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Sabe onde fica Quissico? Mia Couto sabe.

Quissico


1. Deixei o sol
na praia de Quissico
De bruços
sobre o Verão
eu deixei o Sol
na extensão do tempo
Molhando, quase líquido,
o dia afundava
nas fundas águas do Índico
A terra
se via estar nua
lembrando, distante,
seu parto de carne e lua

2. Não o pássaro: era o céu
que voava
O ombro da terra
amparava o dia
A luz
tombava ferida
pingando
como um pulso suicida
em minhas ocultas asas

Mia Couto – Moçambique (ver mais aqui)

Hélio Puglieli, finalmente, abre sua conta

Hélio Fileno de Freitas Puglielli, Professor da UFPR (1971/96), da PUCPR (1967/78) e ex-editorialista dos jornais curitibanos O Estado do Paraná, Indústria & Comércio e Gazeta do Povo. Como poeta, oferece uma contribuição destinada a merecer os mais profundos estudos pela dimensão da proposta, no que contém de síntese-filosofia em palavras das mais trabalhadas em O Ser de Parmênides chama-se Brahma, livro de apenas 18 páginas. Hélio faz uma espécie de projeto literário, coincidentemente, em outro livro (Para Compreender o Paraná, 86 páginas, Secretaria da Cultura do Paraná), onde dá sua contribuição de crítico, com a visão de jornalista que nunca abandonou a profissão. Ao deixar o compromisso diário com o jornal, não deixou, porém, de escrever. Selecionou 93 textos curtos em sua forma, mas profundos em seu conteúdo – nos quais analisa desde o linguajar paranaense, como faz perfis de personalidades como Bento Munhoz, David Carneiro, Erasmo Pilotto, Ernani Reichman, Sérgio Sossella, Emiliano Perneta, Wilson Martins, Paulo Leminski, Plácido e Silva, Colombo de Souza, Samuel Guimarães da Costa, entre outros. Despretenciosamente, Para Compreender o Paraná, é um dos mais importantes volumes já editados, pois, numa forma rápida, simples e jornalística, mostra “Bichos do Paraná” que merecem – e devem – ser melhor estudados e, logicamente, admirados.

As informações acima, condensadas (e atualizadas) de um texto maior escrito há tempos por Aramis Millarch, são apenas breves pinceladas da figura do respeitado jornalista e poeta, que manda seu primeiro depósito ao Banco da Poesia. Um poema de certa forma provinciano, por se referir a personagens de um estrito cenário cultural curitibano –  que nossa geração conheceu muito bem – mas universal por tratar carinhosamente da lembrança de amigos queridos e da eterna perplexidade humana diante da ineludível viagem.

Bem vindo, Hélio! A casa é sua.

Pelos amigos mortos

ou

Guinsky, nós nos lembramos

Os anjos do poeta Colombo de Souza
estão lavando as nuvens no céu,
enquanto pelos caminhos da infância
foge a raposa azul de Armando Ribeiro Pinto.
Wilson Rodrigues Cordeiro sorri de soslaio
e só o Guinsky se lembra dele,
embora não consiga desenhar
a camisa azul e o terno cinza
ectoplasmáticos.
E muito menos será possível fixar
a cor do sorriso, flor do enfisema mortal.
Guinsky, Guinsky, onde se perdeu a chave
que abria fechaduras na testa de seus fantasmas?
Aqueles pontos de interrogaçâo que você semeava
atravessaram a ponte das lembranças.
(Sobre a superfície das águas
nem mais flutua o espírito de Deus.)
Por que era tão encabulado o poeta
Cristóvão Colombo de Souza?
Por que Armando amou o cinema tanto
e não arrancou das telas para a vida
sequer um hollywoodiano happy end?
Por que Wilson Cordeiro fumava tanto,
rivalizando com o juiz Sérgio Rubens Sossela?
Deste, milhares de poesias curtas vagam pelo espaço.
São petardos, ainda quentes das horas de insônia e desespero.
O famigerado juiz-rabo-de-cavalo,
agora sem Corregedor pra aporrinhar,
acelera a moto na mais sensata corrida de sua morte.
Jamil Snege, na esquina, dá aquela risada safada,
ele que fumou até a hora de morrer,
fino artesão de palavras,
olhar brilhante apagado,
cinzas de cigarro.
O caboclo Cardoso
há muito tempo se foi.
Está em Morretes, incógnito,
na gerência de bar invisível.
Por que, Guinsky, não há como desenhar
as inaudíveis rabecas?
Também se foi César Bond,
aquele dos “homens tão chapéus”,
mas Curitiba não sabe.
Curitiba global.
Valêncio calou a voz de falsete,
descalçou os sapatos de lona,
pé ante pé, procurando
infinitas vanguardas.
Walmor Marcelino acaba de partir,
com muxoxos de desdém,
intransigente sempre,
coerente sempre,
exceção à regra.
Quem vai gravar o sotaque catarina,
a figura quixotesca
com lances de prosápia e de rancor?
(Preferível tê-lo pouco amigo e debochado
a ter dez amigos desfibrados.)
Toda essa gente está nas estrelas, Guinsky.
mas, é claro, não dá pra ver
neste porra céu fosco de Curitiba.

________

Ilustração: C. de A.

A resignação de Vera Lúcia Kalahari

Estranhei o silêncio de Vera Lúcia Kalahari, a poeta portuguesa que escolheu Angola como um de seus ninhos de arribação. Ela me informa que esteve às voltas com problemas de saúde de sua filha, felizmente já superados. E manda ao Banco da Poesia mais um depósito, segundo ela produzido sob o efeito da emoção dolorosa por que passou. Agradeço e desejo plena saúde para sua filha e felicidade total para as duas.

Vontade de Deus


Se é vontade de Deus
Eu ser um pingo de chuva
Na esquecida sonolência
Dum rastro d’onda perdida
Eu ser eco ou ser brisa
Ser suspiro ou ser grito
Ou ser uma estrela cadente
Morrendo no infinito…
Se é vontade de Deus
Eu ter de lutar, de gemer,
E de sentir o que sente
O dia fugindo desfeito
Nos dedos frios da noite…
Se é vontade de Deus
Eu ser una ou ser múltipla…
Ser segundo, hora ou dia…
Ser raiz feita flor
Ou ser um caminho aberto
Por onde os pobres desfilam,
Esse será o meu destino
E será minha ventura…
Porque aquele que procura
E anseia por um além
Encontra sempre um bem
No mal que a vida tem.

_____

Ilustração: Cleto de Assis

Povo que canta é povo feliz

O povo é, no fundo, a origem de todas as coisas belas e nobres, inclusive da boa música! […] Tenho uma grande fé nas crianças. Acho que delas tudo se pode esperar. Por isso é tão essencial educá-las. É preciso dar-lhes uma educação primária de senso ético, como iniciação para uma futura vida artística. […] A minha receita é o canto orfeônico. Mas o meu
canto orfeônico deveria, na realidade, chamar-se educação social pela música. Um povo que sabe cantar está a um passo da felicidade; é preciso ensinar o mundo inteiro a cantar.

Heitor VILLA-LOBOS

Há exatos 50 anos morria, no Rio de Janeiro – cidade onde nasceu, a 5 de março de 1887 – o maestro e compositor Heitor Villa-Lobos. Considerado o maior expoente da música do Modernismo no Brasil, destacou-se por ter sido o principal responsável pela descoberta de uma linguagem misical peculiarmente brasileira, compondo obras que enaltecem o espírito nacionalista, com a incorporaçao de elementos das canções folclóricas, populares e indígenas.

Biografia

Filho de Noêmia Monteiro Villa-Lobos e Raul Villa-Lobos, foi desde cedo incentivado aos estudos, pois sua mãe queria vê-lo médico. No entanto, seu pai, funcionário da Biblioteca Nacional e músico amador, deu-lhe instrução musical e adaptou uma viola para que o pequeno Heitor iniciasse seus estudos de violoncelo. Aos 12 anos, órfão de pai, Villa-Lobos passou a tocar violoncelo em teatros, cafés e bailes. Paralelamente, interessou-se pela intensa musicalidade dos “chorões”, representantes da melhor música popular do Rio de Janeiro, e, neste contexto, desenvolveu-se também no violão. De temperamento inquieto, aos 18 anos sai de casa e passa a percorrer o interior do Brasil, em suas primeiras etapas de um processo de absorção de todo o universo musical brasileiro. Em 1913, Villa-Lobos casou-se com a pianista Lucília Guimarães e fixou-se no Rio de Janeiro. Em 1915 realiza o primeiro concerto com obras de sua autoria.

Em 1922, Villa-Lobos participa da Semana da Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo. No ano seguinte embarca para Europa, regressando ao Brasil em 1930, quando realiza turnê por sessenta e seis cidades. Realiza também, nesse ano, a “Cruzada do Canto Orfeônico“, no Rio de Janeiro. Seu casamento com Lucília termina na década de 1930 . Depois de operar-se de câncerm em 1948, casa-se com Arminda Neves d’Almeida, a Mindinha, uma ex-aluna que, depois de sua morte, se encarrega da divulgação de uma obra monumental. O impacto internacional dessa obra fez-se sentir especialmente na França e EUA, como se verifica pelo editorial que o The New York Times dedicou-lhe no dia seguinte a sua morte. Villa-Lobos nunca teve filhos.

Obra

As primeiras composições de Villa-Lobos trazem a marca dos estilos europeus da virada do século XIX para o século XX, sendo influenciado principalmente por Wagner, Puccini, pelo alto romantismo francês da escola de Frank e logo depois pelos impressionistas. Teve aulas com Frederico Nascimento e Francisco Braga.

Nas Danças características africanas (1914), entretanto, começou a repudiar os moldes europeus e a descobrir uma linguagem própria, que viria a se firmar nos bailados Amazonas e Uirapuru (1917). O compositor chega à década de 1920 perfeitamente senhor de seus recursos artísticos, revelados em obras como a Prole do Bebê, para piano, ou o Noneto (1923). Violentamente atacado pela crítica especializada da época, viajou para a Europa, em 1923, com o apoio do mecenas Carlos Guinle e, em Paris, tomou contato com toda a vanguarda musical da época. Depois de uma segunda permanência na capital francesa (1927-1930), voltou ao Brasil a tempo de engajar-se nas novas realidades produzidas pela Revolução de 1930.

Apoiado pelo Estado Novo, Villa-Lobos desenvolveu amplo projeto educacional, em que teve papel de destaque o canto orfeônico, e que resultou na compilação do Guia prático (temas populares harmonizados).
À audácia criativa dos anos 1920 (que produziram as Serestas, os Choros, os Estudos para violão e as Cirandas para piano) seguiu-se um período “neobarroco”, cujo carro-chefe foi a série de nove Bachianas brasileiras (1930-1945), para diversas formações instrumentais. Em sua obra prolífera, o maestro combinou indiferentemente todos os estilos e todos os gêneros, introduzindo sem hesitação materiais musicais tipicamente brasileiros em formas tomadas de empréstimo à música erudita ocidental. Procedimento que o levou a aproximar, numa mesma obra, Johann Sebastian Bach e os instrumentos mais exóticos. (Ref.: Wikipédia)

Em homenagem à nossa maior expressão musical, postamos alguns videos emprestados do Youtube. O primeiro, o Choro N° 1, composto em 1920 para violão solo, é executado pelo exímio violonista brasileiro Turibio Soares Santos (arquivo Raíssa Amaral & Sergio Napoleão).

No segundo video, Eduardo Lopes conduz a Orquestra Nacional de Lyon (França), que executa o Prelúdio da Bachiana Brasileira n° 4.

E, finalmente, o famoso Trenzinho Caipira (ou Trenzinho do Caipira), parte integrante das Bachianas Brasileiras nº 2, que se caracteriza por imitar o movimento de uma locomotiva com os instrumentos da orquestra. No video, a música é interpretada pelo conmjunto Boca Livre, em gravação de 2007. Mas a homenagem não acaba por aqui. Como estamos em um blog de poesia, transcrevemos a letra do Trenzinho Caipira, criada pelo poeta Ferreira Gullar.

Choro n°. 1, executado por Turíbio Santos


Prelúdio da Bachiana Brasileira n° 4 – Orquestra Nacional de Lyon, conduzida por Eduardo Lopes

Trenzinho Caipira – Conjunto Boca Livre

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Trenzinho caipira

Letra de Ferreira Gullar

á vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar

Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra, vai pelo mar

Cantando pela serra ao luar
Correndo entre as estrelas a voar
Luar, no ar, no ar, no ar

O povo é, no fundo, a origem de todas as coisas belas e nobres, inclusive

da boa música! […] Tenho uma grande fé nas crianças. Acho que delas

tudo se pode esperar. Por isso é tão essencial educá-las. É preciso dar-lhes

uma educação primária de senso ético, como iniciação para uma

futura vida artística. […] A minha receita é o canto orfeônico. Mas o meu

canto orfeônico deveria, na realidade, chamar-se educação social pela

música. Um povo que sabe cantar está a um passo da felicidade; é preciso

ensinar o mundo inteiro a cantar.

HeitorVILLA-LOBOS

Um trovador do Norte do Paraná

O poeta José Marins distribuiu algumas folhas de trovas de Antonio Augusto de Assis, de Maringá. Gostei e solicitei ao Marins que ampliasse as informações sobre o poeta dos três A, para publicação no Banco da Poesia. Pedido rápido e resposta idem. E eis um novo depositante de nosso Banco, que mostra não só uma pequena coleção de quadras, mas também poemínimos e um lírico soneto.

Bem vindo seja, augusto Antonio e, ainda por cima, de Assis. E mil agradecimentos ao José Marins, pela colaboração.

aaassisAntonio Agusto de Assis é poeta e trovador. Nasceu em São Fidélis, Rio de Janeiro,
no dia 07 de abril de 1933. Hoje aposentado, foi professor do Departamento de Letras
da Universidade Estadual de Maringá e reside naquela cidade do Norte do Paraná.
Integra a Academia de Letras de Maringá e a União Brasileira de Trovadores (seção
de Maringá).Editor do boletim Trovia, da UBT – Maringá e do jornal  Trovamar, da UBT – Balneário Camboriú.

Publicações do autor: Robson; Itinerário; Coleção Cadernos de A. A. de Assis – 10 volumes; O português nosso de cada dia; Poêmica; Caderno de trovas; Autor dos versos da “Missa em trovas”.

Livros disponíveis na Internet (e-books) Tábua de Trovas; Trovas Brincantes; Cem trovas no Cen (Cá Entre Nós), antologia de vários autores; 60 Trovas de Amor, antologia; 60 Trovas de Humor, antologia; 60 Trovas de Saudade e Triversos.

Por um beijo

Beijos

Por um beijo eu lhe dou o que sou e o que tenho:
os bons sonhos que sonho, as plantinhas que planto,
a pureza, a alegria, as cantigas que eu canto,
e o meu verso se acaso houver nele arte e engenho.

Por um beijo eu lhe dou, se preciso, o meu pranto,
as angústias da luta em que há tanto me empenho,
as saudades que trago do chão de onde venho,
as promessas que eu faço, piedoso, ao meu santo.

Por um beijo eu lhe dou meus anseios de paz,
minha fé na ternura e no bem que ela faz,
meu apego à esperança, que insisto em manter.

Por um beijo, um só beijo, um momento de amor,
eu lhe dou meu sorriso, eu lhe dou minha dor,
o meu todo eu lhe dou, dou-lhe inteiro o meu ser!

Poeminhas (à moda de haicais)

Florzinha caipira.
Até o girassol, tão nobre,
ao vê-la suspira.

●●●

Um pingo… dois pingos…
não parou mais de pingar.
E se fez o mar.

●●●

Sempre assim supus.
Pirilampo ou vaga-lume,
tanto faz: é luz.

●●●

Trenzinho da serra…
Pa… Pa-ra-ná… Pa-ra-ná…
pra Paranaguá.

●●●

Releio Pessoa.
Finjo tão completamente,
que a tristeza voa.

A. A. de Assis é o trovador mais premiado do Brasil, em certames nacionais, estaduais e internacionais.

Moderno, poupa viagem
o novo pombo correio:
– Hoje ele manda a mensagem
numa boa, por e-mail…

●●●

De dia caleja a palma
o irmão que cultiva o chão;
de noite alivia a alma
nas cordas de um violão!

●●●
Num tempo em que tantas guerras
enchem o mundo de terror
benditos os que na terra
semeiam versos de amor.

A volta do boêmio

Capa do livro "Emílio de Menezes, o último boêmio, de Raimundo Menezes. Livraria Martins Editorta, 1956

Capa do livro "Emílio de Menezes, o último boêmio, de Raimundo Menezes. Livraria Martins Editora, 1956

Não, não se trata do melancólico samba-canção de Adelino Moreira, imortalizado por Nelson Gonçalves. Refiro-me a Emílio de Menezes, cujos versos e momentos satíricos foram postados aqui dias atrás.

Um curioso livro, publicado no Brasil em 1932, resultado de trabalhio psicográfico do médium Chico Xavier, reuniu poemas de vários autores já falecidos, sob o título de Paranaso de Além Túmulo. Entre os poetas da inusitada coletânea, aparece o nosso Emílio, que demonstra não ter perdido a graça, mesmo depois de morto. Mas, nas entrelinhas, confessa-se curado do humor sarcástico de seus tempos de boêmia terrestre, conservando, entretanto, a veia cômica que popularizou seus versos por aqui, em tempos idos.

São dois sonetos de contrição bem humorada que, verdadeiros ou não, preservam, sem dúvida alguma, o conhecido estilo do poeta paranaense.

Eu mesmo

Eu mesmo estou a ignorar se posso
chamar-me ainda o Emílio de Meneses,
procurando tomar o tempo vosso,
recitando epigramas descorteses.

Como hei de versejar? Rimas em osso
são difíceis… contudo, de outras vezes,
eu sabia rezar o Padre-Nosso
e unir meus versos como irmãos siameses.

Como hei de aparecer? O que é impossível
é ser um santarrão inconcebível,
trazendo as luzes do Evangelho às gentes…

Sou o Emílio, distante da garrafa,
mas que não se entristece e nem se abafa,
longe das anedotas indecentes.

AnjoEmilio

Aos meus amigos da Terra

Amigos, tolerai o meu assunto,
(sempre vivi do sofrimento alheio).
Relevai, que as promessas de um defunto
são coisa inda invulgar no vosso meio.

Apesar do meu cérebro bestunto,
o elo que nos unia, conservei-o,
como a quase saudade do presunto,
que nutre um corpo empanturrado e feio.

Espero-vos aqui com as minhas festas,
nas quais, porém, o vinho não explode,
nem há cheiro de carnes ou cebolas.

Evitai as comidas indigestas,
pois na hora do “salva-se quem pode”,
muita gente nem fica de ceroulas…

Eu mesmo [Emílio de Meneses] 
 
Eu mesmo estou a ignorar se posso
chamar-me ainda o Emílio de Meneses,
procurando tomar o tempo vosso,
recitando epigramas descorteses.
 
Como hei de versejar? Rimas em osso
são difíceis... contudo, de outras vezes,
eu sabia rezar o Padre-Nosso
e unir meus versos como irmãos siameses.
 
Como hei de aparecer? O que é impossível
é ser um santarrão inconcebível,
trazendo as luzes do Evangelho às gentes...
 
Sou o Emílio, distante da garrafa,
mas que não se entristece e nem se abafa,
longe das anedotas indecentes.
 
 
Aos meus amigos da Terra
 
Amigos, tolerai o meu assunto,
(sempre vivi do sofrimento alheio).
Relevai, que as promessas de um defunto
são coisa inda invulgar no vosso meio.
 
Apesar do meu cérebro bestunto,
o elo que nos unia, conservei-o,
como a quase saudade do presunto,
que nutre um corpo empanturrado e feio.
 
Espero-vos aqui com as minhas festas,
nas quais, porém, o vinho não explode,
nem há cheiro de carnes ou cebolas.
 
Evitai as comidas indigestas,
pois na hora do "salva-se quem pode",
muita gente nem fica de ceroulas...

O espólio de Fernando Pessoa

Ontem, 30.07.2009, foi aprovado pelo Conselho de Ministros de Portugal o decreto de classificação do Espólio Documental de Fernando Pessoa, tornando-o  bem de interesse nacional.

Na exposição de motivos encaminhada ao Ministro da Cultura, o diretor geral da Biblioteca Nacional de Portugal, Jorge Couto, propôs a classificação do espólio como bem de interesse nacional ou Tesouro Nacional, “compreendido como a universalidade de fato composta por todos os documentos produzidos ou reunidos por Fernando Pessoa, seja na forma de manuscritos autógrafos, isolados ou integrados em documentos de terceiros, assinados ou não, de datiloscritos ou tiposcritos, com ou sem intervenção autógrafa, assinados ou não, bem como todos os documentos biográficos de Fernando Pessoa, assinados ou não, e os documentos impressos que se reconheça terem pertencido à sua biblioteca e ostentem marcas autógrafas de utilização pelo Poeta”.

O fato é importante porque, até há pouco tempo, o espólio literário de Fernando Pessoa, em sua maior parte por ele arquivado em um baú , em páginas manuscritas ou datilografadas e guardadas em envelopes sem nenhuma classificação ou ordem, estavam sob a guarda dos herdeiros de FP ou espalhado entre amigos ou estudiosos. Agora, além da guarda material, a Biblioteca nacional poderá estabelecer uma classificação mais rigorosa, apesar de ser difícil determinar datas de documentos que o poeta não datou e outros que não assinou.

A famisa arca de Fernando Pessoa. O móvel foi vendido, recentemente, em leilão, para um admirador desconhecido, por mais de 50 mil euros. Ao fundo, a estante delivros de sua biblioteca. Sobrepus as assinaturas dos princpais heterônimos, mais a dele mesmo e a de Alxader Searh, um semi=heterônimo de sua juventude.

A famosa arca de Fernando Pessoa. O móvel foi vendido, recentemente, em leilão, para um admirador desconhecido, por mais de 50 mil euros. Ao fundo, a estante de livros de sua biblioteca. Sobrepus as assinaturas dos principais heterônimos, mais a dele mesmo e a de Alexander Searh, um semi-heterônimo de sua juventude.

Alfonsina Storni: a palavra debulhada em cinza

alfonsina1Alfonsina Storni nasceu em Sala Capriasca, Suíça, em 29 de maio de 1892. Imigrou com os seus pais para a província de San Juan na Argentina em 1896. Em 1901, muda-se para Rosario (Santa Fé), onde tem uma vida com muitas dificuldades financeiras. Trabalhou para o sustento da família como costureira, operária, atriz e professora.

Descobre-se portadora de câncer no seio em 1935. O suicídio de um amigo, o também escritor Horacio Quiroga, em 1937, abala-a profundamente.

Em 1938, três dias antes de se suicidar, envia de um hotel de Mar del Plata para um jornal, o soneto Voy a Dormir, que aqui reproduzimos.

Consta que suicidou-se andando para dentro do mar — o que foi poeticamente registrado na canção Alfonsina y el mar, gravada por Mercedes Sosa (veja abaixo). Seu corpo foi resgatado do oceano no dia 25 de outubro de 1938. Alfonsina tinha 46 anos. (extrato de Wikipédia)

Deixou dez livros de poesia, duas peças teatrais e um volume de ensaios. Toda sua obra reflete dramatismo, luta e uma audácia inusual para a época. Sua temática é, sobretudo, amorosa, feminista e profunda, onde se nota um caráter singular, muitas vezes marcado pela neurose.

Voy a dormir

Dientes de flores, cofia de rocío,
manos de hierbas, tú, nodriza fina,
tenme prestas las sábanas terrosas
y el edredón de musgos escardados.

Voy a dormir, nodriza mía, acuéstame.
Ponme una lámpara a la cabecera;
una constelación; la que te guste;
todas son buenas; bájala un poquito.

Déjame sola: oyes romper los brotes…
te acuna un pie celeste desde arriba
y un pájaro te traza unos compases

para que olvides… Gracias. Ah, un encargo:
si él llama nuevamente por teléfono
le dices que no insista, que he salido…

Vou dormir

Dentes de flores, touca de de orvalho,
mãos de ervas, tu, fâmula fina,
deixa-me prontos os lençóis terrosos
e o cobertor de musgos cardados.

Vou dormir, aia minha, deita-me.
Põe-me uma lâmpada à cabeceira;
uma constelação; a que mais gostes;
todas são boas; baixa-a um pouquinho.

Deixa-me só: ouves romper os brotos…
te nina um pé celeste lá de cima
e um pássaro te traça alguns compassos

para que esqueças… Obrigada. Ah, um encargo:
se ele novamente chamar por telefone
tu dirás que não insista, que eu saí…

passosNaAreia

¡Adiós!

Las cosas que mueren jamás resucitan,
las cosas que mueren no tornan jamás.
¡Se quiebran los vasos y el vidrio que queda
es polvo por siempre y por siempre será!

Cuando los capullos caen de la rama
dos veces seguidas no florecerán…
¡Las flores tronchadas por el viento impío
se agotan por siempre, por siempre jamás!

¡Los días que fueron, los días perdidos,
los días inertes ya no volverán!
¡Qué tristes las horas que se desgranaron
bajo el aletazo de la soledad!

¡Qué tristes las sombras, las sombras nefastas,
las sombras creadas por nuestra maldad!
¡Oh, las cosas idas, las cosas marchitas,
las cosas celestes que así se nos van!

¡Corazón… silencia!… ¡Cúbrete de llagas!…
¿de llagas infectas? ¡cúbrete de mal!…
¡Que todo el que llegue se muera al tocarte,
corazón maldito que inquietas mi afán!

¡Adiós para siempre mis dulzuras todas!
¡Adiós mi alegría llena de bondad!
¡Oh, las cosas muertas, las cosas marchitas,
las cosas celestes que no vuelven más! …

Adeus!

As coisas que morrem jamais ressuscitam,
as coisas que morrem não voltam jamais.
Quebram-se os vasos e o vidro que resta
é pó para sempre e por sempre será!

Quando os botões despencam dos ramos
duas vezes seguidas não florecerão…
As flores mutiladas pelo vento ímpio
se esvaem para sempre, jamais voltarão!

Os dias acabados, os dias perdidos,
os dias inertes não mais tornarão!
Que tristes as horas que se debulharam
sob os ásperos golpes da solidão!

Que tristes as sombras, as sombras nefastas,
as sombras criadas por nossa maldade!
Oh, as coisas idas, as coisas murchadas,
as coisas celestes que nos abandonam!

Coração… silencia!… Cobre-te de chagas!…
De chagas infectas? Cobre-te de mal!…
Que tudo o que chegue faleça ao tocar-te,
coração maldito que inquietas minha ânsia!

Adeus para sempre, ó delícias todas!
Adeus alegria plena de bondade!
Oh, as coisas mortas, as coisas murchadas,
as coisas celestes que não voltam mais! …

Alfonsina e o Mar

_____________

Tradução e foto-grafismos: C. de A.

Mais um depósito conquistado de Saramar

Do teu amor, que quisera meu

Beija-flor
Imprevista, os espelhos me mostram
outra mulher, deste teu amor iluminada.
E perdem meus pés, o chão,
passarinho pela casa em cantos desafinados
sem fala, sem medo, sem mais nada
senão o teu vôo riscando meu mundo
em rabiscos delicados de amor.

E sigo, brilhando sob o teu olhar
à quentura do teu beijo e o meu morno ventre
flor e o seu sol presos num instante
antes de todas as primaveras, atrasadas.

Enfim, em alva liberdade, sei e sabes
das palavras em lugar dos nomes
“minha amada”, meu amor
e da mímica dulcíssima de beijos
no silêncio azul das madrugadas.

___________

Ilustração: C. de A.

Para o dia de hoje, um duplo soneto a quatro mãos

Há cristãos e não cristãos. Há católicos e não católicos. Há evangélicos, há protestantes, budistas, espíritas, existem os que se dizem ateus, há os agnósticos. Há o islamismo e o judaísmo.

Mas há também a Poesia, uma espécie de religião universal que desvenda segredos da vida, depura sensações, faz da palavra magia. Por isso, neste feriado, onde os católicos se reunem para lembrar a última ceia de Cristo, recolhi em Asamblea de Palabras o poema Corpus Christi – escrito pelos irmãos Antonio e Carlos Murciano, nascidos em Arcos de la Frontera, Cádiz, Espanha,  en 1931 e 1929, respectivamente – e publicado no livro Poemas para orar (Biblioteca de autores cristianos, Madrí, 2004, ed. de Miguel Combarros). É poesia, merece a leitura por todos de todas as crenças. C. de A.

CorpusChristi2009Antonio e Carlos Murciano

Corpus Christi

Todo fue así: tu voz, tu dulce aliento
sobre un trozo de pan que bendijiste
que en humildad partiste y repartiste
haciendo despedida y testamento.

“Así mi cuerpo os doy como alimento…”
¡Qué prodigio de amor! Porque quisiste,
diste tu carne al pan y te nos diste,
Dios, en el trigo para el sacramento.

Y te quedaste aquí, patena viva;
virgen alondra que le nace al alba
de vuelo siempre y sin cesar cautiva.

Hostia de nieve, nube, nardo, fuente;
gota de luna que ilumina y salva.
Y todo ocurrió así, sencillamente.

Sencillamente, como el ave cuando
inaugura, de un vuelo, la mañana;
sencillamente, como la fontana
canta en la roca, agua de luz manando:

sencillamente, como cuando ando,
como cuando Tú andabas la besana,
cuando calmabas sed samaritana
cuando te nos morías perdonando.

Sencillamente. Hora de paz. ¡Qué leves
tus manos para el pan, para el amigo!
Cena de doce y Dios. Noche de Jueves.

Y era en Jerusalén la primavera.
Y era blanco milagro ya aquel trigo.
Sencillamente: “Éste es mi cuerpo”. Y era.

Corpus Christi

Tudo foi assim: tua voz, teu doce alento
sobre um naco de pão que bendissestes
que em humildade partistes e repartistes
fazendo despedida e testamento.

“Assim meu corpo vos dou como alimento…”
Que prodígio de amor! Porque quisestes,
destes tua carne ao pão e ela nos destes,
Deus, dentro do trigo para o sacramento.

E aquí permanecestes, pátena viva;
virgem cotovia que aparece à alva
sempre do voo e sem cessar cativa.

Hóstia de neve, nuvem albescente,
gota de lua que ilumina e salva.
E tudo ocorreu assim, tão simplesmente.

Simples assim, como a ave quando
inaugura, com um voo, a aurora;
simplesmente, como a canora
água na pedra, vida e luz manando.

Simplesmente, como quando ando,
como quando Tu andavas na abesana,
quando pedias água à samaritana
quando agonizavas, já nos perdoando.

Simplesmente. Hora de paz. São teus
o pão, o vinho, o gesto doce e  amigo.
Quinta à noite. Ceia de doze e Deus.

E era em Jerusalém a primavera.
E era alvo milagre já aquele trigo.
Simplesmente: “Este é meu corpo”. E era.

xxxxxxxxxxxxxxTradução: C. de A.

Tudo foi assim: tua voz, teu doce alento

sobre um naco de pão que bendissestes

que em humildade partistes e repartistes

fazendo despedida e testamento.

“Assim meu corpo vos dou como alimento…”

Que prodígio de amor! Porque quisestes,

destes tua carne ao pão e ela nos destes,

Deus, dentro do trigo para o sacramento.

E aquí permanecestes, patena viva;

virgem cotovia que aparece à alva

sempre do voo e sem cessar cativa.

Hóstia de neve, nuvem albescente,

gota de lua que ilumina e salva.

E tudo ocorreu assim, tão simplesmente.

Simples assim, como a ave quando

inaugura, com um voo, a aurora;

simplesmente, como a canora

água na pedra, vida e luz manando:

simplesmente, como quando ando,

como quando Tu andavas na abesana,

quando acalmavas sede samaritana

quando agonizavas, nos perdoando.

Simplesmente. Hora de paz. São teus

o pão, o vinho, o gesto doce e  amigo.

Quinta à noite. Ceia de doze e Deus.

E era em Jerusalem a primavera.

E era alvo milagre já aquele trigo.

Simplesmente: “Este é meu corpo”. E era.