode parecer brincadeira, mas não é. Peguemos a etimologia do vocábulo pêssanka, originado no verbo pessaty, que significa escrever. E a arte da pêssanka consiste não só em pintar um ovo, mas, em primeiro lugar, escrever sobre o ovo uma mensagem promissora. Para isso, são utilizados grafismos variados, cada qual com seu significado, como pode ser visto no quadro abaixo. Cada forma, cada cor, está impregnada de um simbolismo que, por sua vez, quer gerar sentimentos positivos em quem os vê. Mas não são apenas símbolos plásticos. Há uma escrita simbólica usada para dizer algo: isto é poesia.

Aliás, essa tese já foi defendida até em trabalho apresentado em um encontro de pesquisadores de artes plásticas (Analu Steffen, mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ), no qual a autora chama as pêssankas de “ovos escritos ou poemas imagéticos”.

É claro que há ovos simplesmente decorados com figuras geométricas e cores escolhidas ao acaso, apenas para se conseguir uma composição agradável. Mas as legítimas pêssankas são cheias de simbolismo, tal como em um poema, no qual as metáforas abrem os poros da realidade e mostram – ou tentam mostrar – o dentro, o espírito, a essência. Isto é poesia.

O simbolismo começa no objeto utilizado para essa forma de expressão, o ovo. Ele é considerado um símbolo da perfeição, por sua forma geometricamente perfeita, cuja curvatura se estrutura para proteger a cria de fora para dentro e oferecer pouca resistência de dentrro para fora, poupando as forças do nascituro. E mais: a forma do ovo também se encaixa no conceito da Proporção Áurea, ou seja, a relação entre sua altura e sua largura se aproxima do número φ (phi), 1,618 (leia, abaixo, o interessante texto de Rubem Alves sobre o produto avícola). Mesmo que olhemos um ovo com olhos de glutão, imaginando as várias possibilidades gastronômicas que esse saboroso alimento oferece, é preciso, sobretudo, reconhecê-lo como portador de vida nova. Um ovo, portanto, simboliza o princípio de todas as coisas, a criação da vida. Ele está em todas as tradições religiosas, das mais antigas às contemporâneas.

Ao lembrarmos as pêssankas, fazemos uma homenagem à colônia ucraniana que trouxe para o Paraná estas e tantas outras tradições bonitas. Aliás, um belo programa de Páscoa é visitar o Memorial da Ucrânia, erguido no Parque Tinguí, em Curitiba. Lá podem ser vistas peças do artesanato ucraniano e quadros com poemas da paranaense Helena Kolody (1912-2004), filha de imigrantes ucranianos que se conheceram no Brasil.

Conheça mais sobre as pêssankas e seu simbolismo em http://www.girafamania.com.br/europeu/materia_ucrania.htm .

Sigificados dos símbolos das Pêssankas

Pesquisa de Jeroslau Volochtchuk e Waldomiro Romero,Curitiba, 1984

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Feliz Páscoa para todos!

E releiam o belo poema de Manoel de Andrade  (clique aqui), publicado neste blog, sobre o momento doloroso que, segundo a tradição cristã, antecedeu o domingo da páscoa, naquele início de nossa era.

C. de A.


Reflexões sobre o Ovo

Rubem Alves

Em longo texto escrito para sua netas, o escritor e filósofo Rubem Alves fez as  observações seguintes.

“O corpo da galinha sabe muito de geometria. Foi o ovo que me contou. Porque o ovo é um objeto geométrico construído segundo rigorosas relações matemáticas. A galinha nada sabe sobre geometria, na cabeça. Mas o corpo dela sabe. Prova disso é que ela bota esses assombros geométricos.

rubem_alves5Sabe muito também sobre anatomia. O ovo não é uma esfera. Ele tem uma parte mais grossa e uma parte mais fina. Há uma razão físico-anatômica para isso. É a mesma razão por que os pregos têm uma ponta fina: para entrar melhor no buraco. Você já enfiou uma linha no buraco de uma agulha? Primeiro é preciso afinar a ponta da linha com saliva e dedo. É a ponta afinada da linha que entra no buraco da agulha. Depois que a ponta fina passa pelo buraco, é fácil puxar a linha, fazendo passar a parte grossa. Pois o ovo tem de ter uma ponta fina para facilitar a sua passagem pelo fiofó da galinha. Se não tivesse a ponta fina ia ser mais difícil, ia doer mais…

O corpo das galinhas é também um grande conhecedor de arquitetura. A forma do ovo dá resistência máxima aos seus frágeis materiais. Se o ovo fosse chato ele se quebraria quando a galinha se deitasse sobre ele, para chocar os pintinhos. Quando eu era pequeno eu e os meus amigos brincávamos de pegar um ovo, ponta fina na palma da mão, ponta grossa contra os dedos pai-de-todos e o seu-vizinho (espero que você tenha aprendido o nome dos dedos, minguinho, seu-vizinho, pai-de-todos, fura-bolo, mata-piolho) e apertar. Pois o ovo não quebrava. Mas não vá fazer essa experiência com esses ovos brancos, de granja. São ovos degenerados. Esses ovos se quebram, só de olhar. A forma do ovo faz com que as forças que sobre ele se exercem não o quebrem. É o mesmo princípio que os arquitetos usam para fazer arcos de janela, de portas e abóbadas gigantescas das catedrais em estilo românico, antes do concreto e do ferro. Se você não sabe o que é o estilo românico, pergunte ao seu professor de história. Aquilo que os arquitetos aprenderam depois de muito pensar, o corpo das galinhas sabe por nascimento, sem precisar pensar.

Mas há ainda um outro assombro: a casca do ovo não pode ser muito mole porque, se fosse, o ovo se quebraria quando a galinha pisasse nele. A casca tem de ser dura o suficiente para suportar o peso da galinha, sem quebrar. Mas a casca também não pode ser muito dura. Como vocês sabem, as galinhas “chocam“ os ovos. Deitam-se sobre eles por 21 dias para, com o seu calor, realizar a transformação da gema em pintinho. Quem foi que ensinou isso para a galinha? Ninguém. O corpo dela nasceu sabendo. A idéia já está lá. Ao cabo de 21 dias os pintinhos estão prontos para sair. Para isso eles têm de quebrar a casca do ovo com o bico. Ora, se a casca do ovo fosse muito dura o pintinho não conseguiria furar a casca e morreria. Como é que a galinha faz esse complicado cálculo físico de resistência de materiais, casca nem muito mole e nem muito dura? Não sei. Só sei que ela sabe. Há um saber no seu corpo que faz cálculos engenhariais exatos.”

Publicado no Correio Popular, Caderno C, 03/02/2002.Ler mais: http://www.rubemalves.com.br/oovo.htm

Mais outonos franceses

Assim como Charles Baudelaire, Paul Verlaine foi considerado um poeta maldito. Poeta francês (1884-1896) de biografia considerada “atribulada e escandalosa”, Verlaine nasceu em Metz e fez seus estudos secundários em Paris. Depois, foi funcionário da prefeitura de Paris, mas, com,o quase todos os intelectuais franceses da época, frequentava os cafés boêmios da Cidade Luz. Sua vida de funcionário público não foi nada exemplar, mas a a paixão pela poesia começava a crescer em oposição à falta de assiduidade ao trabalho.

Descobri na rede um excelente texto do escritor e poeta goiano Gilberto Mendonça Teles, reperoduzido abaixo, a propósito da Arte Poética de Verlaine. Na realidade, esse é o título de um poema de Verlaine – Art Poétiquededicado a seu amigo Charles Morice. O poema também vai publicado e o texto de Gilberto Mendonça Teles lhe serve como apresentação. C. de A.

A Arte Poética de Verlaine

gilbertomendoncatelesPaul Verlaine (1844-1896) estreou com sete poemas no primeiro número do Parnasse Contemporain (1866), coleção que inaugurou o parnasianimo. No mesmo ano publicou seu primeiro livro, Poèmes saturniens, em que, apesar da acentuada influência de Baudelaire, a
começar pelo título do livro, já se pressentiam alguns traços que, posteriormente desenvolvidos, iriam contribuir para a definição do simbolismo. Pois é na direção do simbolismo que se vai produzir a melhor poesia de Verlaine, como a de Fêtes galantes (1869), Romances sans paroles (1874), Sagesse (1881) e Jadis et Naguère (1884).

A década 1870-80 foi de grande importância para a definição de sua poesia. Ao lado da crescente ascendência de Baudelaire, considerado mestre pela nova geração, houve o aparecimento de Rimbaud. Ainda que a glória de Rimbaud só apareça a partir de 1855, é inegável que ele teve decisiva influência na poesia de Verlaine. Foi durante o ano de prisão em Bruxelas que Verlaine conseguiu imprimir novos rumos espirituais e estéticos à sua produção poética, procurando uma linguagem que não ficou apenas na poesia, chegando também a manifestar-se criticamente em metalinguagem, como no poema Art poétique, escrito em 1874 e só publicado dez anos depois em Jadis et Naguère, título aliás bastante sugestivo para a nova dimensão estética que seu livro iria auxiliar a construir.

Parece que a gênese da Art poètique foi, além da reviravolta espiritual de Verlaine, o artigo que Brémont escreveu sobre o Romances sans paroles, editado quando o poeta cumpria a sua pena em Bruxelas. O referido artigo, severo mas atencioso, intitulava-se C’est encore la musique (É ainda sobre música), frase que teria motivado o verso inicial do poema de Verlaine (“De la musique avant toute chose”), o qual se repete, ligeiramente modificado, no início da penúltima estrofe (“De la musique encore et toutjours!”). Na verdade, a Art poétique, antes da edição em livro foi publicada pela primeira vez em novembro de 1882, no Paris-moderne. Recebeu dura crítica de Charles Morice, o que valeu a resposta de Verlaine que se defendia da acusação de hermetismo e de menosprezo à rima, numa polêmica que serviu para tornar conhecido o nome do poeta, cujas Fêtes galantes haviam passado despercebidas do público, entusiasmado na época com o sucesso de um livro de François Coppée. Logo depois o poeta passa a colaborar na revista onde havia saído a crítica (La nouvelle rive gauche), tornando-se amigo de Morice e, em agradecimento talvez pela agitação agora em torno do seu nome, dedica-lhe a Art poétique ao publicá-la em livro dois anos depois.

Na opinião de Verlaine, num artigo de 1890, a sua Art poétique deveria ser vista apenas como uma canção . Não se sabe se o poeta estava sendo irônico, tal como o nosso Carlos Drummond de Andrade quando disse que o seu poema No meio do caminho era apenas uma repetição de vocábulos. Sabe-se que dentro do espírito da época, a palavra canção possuía sua conotação musical inteiramente de acordo com as tendências expressionistas que se queriam implantar. Daí porque o seu poema foi o ponto de partida da funda aventura simbolista. Superando os padrões parnasianos e desenvolvendo o legado inventivo de Rimbaud, seu texto passou imediatamente a ser estudado e assimilado por jovens poetas, repartidos nessa altura entre Verlaine e Mallarmé, mas todos dentro do pessimismo decadentista que já começava a se definir na direção do simbolismo.

Gilberto Mendonça Teles (foto acima), goiano, é escritor, poeta e professor de Lingua Portuguesa

Arte poética

A Charles Morice
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Antes de qualquer coisa, música
e, para isso, prefere o Ímpar
mais vago e mais solúvel no ar,
sem nada que pese ou que pouse.
E preciso também que não vás nunca
escolher tuas palavras em ambigüidade:
nada mais caro que a canção cinzenta
onde o Indeciso se junta ao Preciso.
São belos olhos atrás dos véus,
é o grande dia trêmulo de meio-dia,
é, através do céu morno de outono,
o azul desordenado das claras estrelas!
Porque nós ainda queremos o Matiz,
nada de Cor, nada a não ser o matiz!
Oh! O matiz único que liga
o sonho ao sonho e a flauta à trompa.
Foge para longe da Piada assassina,
do Espírito cruel e do Riso impuro
que fazem chorar os olhos do Azul
e todo esse alho de baixa cozinha!
Toma a eloqüência e torce-lhe o pescoço!
Tu farás bem, já que começaste,
em tornar a rima um pouco razoável.
Se não a vigiarmos, até onde ela irá?
Oh! Quem dirá os malefícios da Rima?
Que criança surda ou que negro louco
nos forjou esta jóia barata
que soa oca e falsa sob a lima?
Ainda e sempre, música!
Que teu verso seja um bom acontecimento
esparso no vento crispado da manhã
que vai florindo a hortelã e o timo…
E tudo o mais é só literatura.

Tradução de Carlindo Lellis
Ilustração: Portrait de Paul Verlaine, de Eugène Carrière, 1891
Óleo sobre tela, Museu Orsay, Paris

E agora, A Canção de Outono de Verlaine

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Les sanglots longs
Des violons
De l’automne
Blessent mon coeur
D’une langueur
Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
Sonne l’heure,
Je me souviens
Des jours anciens
Et je pleure.

Et je m’en vais
Au vent mauvais
Qui m’emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
Feuille morte.

Canção do Outono

Os soluços graves
dos violinos suaves
do outono
ferem a minh’alma
num langor de calma
e sono.

Sufocado em ânsia,
Ai! quando à distância
soa a hora,
meu peito magoado
relembra o passado
e chora.

Daqui, dali,
pelo vento em atropelo
seguido,
vou de porta em porta
como a folha morta,
batido…

Tradução de Alphonsus de Guimaraens
Ilustração: Autumn in BavariaWassily Kandinski – 1908
Óleo sobre papelão – 33x45cm – Centro Georges Pompidou, Paris

E como foi a vida atribulada e escandalosa de Verlaine, que registrou “a contradição entre uma conduta deplorável e um ideal poético quase primitivo de pureza e misticismo”?

Paul Verlaine (1844-1896) . Poeta francês. Simbolista, seu lirismo musical abriu novos caminhos para a poesia na França. O lirismo musical e evanescente de Verlaine exerceu influência decisiva no desenvolvimento do simbolismo e abriu novos caminhos para a poesia francesa. Com Mallarmé e Baudelaire, Verlaine compõe o grupo dos chamados poetas decadentes.

Paul-Marie Verlaine nasceu em Metz, França, em 30 de março de 1844. Filho de um militar abastado, estudou no Liceu Bonaparte – hoje Condorcet – de Paris e, mais tarde, conciliou o trabalho numa companhia de seguros com a vida boêmia nos círculos literários parisienses. Em
seus primeiros livros, Poèmes saturniens (1866; Poemas saturninos) e Fêtes galantes (1869; Festas galantes), ouvem-se ecos do romantismo e do parnasianismo.

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Em 1872, dois anos após casar-se, Verlaine abandonou mulher e filho e iniciou, com o jovem poeta francês Arthur Rimbaud, uma turbulenta ligação sentimental que os levou a percorrer vários países europeus. O relacionamento teve um final abrupto em Bruxelas, em 10 de julho de 1873, quando Verlaine feriu o amigo com um tiro de revólver e foi condenado a dois anos de prisão. Libertado, Verlaine tentou em vão reconciliar-se com Rimbaud. Viveu no Reino Unido até 1877, quando regressou à França. Datam desses anos dois magníficos livros de poesia, Romances sans paroles (1874; Romances sem palavras) e Sagesse (1880; Sabedoria), este a expressão de sua volta aos ideais de um cristianismo simples e humilde.

Apesar de sua crescente fama e de ser considerado um mestre pelos jovens simbolistas, o fracasso dos esforços que fez para recuperar a esposa e levar uma vida retirada conduziram Verlaine a uma recaída no mundo da boêmia e do alcoolismo que, durante o resto de seus dias, o obrigou a frequentes hospitalizações.

Os vários livros de poemas que se seguiram apenas ocasionalmente recuperaram a antiga magia, como Amour (1888). Da produção posterior de Verlaine, o que mais se destaca são os textos em prosa, como o ensaio Les Poètes maudits (1884; Os poetas malditos), vital para o reconhecimento público de Rimbaud, Mallarmé e outros autores, e as atormentadas obras autobiográficas Mes hôpitaux (1892; Meus hospitais) e Mes prisons (1893; Minhas prisões). Paul Verlaine morreu em Paris, em 8 de janeiro de 1896.

Texto extraído da Encyclopaedia Britannica.
Ilustração: Um canto de mesa, por Henri Fantin-Latour (1836-1904), pintado  em 1872. Em primeiro plano, sentados, Verlaine e Rimbaud (da esquerda para a direita).

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Nota

A expressão poetas malditos foi cunhada por Alfred de Vigny, que a utilizou em 1832 na sua peça dramática Stello, onde se refere aos poetas como “la race toujours maudite par les puissants de la terre” (a raça para sempre maldita para os poderosos da terra). Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud e Lautréamont  são considerados exemplos típicos. Mas foi o poeta François Villon (1431-c. 1474) o primeiro a ser cognominado como poeta maldito por seus contemporâneos. (Fonte: Wikipedia)

Rumorejando, por Juca Zokner

Juca Zokner publica suas Constatações em vários blogs, a começar pelo seu, Rimas Primas (http://rimasprimas.blogspot.com/). O Banco da Poesia recebeu a sua última produção, que publicamos com pequenas ilustrações, na falta de maiores.

“Se a gente não levar a vida com bom-humor para todas as coisas que acontecem, as situações ficam mais difíceis de se resolverem. Assim, é melhor dar boas risadas e ver por um ângulo diferente. Ainda que algumas pessoas vejam o lado difícil da vida, prefiro encarar os fatos de outra maneira”.

José (Juca) Zokner

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Pequenas constatações, na falta de maiores

Constatação I (Falando da frágil paz ou dos preparativos das guerras).

liquidificadorOs tratados
Antes solidificados,
Foram abandonados,
Mal falados,
Vilipendiados,
E acabaram liquidificados.

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Constatação II (Meio ambiente)

grimpa21Dizia o jardineiro,
Poetando:
“O pinheiro
olta grimpas*
Supimpas;
Solta pinhão
Que é uma obra-prima
De formatação
Da mãe natureza
Ou Daquele lá de cima.
Com toda a certeza,
Foi gerado com poesia
Com rima
Que, nos campos,
Naquela era
Havia
Outra atmosfera:
Pirilampos
Piscando;
Sapos coaxando;
Corujas crocitando;
Cigarras cantando;
Grilos
Com seus estrilos.
É, tudo isso,
Toda essa cena,
Algum dia,
Ainda se via.
Pena!
_________

*Grimpa = Ramo do pinheiro

Constatação III

A freqüência
Naquele bar
É uma indecência,
Disse a solteirona,
Sentada na poltrona,
Olhando pela janela
Do quarto dela.
Só tem homem acompanhado,
Com cara de enfastiado,
Que comigo não daria par.

Constatação IV (Tragédia do cotidiano).

Com o passar do tempo, com o avanço cronológico da idade, os cônjuges continuaram a dormir na cama de casal. Mas havia como uma espécie de muro de Berlim virtual no meio do assim chamado leito nupcial: Ele nem, ao menos, chegava a passar a mão na abundância dela; ela nem chegava a roçar no seu maior patrimônio. Coitados!

Constatação V

juizDesacato a uma autoridade é quando você não chama:
– Um juiz de meritíssimo;
– Um reitor de magnífico;
– Um cardeal, ou bispo de reverendíssimo;
– Um deputado ou senador de Vossa Excelência, ao invés de nominar, como os franceses, que se reportam a todos os cidadãos, sem distinção, de senhor e senhora.

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Constatação VI

Estava num baita dilema,
Sem dúvida um problema,
Queria provar por teorema,
Sem ser apelativo,
Se uma prevaricação
Ajudaria
A reciclar a libido, ou não
O que seria,
Em caso positivo,
Uma excelente solução.

Constatação VII (Poeminha atrapalhado, aloprado sem muito pé e muito menos cabeça).

loboConstrito,
Depois de ouvir
Um grito
Sair
Da boca do lobo
Ou da boca-de-lobo
Já nem me lembro mais
Ando esquecido demais
Confuso,
Meio bobo,
Obtuso
Será que é o fuso?
Ou o horário de verão
Puxa! Que confusão
Vou ficar é calado
Antes que eu seja internado
Em vários asilos,
Por causa dos meus grilos,
Sem
Que alguém
Tenha pena de mim.
Fim.

Constatação VIII

rosaventoRico semeia uma rosa, dos ventos, e colhe uma brisa de pétalas; pobre, semeia uma rosa, dos ventos, e colhe uma tempestade de espinhos.

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Constatação IX

dcamiloUm dos exemplos de humanismo, amizade e paixões do povo italiano é o que se pode encontrar nos livros do escritor Giovanni Guareschi, principalmente naqueles cujos personagens principais são o padre Dom Camilo e o comunista Peppone. Leitura obrigatória, como diriam os críticos.

Constatação X (De dúvidas cruciais).

cravorosa4Foi o concerto para a mão esquerda, de Maurice Ravel, que foi vetado pelos políticos da assim chamada Direita? E foi durante a execução de Os pinheiros de Roma, de Ottorino Respighi, que caíram umas grimpas na cabeça do regente? E, mais ainda, foi na Valsa das flores, de Piotr Ilich Tchaikovsky que a rosa brigou com o cravo, debaixo de uma sacada?
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Constatação XI (De uma dúvida crucial via pseudo-haicai)

redcardMudança de atitude
Da regra do jogo, durante
O seu transcurso, é ilicitude?

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Constatação XII

polvaFoi a polva que, no bem-bom, disse pro polvo:
“Bem, isso de agora passar um dos tentáculos
Na minha bun, digo nuca, depois eu resolvo”?

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Constatação XIII

Foi o caminhante,
Seguindo a trilha,
Que, de repente,
Apareceu
Numa ilha
E nada mais entendeu?

Constatação XIV (Ah, esse nosso vernáculo)

reiO rei quando estava sentado no trono lhe deu vontade de sentar no trono e com voz tronante pediu licença à corte e saiu correndo numa velocidade de um mésotron.

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Constatação XV

missazeda1Ela clareou os dentes como sói acontecer com os atores e atrizes globais. No entanto, ela era por natureza azeda, digna de se candidatar a um concurso de Miss Azedume. Jamais, em tempo algum, se permitia um simples sorriso. Quando muito, um amarelo. Rir, então, nem pensar. Quando lhe perguntavam por que nunca ria, até para mostrar os dentes clareados, ela respondia que sim. Que ela ria. Mas, por dentro.

Constatação XVI

maradonaNão só o Brasil inteiro ficou triste, compungido, macambúzio com a derrota acachapante da Argentina para a Bolívia. A América Latina inteira também…

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E-mail: josezokner@rimasprimas.com.br

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E deixamos a Poesia fugir, em seu dia

No dia 21 de março último, o mundo inteiro comemorou o Dia Mundial da Poesia. Poucas comemorações no Brasil. Nenhuma em Curitiba, que eu saiba. A Unesco, entidade responsável pela promulgação desse dia, divulgou uma mensagem de seu diretor geral,   Koichiro Matsuura:

Poesia é uma arte milenar. É a arte da linguagem, uma interação de palavras, estética oral. Um poema não se lê, se diz.

Por isso, a poesia tem atravessado épocas e continentes. Fruto do imaginário, tanto individual como coletivo, a poesia é um elemento permanente na construção da vida social, tanto como a música, a dança e as artes plásticas. A poesia está presente em todas as partes e, no entanto, ao mesmo tempo, é inacessível. Sua fragilidade aparente, ligada ao seu caráter imaterial, fazem dela uma arte superior inviolável, que não teme os assaltos do tempo e da intolerância.

Como todo o conjunto de patrimônio imaterial, esta arte deve ser objeto de toda nossa atenção. Ainda que todos a admirem, publica-se pouca poesia e se traduz ainda menos. Encontra-se no coração de todas as línguas, mas também é freqüentemente considerada inacessível.

Poesia é uma arte na qual permite-se criar raízes e renovar-se, é o mais autêntico mensageiro de uma cultura; testemunha única e refinada da História. A poesia pode ensinar muito acerca do universo de outros povos, seus valores e sonhos. A poesia é uma porta aberta para o diálogo e para a compreensão dos povos e, por isso, é celebrada neste Ano das Nações Unidas do Diálogo entre as Civilizações.

A UNESCO está engajada na promoção do ensino da poesia nas escolas e apoia todos os esforços para a publicação e tradução de poesia. Gostaria de convidar os Estados Membros a contribuir também, de todas as maneiras possíveis, para a promoção permanente da poesia”.

Também a 14 de março, data de nascimento de Castro Alves (1847) foi comemorado (onde?) o Dia Nacional da Poesia. Confesso-me partícipe da legião dos desmemoriados, mas a culpa maior foi dos promotores culturais, esses estranhos seres que habitam os gabinetes oficiais.

Tanto o dia nacional quanto o mundial deveriam ter sido lembrados principalmente nas escolas, com a participação dos poetas vivos e  a lembrança dos que já se foram, deixando-nos as relíquias de suas palavras mágicas. Meta anotada para o próximo ano.

Para não dizer que esquecemos totalmente da data, usarei o dia da inauguração deste Banco da Poesia, a 12 de março, para homenagear as duas datas. Pelo menos, tudo aconteceu em março.

Recolhi, no colombiano Con-fabulación (http://con-fabulacion.blogspot.com/), a notícia e interessante saudação feita a propósito da comemoração do Dia Nacional da Poesia naquele país, que transcrevo a seguir. C.deA.

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Todos os poetas do pasado, todos os poetas do presente e todos os poetas do futuro, tão somente escrevem um fragmento, um episódio de um grande poema coletivo que escrevem todos os homens”.

Percy Bysshe Shelley


A terceira versão do Dia Mundial da Poesia reuniu 180 devotos na Universidade Nacional de Colômbia e 320 no teatro do Ginásio Moderno. Agora sabemos que também é formosa a colheita intangível e que, como disso Octavio Paz: “A poesia necessita da morte do poeta que a escreve e do nascimento do poeta que a lê…

Agradecemos a esta bela horda de Con-fabulados, assim como aos 18 poetas que uma vez mais demostraram que a poesia é o único ofício desinteressado, e aos meios de comunicacão  que difundiram animadamente o evento: El Espectador, El Tiempo, Caracol Radio, UM radio, TV Centro, Libros & Letras, Canal Capital,   Radiodifusora Nacional… Representados nos jornalistas e intelectuais empenhados no êxito da cerimônia, os professores Fabio Jurado Valencia e Jorge Rojas, e os jornalistas Gustavo Gómez, Paola Mariño, Henry Posada, Oriana Obagi, Lilian Contreras, Carlos Restrepo e Jorge Consuegra.

A seguir, a bela peça que, a maneira de prefacio, fez o escritor Federico Díaz-Granados. Habemus poesia.

A festa do equinócio

Por Federico Díaz-Granados*

Nosso admirado Aldo Pellegrini nos convidou a contribuir à confusão geral. Por isso, o Ginásio Moderno, esta casa centenária, acolhe na tarde de hoje a todos os confabulados interessados em empreender a verdadeira aventura essencialista da criação e do assombro, fiel a seu talante liberal e inclusivo e à herança humanista dos pais fundadores que nos ensinaram que somente por meio da poesia e da literatura poderíamos entender as proporções de uma sociedade mais justa e solidaria.

federico_diaz_granados2Todos nos recordamos que, nos tempos primitivos, a poesia servia para chorar e celebrar o mundo. Hoje, a poesia continua tendo, entre tantas, a função de exaltar a existência e lamentar e combater a morte.

O poeta português Eugenio de Andrade (ver post abaixo) mencionou que a única e verdadeira moral da poesia “é que se rebela contra a ausência do homem no homem, porque se este se atreve a – cantar no suplício – é porque não quer morrer sem se olhar em seus próprios olhos e reconhecer-se e detestar-se ou amar-se”.

Desde Homero a São Juan de La Cruz, de Virgílio a William Blake, desde o lamento do pobre Jó a Fernando Pessoa, desde Hölderlin a Nazim Hikmet, a maior ambição do quefazer poético sempre tem sido a mesma: Ecce Homo, repete Eugenio de Andrade e parece dizer cada poema: Eis aqui o homem, eis aqui sua fugacidade sobre a terra. Porque o futuro do homem é o homem, estamos de acordo, mas o homem de nosso futuro não nos interessa desfigurado e aí sobreviverá a eterna e misteriosa poesia. Ausência e presença, vazio e plenitude, dúvida e certeza estarão presentes para sempre na palavra.

Quem senão o poeta para devolver ao mundo um pouco da beleza e o horror que este nos outorgou? Quem senão o poeta para traduzir a liberdade do homem e de seus sonhos? A poesia não vai resolver, nem nunca resolveu os conflitos, nem o problema da fome e seguramente hoje não solucionará o flagelo do sequestro ou o dos desaparecidos ou o dos torturados, mas sempre nos tem acompanhado (melhor dizendo, desde o avô pitecantropo) e nos tem ajudado a sobreviver graças a sua beleza. Quiçá essa seja sua única obrigação: ser bela, seja qual seja seu tempo e seu tema, e revelar,  como num cálculo algébrico, a obscuridade e o desconhecido. Por isso, celebrar o Dia Mundial da Poesia é festejar o triunfo do assombro, a solidariedade e o compromisso em tempos da globalização e da desumanização. Não seria justo estar aqui se não estivéssemos conscientes de que exaltar o Dia Mundial da Poesia, no equinócio de primavera, é proclamar uma vez mais o triunfo da poesia como a verdadeira resistência do homem em sua passagem por esta aventura dea vida sobre a Terra.

Neste complicado, difícil e caótico mundo que nos correspondeu, a poesia segue definindo-se como um milagre e segue defendendo-se ante toda proposta virtual. O homem está em crise há muito tempo e sua catástrofe nos recorda uma espécie de Titanic de nossa modernidade. Por isso, quando restar o último de nós, solitário sobre a única rocha erguida sobre a terra, naquela noite final dos tempos, somente terá a seu lado a poesia, a palavra, a prece ou a imprecação como companhia.

Saint-John Perse disse, em seu discurso de aceitação do Prêmio Nobel, que quando as mitologias se desvanecem, o sagrado encontra na poesia seu refugio e talvez seu relevo, porque a poesia moderna adentra em uma aventura cuja meta é conseguir a integração do homem. Isso é o que festejamos na tarde de hoje, a integração do homem através dea palavra de sempre.

A poesia, escreveu García Márquez, “por cuja virtude o inventário esmagador das naves que enumerou o velho Homero em sua Ilíada, é visitado por um vento que as impulsiona a navegar com sua presteza intemporal e alucinada. A poesia que sustém, no delgado andaime dos tercetos de Dante, toda a fábrica densa e colossal da Idade Média. A poesia, enfim, essa energia secreta da vida cotidiana que ferve os grãos-de-bico na cozinha e contagia o amor e repete as imagens nos espelhos”.

Bem vindos, poetas, bem vindos todos vós a esta casa de poesia e celebremos nossa grande recompensa de presenciar o milagre do feito poético em tempos da amnésia e da paranóia, onde não têm cabida os milagres nem a taumaturgia. Bem vindos, poetas herdeiros de uma profunda e verdadeira tradição que hoje cada um de vós homenageia com sua voz.

Em conclusão, quero citar a Pablo Neruda, que nos recordou que: “somente com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens. Assim a poesia não terá cantado em vão”.

Que a poesia seja nosso pastor e nada nos falte…

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*Poeta, catedrático e ensaísta colombiano

Os Outonos de Baudelaire e Manet

charles_baudelaireCharles Baudelaire e Édouard Manet foram contemporâneos e amigos. O poeta foi um dos grandes defensores do pintor, considerado mesmo seu protetor. Em um texto de 1862, disse que suas obras reuniam “a um gosto firme pela realidade, a realidade moderna – o que já é um bom sintoma –, essa imaginação viva e ampla, sensível, audaciosa, sem a qual, é preciso dizer claramente, as melhores faculdades são apenas escravos sem mestre, servidores sem governo”.
edouard_manet_por-nadar2Em um de seus quadros, La Musique aux Tuileries, Manet retratou pessoas conhecidas, inclusive ele mesmo, seu irmão e Charles Baudelaire.

Como estamos em pleno Outono, vamos homenagear a estação com um soneto de Baudelaire e uma pintura de Manet, ambas obras com o mesmo tema.

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Sonnet d’Automne

Ils me disente, tes yeux, clairs comme le cristal:
“Pour toi, bizarre amant, quel est don me mérite?”
– Sois charmante et tais-toi! Mon couer, que tout irrite,
Excepté la candeur de l’antique animal,

Ne veut pas te montrer son secret infernal.
Berceuse dont la main aus longs sommeils m’invite,
Ni sa noire légende avec la flamme écrite.
Je hais la passion et l’esprit me fai mal!

Aimons-nous doucement. L’Amour dans sa guérite,
Tenebreux, embusqué, bande son arc fatal.
Je connais les engins de son viel arsenal:

Crime, horreur est folie! – Ô pâle marguerite!
Comme moi n’est-tu pas un soleil automnal,
Ô ma si blanche, ô ma si froide Marguerite?

Soneto de Outono

Teus olhos me dizem, claros como cristal:
“Para ti, bizarro amante,  que mérito me habita?”
– Sê encantadora e cala-te! Meu coração, que tudo irrita,
Exceto o candor do antigo animal,

Não quer mostrar-te seu segredo infernal,
Acalanto em que mão de longos sonhos me invita,
Nem sua negra legenda com a chama escrita.
Odeio a paixão e o espírito me faz mal!

Amemo-nos docemente. O Amor em sua guarita,
tenebroso, emboscado, estende o arco fatal,
Conheço as armas de seu velho arsenal:

Crime, horror e loucura! Ó, pálida margarida!
Como eu não eres um sol outonal,
Ó, minha tão branca e tão fria Margarida?

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Notas

Fotos de Baudelaire e Manet – por Félix Nadar (mais conhecido simplesmente por Nadar), pseudônimo de Gaspard-Félix Tournachon (Paris, 1820 – 1910), fotógrafo, caricaturista e jornalista francês.
Pintura de Édouard Manet
Outono
Óleo sobre tela, 1882
73 x 51 cm
Museu de Belas Artes, Nancy
Soneto de Outono
Versão em Português por Cleto de Assis

A Paixão, segundo Manoel de Andrade

Lembro-me de meus tempos de catecismo. Mais ou menos aos oito anos de idade. Era tempo de ver a vida do lado de fora da família, onde certas conversas ainda eram reservadas a adultos. Era tempo de descoberta da leitura, ou a arte de associar letrinhas a coisas e sensações conhecidas e desconhecidas. Foi tempo da descoberta do cinema, lugar onde temas maiores que os familiares eram colocados ante os olhos infantis. E havia o amor e havia a paixão. Amor era meta permanente, dominante; paixão, coisa secreta, quase fulminante. Amor era a chama a ser conservada tranquila, apenas calorosa, para durar até a eternidade. Paixão era chama sem controle, incendiária, a queimar rapidamente toda a lenha. Por amor se vivia; por paixão se morria.

E eis que surge, frente ao menino, a Paixão de Cristo. Assim mesmo, com inicial maiúscula. E quem era – perguntava a criança curiosa – o objeto de tamanha, arrepiante, dolorosa paixão? No drama apresentado, não havia amor ou paixão entre um homem e uma mulher. Tratava-se – diziam os mais sábios – de um dos mistérios eclesiásticos, um dos tantos que a razão humana não alcançava explicar e deveria ser aceito pela fé, outro dos tantos mistérios. Quase a mesma coisa que o menino ouvia em família: isso você vai entender quando crescer. Mas esse mistério ficou entalado na cabeça infantil que, se presume, cresceu e não entendeu o mistério da Paixão. A explicação circunloquial poderia ter sido mais simples, mais construtiva.

Independentemente do que sabemos ou não sabemos sobre tais mistérios (passei a contentar-me e extasiar-me com o grande e belo e infindo mistério da Vida), a celebração da Semana Santa, entre os cristãos, que culmina no domingo de Páscoa, assinala também momentos de reflexão sobre a crueldade que pessoas podem infligir a outras pessoas, muitas vezes porque apenas as separam pensamentos e idéias diferentes. No filme de Mel Gibson sobre o sofrimento de Cristo, a crueldade é mostrada em detalhes, quase num assomo de sadomasoquismo. Mas aquelas cenas não deixam de ser simbólicas, num momento de nossa sociedade em que a violência do homem contra o homem, talvez pela dinâmica instantânea da comunicação, está cada vez mais presente em nossas vidas.

Assim também o faz, por meio da poesia, Manoel de Andrade, no depósito feito no Banco da Poesia, para publicação na chamada Semana Santa. Somos todos gratos a você, Manoel, pela beleza de seu poema.

ECCE HOMO

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Levam ao Sinédrio o humilde Nazareno
para que se julgue o amor e a inocência
e  diante  da  judaica  prepotência
o Mestre se mantém doce e sereno.

Por ser blasfemador é réu de morte
diz  Caifás com desprezo ao acusado
e  depois  de  cuspido e  maltratado
aos romanos entregam a  sua  sorte.

No pátio do palácio a massa se aglutina
e um prenúncio sinistro percorre a multidão
traído e abandonado à própria provação
aguarda  o  prisioneiro  a  sua  sina.

– É um visionário, um sonhador  somente,
e me comove sua mansidão, sua pobreza…
diz Pilatos…, convicto  da  certeza
de estar frente a um homem inocente.

Diante da  injustiça  e  do  impasse
transfere  a  Antipas  a  sentença
mas o tetrarca  devolve-lhe a presença
com os espinhos ensangüentando a face.

Coberto com  o  manto  da ironia
e como cetro uma cana  retorcida
nessa  imagem de realeza  escarnecida
trazem novamente o Rabi à pretoria.

Tenta Pilatos um último  artifício
para acalmar a plebe alucinada
e espera que a espádua açoitada
salve  o  Galileu  do sacrifício.

Rasga-lhe  a  carne  o  látego  cruel
e nem um murmúrio de dor ante o flagelo.
Envilecido e ultrajado, invencível e belo
cumpre a Trágica Figura o seu papel.

Mas ainda assim a turba em desatino
exige que a condenação seja mantida
e Pilatos propõe à massa ensandecida
que  delibere  sobre  o  seu  destino.

Diante do pretório e amotinado
o  povo  absolve  Barrabás
e movido pelos asseclas de Caifás
exige o Galileu crucificado.

Ante a sentença e os gritos do estrupício
e entre a verdade e o interesse dos seus atos
lava  as  suas  mãos  Pôncio  Pilatos
e  entrega  o  Cordeiro  ao  sacrifício.

Na mais ingrata e suprema solidão
maltrapilho,  descalço  e  abatido
para o meio da escória é conduzido
sob o escárnio  cruel  da  multidão.

Passos  cambaleantes,  dor,  delírio
toda a ignomínia no símbolo da cruz
o madeiro infame nos ombros de Jesus
e o lancinante caminho do martírio.

Ergue-se o holocausto ao amor crucificado
na  dor  que  esmaga,  na  sede  insaciável
no estóico silêncio, no deboche intolerável
no lento suplício de um Homem sem pecado.

E na agonia do Calvário, rumo à glória,
roga  a  Deus  perdão  para  os  algozes…
Por tanto amor recebe os golpes mais atrozes
e o julgamento mais iníquo da história.

Manoel de Andrade

Curitiba,   26/02/04
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NOTAS

Ecce homo – Eis o homem. Palavras de Pilatos ao apresentar Jesus aos judeus
Ilustração: “Ecce homo”
Georges Rouault (Paris, 1871 – 1958),
Pintura completada entre 1937-41.
Óleo sobre tela colada em madeira, 34 x 24.4 cm
Museu Nacional de Arte Moderna, Paris