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Isaias 1:02

Isaias de Faria

Todo profeta é um poeta. Usa suas metáforas para predizer acontecimentos futuros e fazer advertências às ovelhas  tresmalhadas. O livro de Isaías, por exemplo, com seus 66 capítulos, é até mesmo na forma um livro de poemas. Como diria nosso Manoel de Andrade, poemas brabos, por certo. Recheados de metáforas ameaçadoras de um deus vingativo e insatisfeito com sua criação. Mas a poesia não canta apenas as venturas, o sol e as flores. O poeta vê beleza também na tempestade, nas nuvens escuras, na dor e nas lágrimas.

E por isso todo poeta é quase sempre um profeta. Porque consegue ver além da aparente realidade e prever cintilações e perfumes e cores e formas e fados que a maioria não consegue enxergar.

No dia 1º de fevereiro recebi uma mensagem de um novo Isaias, poeta, talvez profeta (daí a inscrição Isaias 1:02) que me disse querer publicar um poema seu no Banco da Poesia. Conversa vai, conversa vem, pedi foto, informações biográficas e eis aí Isaias de Faria, com resumidíssima folha corrida: poeta, mora em Belo Horizonte, escreve em seu blog Estações e em diversas revistas eletrônicas e outros endereços da rede. Em breve publicará seu primeiro livro de poemas, com o título Distrações.

Grato ao Isaias poeta ( também fotógrafo) pelos depósitos iniciais. Aos nossos leitores podemos recomendar, como o Isaías profeta: “Aplicai os ouvidos para ouvir sua voz, / sêde atentos para escutar sua palavra” (Isaías 28:23).

O olhar de um jovem fotógrafo

Montagem sobre fotos de Isaias de Faria – C. de A.

Um casal. 20 ele, 29 ela.
1º dia de um encontro
pra se conhecerem
numa praça florida.
feriado. Dia absorto
em sua quietude:

ele: os dias nublados
são os melhores dias
pra fotografar

ela: melancólico… seus
olhos não negam

Para a poiesis de Homero

Illion

irá de imortal e covalente suplício
desbravar setadas confusas de virtudes
nas moradas falsamente desnudas

objetivante
revela completo
desta busca
turbulenta deidade
na raiz de pedra
épico como ele só

destino de contendas traça aquiles
papel de epopéia
sucessivas até a morte

semideuses num próprio céu

A Apoteose de Homero - Jean Auguste Dominique Ingres, 1827 – Museu do Louvre (Paris)

Odisseus

em que fala a
fonte erga
vibre
em que fala –semiviva, fornalha, estentor, adaga, lança,
fonte mire
incline
em que o
passado estentor
semiviva
de
fornalhas ditas
venha de irrealidade
que não se pode fugir
mas plangente

se vai sim a adaga,
lança, aço em mãos e
ostenta golpe afrente a
voltar
(tão caro nunca se foi, odisseu!)
ostente a volta

recalcando a lida (consumindo-se pelo extenso trilho)
prestes ao amor que volta:
não sabeis

certeza de quem se
arruma sabes
em flanco brilhante horrendo

fina farpa a cada ponto,
trancos, barrancos, barras
e amargas despalavras
sentias e tais tais azeus

e o tal zeus,
retoma as energias desfeitas,
nervos desarrumados
o corpo a avante e prevista ira,
não pode pasmar de ver
nada de dó de açoite
a almejada rota

prossiga,
já tens a terra em pés, pele,
tateamento nos céus

árduo estrategista de ouvidos atentos
no jogo cantado-lírico

orgulho ainda intacto
cravado e repouso atento mito

Metáforas em busca de atento escutar

Certa vez, ao ilustrar  poema de um bardo amigo, coloquei nas mãos da figura pensativa, à beira do mar, um simples bastão. A idéia era mostrar um observador, que sonhava, na praia, em navegar nas velas do barco ao alcance de seu olhar. Naquele momento de descanso da caminhada e imerso na paz de seu velho sonho marinheiro,  apoiava-se no seu pequeno cajado. Mas nem sempre o que imaginamos é o que os outros sentem. E meu amigo poeta reclamou, pois o bordão, mesmo simbólico, lhe parecia bengala de arrimo a vetusto e cansado espectador das marés.

Ora, direis, tira-lhe o báculo e devolva-lhe a vitalidade dos mais jovens. Mas lhes responderei, ainda usurpando de Bilac a frase: por certo perdestes também a visão correta! Jamais lhe daria um bastão de apoio à velhice (a não ser que fosse necessário), mas quis simbolizar na pequena haste o apoio a seu espírito de peregrino. Talvez me explique melhor no poema abaixo. (C. de A.)

Ode ao bom pastor

Montagem sobre gravura de Albrecht Dürer

Dizem que Hermes, filho de Zeus e da ninfa Maia
e irmão de Apolo,
antes de se tornar deus do comércio,
amava a música e enriqueceu-a com a lira.
Apolo, embevecido com o novo instrumento,
permutou-o por um bastão mágico
que dava a seu possuidor conduta reta e prudência moral,
além de poder, diligência, sabedoria e superiores pensamentos.
Mas Hermes continuava a amar a música e criou a flauta
(cochicham as ninfas que muito antes de seu romano filho Pã),
e em troca recebeu do irmão o dom da sabedoria.
E para dotar o mundo de equilíbrio e justiça,
teria criado a balança,
na qual Têmis passou a sopesar as ações dos homens.

A Hermes seu pai proveu-o de asas nos pés
e ele se tornou o deus dos viajantes,
inspirador dos peregrinos,
condutor dos viandantes sem rumo,
iluminante das beiras dos caminhos
e protetor de todos os que se apóiam em bastões seguros
para tornar menos árduas as caminhadas.

Poeta, tu que partiste em busca da paz e da justiça,
e empunhaste outrora o símbolo equivocado da lança fratricida,
bendito seja o teu retorno às asas da pomba peregrina
que carrega o ramo da oliveira para anunciar bom tempo
e a paz dos mares, e o perfume dos ares,
e a fartura da terra que concede saudável alimento para o corpo
e a ternura da palavra que consagra fraterno alimento para a alma
e a transformação da haste mortal em firme bastão de ajuda.

Vagaste por rotas erradias, muitas vezes sem saber que destinos alcançar
mas guardavas dentro de ti a certeza do encontro seguro contigo mesmo
e de reencontros com os que deixaste para trás
quando seguiste por sendas que só teu canto iluminava,
sempre guardado pelo vigia das veredas desconhecidas.

Por certo andaste por trilhas distantes das caminhadas por Hermes,
sem ouvir liras de cascos de tartaruga
e afinadas flautas de bambu gregas ou romanas.
Mas criaste tua própria Arcádia nos zênites andinos
ao som de zamponhas  e charangos,
engendrados em frágeis taquaras e cascos de tatu
e harmonizados por Apu Kun Tiqsi Wiraqutra,  Senhor e Maestro do mundo.

Bendito sejas tu, porque garimpaste a paz na rudeza das palavras primevas
e  hoje fazes de tua voz conselho e bálsamo para os aflitos
e alcançaste a verdadeira liberdade nos teus sequentes cantares,
onde toda utopia está a teu alcance, porque construída em bondade.

Se o cajado que te dei
foi de súbito confundido com o apagar da juventude
assegura-te que ele é símbolo da sabedoria, da ajuda fraterna
e da medicina da alma, sem o peso de serpentes conflitantes.
Apóia-te nele e segue em tua faina de pastor nos campos da poesia
e continua a lavrar e levar paz e alimento a teu rebanho de palavras.

Cleto de Assis – fevereiro 2010

J. B. Vidal, maiêutico, faz seu depósito

Posso dizer que o Banco da Poesia tem o dedo de J. B. Vidal, o poeta e editor de Palavras, Todas Palavras (http://palavrastodaspalavras.wordpress.com/). Foi a ele que, durante a Semana da Poesia do ano passado, organizada por Manoel de Andrade, revelei a primeira idéia: organizar uma cooperativa de poetas. Depois, mais uma influência do poeta auto-desterrado (que inveja!) na Ilha do Destêrro – a sua prolongada ausência na Internet, durante as chuvas de verão que quase arrasaram Santa Catarina e não permitiram que Vidal instalasse o seu QG eletrônico para prosseguir seu prolífico trabalho de blogueiro protetor da Poesia.

De idéia em idéia, surgiu o Banco da Poesia, mas como simples ponto de encontro de poetas e de amantes da poesia. E, para alegria nossa, Vidal manda seu primeiro depósito, um poema com arcabouço mitológico, no qual expressa reflexões existenciais, pedindo intervenção aos deuses do Olimpo. Bem vindo seja, não só como poeta e amigo, mas como padrinho do Banco. Para saudá-lo, reuni, na montagem ilustrativa, os deuses invocados.

MAIÊUTICO

maieutico1
avejão helênico devasso a Hélade anosa,
perscruto Héstia, atenso para copular cioso,

tempestades de parêmias assolam a fleuma,
desértico, acuo na abóbada célica

incidências de ardis no Templo,
inerme ausência de Eros,

zeugmas pairam sobre pélagos,
imanes ofídios balétam virtuosos,

deuteragonista no drama litúrgico,
postergado por Zeus, exsolvido no Olimpo,

Zeus! Ares! Eros! onde estais? por que a indiferença?
novos Titãs fazem guerras de outra essência,
átomos divisos, gases letais descem dos céus!
Hélade existe, também morrem os seus!
amada Héstia, socorra-me com tuas virgens,
permita, por um instante, ser um deus!

retorno exaurido desta viagem reminiscente,
deixei-me levar como se de fato fosse,
ilusão de não estar onde estou e não me sinto,
morre em mim tudo que sonho, nada fica pra depois,
sentidos, pensamentos, escorrem pelas carnes,
resta o tédio, a vontade  de não-ser e abandonar-me

J. B. Vidal
inverno de 2000