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O Poder do X

Céus e Infernos de Curitiba, por Dante

Dante Mendonça lançou ontem (28/03/2009) seu livro Curitiba – Melhores defeitos, piores qualidades, com o selo da Bernúncia Editora, de Florianópolis. O cenário escolhido foi o restaurante do Passeio Público, que já foi ponto de encontro de artistas, jornalista e políticos, quando era “Lá no Pasquale”. Muita gente prestigiando o evento, acompanhado também pelo editor Vinicius Alves e sua esposa Teresa, além de Maí Nascimento Mendonça, identificada no livro como “companheira de vida, revisora nas dúvidas e coautora nas certezas”.
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Dante Mendonça e seu editor Vinicius Alves, com Cleto de Assis (à esquerda) como papagaio de pirata

O humor fino de Dante, que nasceu na charge e caminha também perfeitamente na crônica de costumes da cidade que adotou há 39 anos, torna ainda mais atraentes as qualidades de Curitiba e até mesmo possíveis defeitos que são apenas aspectos curiosos de uma cidade com muita personalidade. Mas não há uma Curitiba maniqueista, dividida entre o céu e inferno. Até porque o tema já foi esgotado por outro Dante, o italiano, que não possuia o humor sutil do Dante curitibano. Curitiba é uma cidade única, com qualidade de vida invejável e, mesmo quando seu céu anuncia chuva e frio, há bons motivos para o curitibano se orgulhar de sua terra. Dante conta muitos desses motivos em saborosas crônicas selecionadas entre as publicadas nos últimos oito anos nos jornais O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná.

Mas ele recolheu jóias de outros escritores e artistas. As capas interiores do livro sãoi ilustradas com o mapa afetivo de Curitiba elaborado por Poty Lazzarotto, outro curitibano ilustre. Reproduz desenhos de colegas – como Solda e Tiago Recchia. Dante ganhou também orelha especial lavrada por Jaime Lerner, que diz ser o livro “leitura obrigatória para curitibanos e não curitibanos”. Transcrevo, abaixo, o aval de Lerner. Na tarde de sábado, li quase todo o livro, revendo lugares, personagens e, sobretudo, as idiossincrasias da urbe curitibana, habitada primitivamente por índios Tingui (que perderam o trema, mas conservam o hiato), todos comedores de pinhão, e desde o Séc. XVII povoada por brasileiros e estrangeiros de todos os jeitos e cores (tem até loiros de olhos azuis, presidente Lula!) que continuam comendo pinhão e vivem uma fantástica sinfonia racial. Muita gente já falou e escreveu sobre Curitiba. Mas Dante Mendonça dá a sua cidade adotiva, que hoje completa 316 invernos, o cartão de visitas que lhe faltava. Com muita graça. c. de a.

CUQUE COM ROLLMOPS

Jaime Lerner

Afinal, que é este Catarina que continua frestando Curitiba e tentando colocar consoantes eslavas em seu sotaque, misturando cuque com rollmops?

Pois este é Dante Mendoça, de Nova Trento. Um renascentista que mescla o Concílio de Trento (1545-1563), que discutiu as reformas que trouxeram grupos dissidentes de volta à igreja, com a Câmara Municipal de Nova Trento, cuja mão Dona Cremilda foi presidente e abriu ao questionamento mundial as reformas de sua cidade.

Curitiba é conhecida como túmulo de orquestras espanholas (Suspiros de Espanha, Castrito e Csassino de Sevilha), porque os músicos acabavam se apixonando por alguma polaca e aqui encerravam suas carreiras. Também assim termibou a carreira de boêmio do Dante ao se apaixonar pela Maí.
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Até hoje não se sabe se a união do Dante com a Maí inspirou o casamento de Michael Corleone com sua italianinha, no filme O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola, ou se foi o cntrário. O que se sabe é que foi a Maí que botou o Dante nos trilhos.

Dante começou como mascote do time de cartunistas de Curitiba e hoje navega nas letras, à altura de seus mais ilustres cronistas.

O livro é um delicioso passeio pela história de Curitiba. Leitura obrigatória para curitibanos e não curitibanos, neotrentinos entre eles.

Este livro marca a passagem do Dante do desenho para a crônica, do sonho para a descrição do mesmo.

E agora com vocês, Vila Nossa Senhora da luz e Bom Jesus dos Pinhais, doravante Curitiba, e seu bardo emérito, doravante Dante.

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Livro: Curitiba: melhores defeitos, piores qualidades.
Autor: Dante Mendonça.
Editora: Bernúncia Editora.
Páginas: 287.
Preço: R$ 50,00

Está chegando a edição brasileira de Poemas para la Libertad

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Até agora inédito no Brasil, o sucesso editorial de Poemas para a Liberdade, do poeta Manoel de Andrade, foi tão considerável quanto seu alcance político. A obra estreou em 1970, na Bolívia. A 2ª edição, colombiana, esgotou-se em poucas semanas nas livrarias de Cali e Bogotá. A 3a edição, lançada em San Diego, em 1971, espalhou-se pela Califórnia e pelo sudoeste dos EUA, levada pelos estudantes e intelectuais chicanos. Suas primeiras edições panfletárias, lançadas em 1970 em Cuzco e Arequipa, espalharam-se pelo meio estudantil do Peru e percorreram a América nas mochilas de estudantes latino-americanos. Seus poemas foram publicados em jornais, revistas, opúsculos, cartazes e panfletos.

A nova edição de Poemas para a Liberdade, agora bilíngue, será lançada em Curitiba no próximo dia 15 de abril, a partir das 20 horas, no Espaço Cultural Alberto Massuda (Rua Trajano Reis, 453 -Centro Histórico)

O autor, Manoel de Andrade, é catarinense radicado no Paraná, onde se formou em Direito. Deixou o Brasil em março de 1969, perseguido em razão da panfletagem de seu poema Saudação a Che Guevara, em uma época em que sua poesia começava a ser conhecida nacionalmente por meio de jornais e publicações como a Revista Civilização Brasileira. Seu relacionamento com o movimento estudantil da Bolívia lhe custo a expulsão daquele país, em fins de 1969.  Ali havia chegado em setembro para se integrar ao movimento guerrilheiro comandado por Inti Peredo. Foi preso e expulso do Peru e da Colômbia em 1970. Seus Poemas para la Libertad tiveram uma trajetória política e uma aventura literária que dificilmente outro livro tenha tido. Como falam da luta armada e cantam a saga guerrilheira em uma América Latina então controlada por ditaduras militares, cruzaram clandestinamente certas fronteiras, como uma mala com 200 exemplares da edição boliviana, que chegou a Guayaquil por via fluvial, trazida do Peru por contrabandistas equatorianos.

Poemas para a Liberdade consta de vários catálogos da literatura latino-americana e seus poemas foram inluídos em várias antologias, como Poesia Latinoamericana – Antología Bilingue, publicada em 1998 pela Epsilon Editores de México, em que o autor partilha suas páginas com consagrados poetas, como Mario Benedetti, Juan Gelman e Jaime Sabines.

A capa do livro da nova edição foi inspirada em cartaz de um recital do autor em 1970, na Universidad de Los Andes, Bogotá, Colômbia.

Sobre o autor

Manoel de Andrade nasceu em 1940, em Rio Negrinho, SC. Graduado em Direito no Paraná, começa a publicar seus versos na imprensa curitibana em 1962. Em 1965, recebe o 1º prêmio no Concurso de Poesia Moderna promovido pelo Centro de Letras do Paraná. Ainda em 1965, participa da Noite da Poesia Paranaense, no Teatro Guaíra. Em 1966, a Revista Forma publica seu premiado Poema Brabo. Em 1968, sua Canção para os homens sem face é publicada pela Revista Civilização Brasileira e, ainda naquele ano, junto com Dalton Trevisan e Jamil Snege, é apontado pela imprensa local, como um dos três destaques literários no Paraná. Na época, foi chamado de “poeta maior” pelo jornalista Aroldo Murá Haygert e, posteriormente, destacado pelo crítico Wilson Martins pela sua “grande poesia”. Manoel de Andrade fugiu do Brasil em março de 1969, pela repercussão da panfletagem de seus poemas políticos. Atravessou 15 países da América publicando livros,promovendo debates, dando palestras e declamando seus versos em teatros, universidades e sindicatos. Seu primeiro livro, Poemas para la Libertad é publicado em junho de 1970 na Bolívia e, em janeiro de 1971, Canción de amor a América y otros poemas é editado na Nicarágua e em El Salvador. Em fevereiro daquele ano, Francisco Julião, exilado no México, abre seu primeiro recital de poesia na capital mexicana e, em seguida participa, em Tampico, das comemorações do 37º aniversário de morte de Augusto Cesar Sandino. Em março, viaja à Califórnia, para palestras e recitais nas universidades de San Diego, Los Angeles, Berkeley e São Francisco. Em agosto é convidado pela Universidade Central do Equador a apresentar um ciclo de palestras sobre problemas centro-americanos. Em 1972 retorna anonimamente ao Brasil.

Afastado 30 anos da literatura, participa, em 2002, da coletânea paranaense Próximas Palavras. Volta a publicar em 2007, com o lançamento de seu livro Cantares, publicado pela Escrituras Editora, também responsável pela edição brasileira de Poemas para a Liberdade.

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Retrato do poeta quando jovem, de 1964, obra do artista Juarez Machado
41x61cm – nanquim e guache sobre papel

Francisco Cenamor, poeta de Leganés

Conheci Francisco Cenamor em uma visita ao Palavras, todas palavras, dias atrás. Vidal publicou um poema do poeta espanhol e eu, logo em seguida a leitura, deixei um elogio ao poema e ao poeta. No dia seguinte, ao retornar ao Palavras…, notei que havia outro registro no post do poema. Curioso, fui ler o que pensava ser comentário de outro leitor e, para minha surpresa, era o próprio poeta a agradecer minha leitura.

Como a assinatura estava lincada,viajei instantaneamente até a Espanha e me deparei com um blog literário, mantido por Cenamor, com farto conteúdo. Conheci seu perfil de trabalho, sua intensa atividade de blogueiro poético e a imensa rede de enlaces que já possui. Lá estão vários de seus livros em versão eletrônica, que incluem poemos, contos e peças teatrais.

Outro impulso e enviei um e-mail ao poeta, identificando-me e pedindo permissão para publicar seu trabalho no Banco da Poesia. Sua atenção foi imediata. Poucas horas mais tarde, chegava sua resposta, na qual não só permitia a publicação de qualquer poema seu (“puedes usar para tu blog cuantos poemas quieras. En eso no hay problema, al contrario” ), mas também dizendo estar abeerto a um intercâmbio com este nascente blog brasileiro (“será un honor colaborar en un acercamiento entre estos dos idiomas nuestros, tan bellos para la poesía).

Portanto, comecemos com alguns dados biográficos do poeta, traduzidos de seu blog Asamblea de Palabras (Assembléia de Palavrashttp://franciscocenamor.blogspot.com).

Biografia

franciscocenamorfotografic2a6c3bcapriscillalumbrerasmaquillajealejandracantero09Francisco Cenamor gosta de dizer que nasceu em Leganés (região metroplitana de Madri), em 1965. A parteira disse a sua mãe que, pelo umbigo do bebê, podia dizer que seu filho ia ser artista. Curioso, porém certo. Filho de pais que possuíam um pequeno negócio familiar, destacou-se no colégio até os 14 anos, quando decidiu abandonar os estudos e trabalhar no negócio da família: um açougue de carne de cavalo no bairro madrileno de Vallekas.

Desde menino se dedicou ao teatro e à literatura. Mas continou trabalhando em açougues até os 17 anos. Depois trabalhou em mil atividades, inclusive recolhendo papel e ferro velho. Seu feito mais destacado, nesses anos, além de pertencer desde muito jovem a numerosas associações juvenis e sociais, foi ter se tornado a Quarta Dama de Honra nas festas patronais de Leganés em 1984, notícia que deu a volta ao mundo e obrigou a mudar as normas de participação nos concursos de misses. (Leia a notícia aqui) Também ganhou, no período, algum prêmio literário.

Por fim, em um dia de…, não recordo o ano, passou a trabalhar na revista de atualidades sociais e culturais Página abierta, onde depurou sua técnica literária e adquiriu prática na condensação de textos. Seis anos mais tarde foi admitido como auxiliar de biblioteca na Real Academia Espanhola. Em sua biblioteca descobre milhares de obras em verso e prosa em castelhano, que devora com avidez. Também nessa época entra en contato com um grupo de poetas pela primeira vez, no qual se encontravam alguns jovens que, mais tarde, dariam o que falar no mundo literário.

Em novembro de 2004 abandona a Real Academia para viver da interpretação e de outros trabalhos, inclusive como professor de teatro. Aparece, então, em capítulos de conhecidas séries de televisão, anúncios publicitários e diversos filmes espanhóis.

Atualmente edita o blog literário Asamblea de Palabras e coordena o Clube de Leitura da Universidade Carlos III.

Participa nos Encontros Literários em instituições de ensino superior da Direção Geral do Livro, dentro do Plano de Fomento da Leitura.

Seus libros publicados são:

Amando nubes. Talasa Ediciones, Madri, 1999.
Ángeles sin cielo. Ediciones Vitruvio, Madri, 2003.
Asamblea de palabras. Ediciones Vitruvio, Madri, 2007.

Aparece nas antologias:

Poemas contra la guerra. Edições Vitruvio, Madri, 2003.
Salida de emergencia. Nosomoscómodos Producciones, Madri, 2004.
Pázsalo. Multitud en rebelión. Editorial Fundamentos e Plataforma Cultura Contra la Guerra, Madri, 2004.
Vida de perros. Poemas perrunos. Editorial Buscarini e Ediciones del 4 de agosto, Logroño, 2007.
Bukowski Club 06-08. Jam session de poesia. Ediciones Escalera, Segovia, 2008.
Rósea. Ediciones Bohodón, Madri, 2008.
La mujer rota. Literalia Ediciones, Guadalajara, México, 2008.
Fuga de nada. Ediciones Bohodón, Madri, 2009,

Três Poemas de Francisco Cenamor

cansancio ajeno


hay cada mañana una mujer maría
que se sienta al borde del abismo de su cama
mira hacia abajo antes de saltar
y duda sin remedio de si irá al trabajo

hay cada tarde un hombre manuel
que se sienta cansado en un banco del gimnasio
mira su peluda barriga que no baja
y piensa en sacar mañana todo su dinero e irse

hay también cada mañana un joven raúl
que coge sus libros para ir al instituto
mira con ojos dormidos el desorden de su mesa
y encuentra el cedé que le gustaría quedarse a escuchar

hay cada atardecer una abuela cipriana
que abandona con paso cansado el cementerio
mira con envidia la tumba del marido
y siente que pronto se liberará de su pesado cuerpo

hay cansancio en estos días extraños
y aunque me levanto de la mesa y lo dejo
me dan ganas de escribir al final del poema
que tal vez sean mis ojos los que se han cansado

maldita espiral infinita

unaespiralinfinita rodea mi cabeza
unaespiraldeespirales cuyos trazos
son a la postre mis barrotes
y yo ahora siento que necesito
bajar por un hilo de seda
mecido por una blanca brisa
estar tumbado en una dulce sauna eterna
que en mi sudor se vayan los días trabajados
y que un espejo refleje los ojos que vi esta mañana

niños y niñas

estás y ya no estás
dicen que hay muchos niños
que mueren de hambre cada día
estás y ya no estás

y otros niños nacen cada mañana
como las nubes que no sabes donde
qué tierras mojarán

a veces hay nubes que están
en el cielo mucho tiempo
y un día ya no están
como los niños que a veces ya no están

pero el agua que dejaron las nubes
pueblan cada tierra de raíces
como los niños muertos

Mais um livro de João Batista do Lago

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CÂNTICOS VISCERAIS, do poeta maranhense (de Itapecurumirim) João Batista do Lago estará à disposição para o público a partir do próximo mês de abril. O livro não serácomercializado pelas livrarias convencionais ou tradicionais. As pessoas que desejarem adquirir devem fazê-lo por meio do e-mail:

joaobatistalagoster@gmail.com

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Cânticos Viscerais é o terceiro livro de João Batista do Lago que, acertadamente, em suas próprias palavras, o define como seu “ponto ideal”. Não se trata de mais um livro de poesias; são poesias de um novo espírito poético, poesias que se esteiam na polêmica da razão… ou das razões. São arguições profundas que se ultrapassam num devir poético.

Simpatizante das concepções bachelardianas, João Batista sente ser necessário adentrar os caminhos de uma poética que recorde à razão sua função agressiva, turbulenta, em que se multiplicam as “ocasiões de pensar”. Esta razão necessariamente há de ser polêmica, há de provocar, de desancorar do local onde naufragou – este, já agora, inútil destroço.

Há uma tensão dinâmica, fluida, e não uma cisão entre a poética de João e seu pensar racional sobre o real. Para além de uma inserção advém uma complementariedade; há um poeta no racional extraindo insights, compreensões retiradas a fórceps, dores “viscerais” por trás da persona alegre…

Trata-se aqui de uma construção que desfragmenta, fractaliza e se recria a partir de blocos de uma linguagem assimétrica: a obra? Estética harmoniosa, cromática, ferina de palavras-sílex, suaves, e fertilizadas flores beijadas por beija-flores…

A crise inserta na Pós-Modernidade (leia-se aqui a ruptura da legitimidade das meta-narrativas) gerou um mal-estar na confiabilidade, na credibilidade dos grandes discursos. João não consegue esconder esse mal-estar e, para além disso, revela-o pela – metaforicamente – face mareada, pré-emética, deixando-se ver sinal e sintoma.

A dor em João é-lhe tão “visceral”, que por vezes beira a impotência de um moribundo. Quais as dores que o exasperam? São as dores do (des)conhecimento e mesmo do conhecimento, as dores da inconformação frente às ideologias que espalham subserviência e misérias, as dores que se mimetizam em prazeres, que se escondem por trás das máscaras assépticas, as dores da inocência perdida, do abuso criminoso, da inocência de si; as dores de abortos covardes das utopias felizes; de caminhar solitário num mar de dores anestesiadas.

Com uma pitada de Bachelard, diria que João vê o estrume, mas também vê a flor! E de ambos aspira-lhes a essência do perfume… mesmo que fatal. Aspira convicto, consciente do mal que pode evolar da flor ou do bem que pode estar mimetizado no estrume. Porque o João se debruça sobre ambos – independente, objetivo e total no seu conhecer, na sua contemplação. E, por isso, apreende no instante… e retifica a apreensão – dolorido – no próximo apreender…

A apreensão causa dor. A noção de dor em João, como já foi dito, é dilacerante: do fundo de suas entranhas, no estranho ventre algo chegou a termo! O concepto, pronto para vir à luz, tem de rasgar-lhe por dentro e não é possível adiar… Há dor no concepto e no parturiente. O pósparto exige recuperação; o recém-NATO, adaptação. É João a sentir a ferida de si a doer, a dor dos feridos todos, a dor de ser e de existir consciente, a dor da inconsciência no outro de que lhe crescem feridas…

Por que o “visceral”? Porque a dura palavra coaduna-se com o real; é-lhe velha irmã, conhecida, companheira do dia a dia. Porque a estética virtuosa já carece de sentido, já não mais perturba a desvirtuose em que estamos imersos; já não é mais capaz de perfumar o que se apresenta pútrido na ausência de virtude das cidades, dos países, dos escravos felizes de senhores vis.
João, voyeur de si, artífice de metáforas como pendular meta-fora de si, delator nobre do injusto/covarde/leviatânico grande outro… Seu escancaramento de si e do real, apesar do que lhe causa, tão bem expresso nas suas viscerais palavras, não lhe é obstáculo, não lhe convida a participar do banquete dos acomodados. São, antes, “pontos vélicos” bergsonianos a lhe impulsionar a busca.

João Batista do Lago evidencia nas contradições, nas antíteses tão bem insertas, a dualidade mal encoberta que se revela à análise crítica – do olho que quer ver. Assim, enriquece seus gritos-denúncia contra uma exploração de ideologias e dogmas, deixando a descoberto o amontoado de inúteis discursos desumanizados, desarraigados…

Há no poeta uma inquietação tanto com a tentativa de reencontro de sua dimensão universal, quanto com a miserável condição humana que se esconde nos becos das cidades, ou que escoa a céu aberto, onde caminham outros homens-cidades humanos poluídos de exploração homo homini lupus na alcatéia de um “deus mercado”…

Nosso poeta, de tímpanos feridos, mostra o grito calado, ouvido dentro de si que é abafado pelo ensurdecedor ruído uníssono de caducos filosofares, que deixa proscritos os quereres, que torna impossível os pensares…

Lembra-me ele um rebelde aluno em casarões-escolas mofados a distrair a atenção para o principal – que não é ensinado; bêbado feliz que faz escárnio da abstinência alheia: ora sem bandeira de si, ora fractal bandeira de todas as cores… Tal qual o pintor que se utiliza das cores na criação de suas obras, João Batista vai customizando, ao buscar novos matizes, dentre os espectros visíveis do real; vai decompondo fractais sintonizado na frequência espectral de tons monocromáticos; vai tingindo os degradês de braços, pernas e pés explorados com cores carregadas – irônicas, sarcásticas linhas poéticas viscerais…

Essa visceralização ocorre no instante instintual, onde o experienciar converte-se em impressão-explosão poética. Há um grito em João Batista do Lago que o ensurdece e berra para a Ágora sonolenta; um grito que quer que seja pública, não rês, bovina resignação de homens tangidos por uma sorte não pressentida.

Falo de um João que se insurge primeiro dentro de si e, aos poucos, transborda para o outro que também carrega em si. Assim como quer a este outro desperto, desperta atônito de seu próprio despertar.

Na sua orfandade de origens é um homem distanciado de si, na miserabilidade de se contemplar em uma vida que é um reflexo de sua condição atual, numa época desarraigada, inconsciente, repetidora (de iguais!).

Ao carregar nos ombros seu próprio sofrimento de ser dor e de ver as dores do mundo, imola-se em cada verso que destrincha com os talheres baratos e descartáveis que lhe são oferecidos tão “gentilmente”. Cada palavra que liberta, cada frase que solta das brancas e suadas páginas é um pedido sempre último de que se nidifique fertilizado em úteros-mentes que gestarão versos vivos. E, pelo amor de Deus, ou dos deuses, que não se aborte a Poesia!

É visceral a dor da certeza de que é humana a mão (de carne e ossos que irão apodrecer); que, à semelhança do conto da árvore a reconhecer ser de madeira o cabo do machado que lhe abaterá, também são humanas as mãos que distribuem a fome, os sermões que excomungam, que expõem mãos diferentes em circos de horrores modernos… E por isso, a fumaça dos turíbulos já não sobe aos céus: seus ductos e ictos apenas conduzem às profundezas torpes do ser (des)humano. Há um lobo no altar da ovelha; há filhotes de lobos a beijar ovelhas…

“Poeta maldito”, herege a blasfemar contra seu alienofágico “deus mercado”… Bendito rebelde que incita, concita seus pares, excita-se com o sonho de se acabarem os matadouros onde se prepara o banquete de duras carnes humanas. É dilacerante a dor que calcina os ossos, a dor de se sentir brasa viva de si, a dor nos ouvidos onde ecoa o tropéu dos cascos a espezinhar as dignidades, onde se escuta centauros chicoteando os direitos…

O sujeito da poética de João é um João cognoscente, ávido e árido de si; é um João que se oferece sacrificialmente, que faz libações ao sensório cru – e nu – de seu próprio experienciar… irrepetível conhecimento. João oferece o que não é de se oferecer; se angustia por oferecer o que, neste carecer do ofertar, não será compreendido, será mesmo até inconveniente: será um choque visceral… algo, por certo, a ser evitado…

A poesia lá está, às vezes, pregada no âmago da cruz-poeta; quando ele a desprende, há a sensação de um chute “na boca do estômago”, há uma dor visceral, que parte das entranhas da cruz e perpassa – dolorida e pulsante – pelas veias do real. E o que é este real? É o instante no homem que jaz liberto na cruz… Do alto de seu madeiro, não se queda – alheio e surdo – aos choros: vê tanto a funcionalidade deste como o despropósito de chorar. Do alto de sua cruz implora a morte: que a todos iguala, que revela e retira as algemas da verdade, tão insistentemente escondida no viver; a morte que é símbolo do fim da procrastinação da procura, da morte dos regimes, sistemas, filosofias, dogmas, ideologias, procuras de João… Jaz na cruz um João, pássaro na mira do caçador de si…

É o nosso poeta um buscador de si. Na busca de seu perfil esbarra nos obstáculos – seus perfis escondidos. É, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento de si e por isso, inevitáveis são o conflito e a dor oriundos do próprio ato de conhecer. No enfrentamento de seus obstáculos, de certa forma, sentimento de caos, supera-se avançando para outro caos. Ao mesmo tempo que retifica seus perfis, alarga sua via crucis e segue na “intensidade de presença” de um novo João.

Sua poética, qual bisturi a lhe cortar o corpus, desfolha-lhe as camadas, textos de si mesmo, expondo-lhe à luz do dia os nervos-análise que se permitiu dissecar. A cortar-lhe: um insensível bisturi; a ser cortado: já um meta-corpus. Na alcova fértil de seu “quarto”, seus frios/quentes suores são rimas, por vezes ásperas; ei-las avesso do cetim, doloridos chutes que a esperança lhe dá do âmago de seu ventre grávido. A poesia aqui é um pensamento que se aventura, uma aventura que se pensou. Dinâmica e intuída, insights de si, direciona-se redirecionando, compreende-se além de si. Em sua alcova, João biparte-se, reformula seus signos: há significado e significados, há mais nulos significantes… João decifra-se e devora-se…

A vertente “noturna” de João revela-se na poesia que, ora o faz precipitar-se nos abismos, ora o leva a despencar, ele mesmo, impelido e seduzido pelo abismo de sua (in)compreensão. O lado “noturno” ri-se do lado “diurno” de João e o provoca no leito de seu “quarto”… E as palavras, situações, estupefações, ao passarem pelo crivo de um João racional, amalgamam-se no instante – amante – capturado e traduzem-se no verso em gozo…

Caminhante – dos irmãos, o caçula de Dante -, o poeta vai tropeçando sobre si, por entre as ruínas de suas construções mentais, coletando as cinzas-amostras, material de estudo em seu laboratório de cientista-poeta.

Já de outras vezes, João navega turbulento, singrando os mares cheios dos monstros dos erros e ilusões. Açoitam-lhe os ventos da linguagem que, racionalmente tenta usar, fustigam-lhe as tempestades de incoerência… mas continua a proteger a bússola sonhando com o farol (gedanken) que, intui, está a se ocultar por trás do vagalhão de suas ancestrais paixões… Por vezes a vontade louca de se lançar ao mar, de se oferecer ao altar de Netuno como um lobo a se redimir perante a ovelha cobiçada outrora: seu intuito é o de libertar rebanhos.

A tentativa de descontrução na palavra da dor embutida nas guerras, nas misérias cotidianas coloca na face do poeta um olhar que irrompe da noite, ao modo do Sol, e escancara à luz (razão) do dia as mazelas, a podridão mal encoberta, o fétido cheiro que já não mais incomoda, pois os olfatos já se acostumaram e as máscaras também fedem…

Uma preocupação assola a alma: será possível ser a si mesmo se há moldes em todo lugar? Na família, na escola, na igreja, no trabalho, na sociedade? Será que tudo já foi dito, será possível a desalienação, libertar-se do jugo ideologizante e ideologizado?

E surge, por vezes, o medo de abrir “as gavetas do Eu”, o medo de se ver desnudo, sem máscaras frente a si mesmo; o medo do confronto consigo mesmo, das fragilidades visceralmente expostas… É um medo que queima e enregela qual arrepio de alma…

Os olhos – janelas d’alma – refletem tanto a visão de si, interno-olhar, quanto releituras, (re)visões do que se apresenta ao olhar. Se leitura hoje, releitura amanhã e, para além do amanhã, leituras outras existirão… Quais olhares surgirão? Existirão olhares? Será pura e vã inquietação?… Existem as leituras dos vencedores; as esquecidas estórias dos vencidos; há espaços reais aos seus tempos; há verdades forjadas, mentiras transmutadas em verdade única; há vidas ceifadas cheias de verdades amordaçadas… De onde o direito de espalhar o ódio que contamina os inocentes, os civis que ainda não estão na guerra?

Por ser um buscador, o poeta recorda-se do realismo ingênuo, subjetivo e egocêntrico e passa épido por um empirismo “claro”, qualitativo e quantitativo de si. Do racionalismo tradicional extrai-se como noção de um João relativo inserto num paradigma racional e, refeito de si, pulando as pedras limosas da razão, ainda meio zonzo já escorrega em seus referenciais e se estatela na grande pedra… surracionalmente feliz. Já agora é um João simultâneo a se olhar; não mais absoluto, nem relativo. Compõe-se (ou fragmenta-se?) a partir do dual na dimensão quadridimensional do espaço-tempo.

Seduz-lhe a pedra, por ora. E maravilha-se, angustia-se, devaneia, filosofa oniricamente na poesia! Sente-se arquetípico, pressente um meta-João a ferir-lhe as entranhas feitas de todos os “Joões”. A taça não transbordou. Saboreia-se pressentindo a dor da cicuta que ingere e, digere – antropofágico – cada um de seus pedaços, enquanto o “dia” não vem. João sonha desperto (devaneia) enquanto é tecida a “noite” em que cabem seus versos, mas, serve-se destes para antever o pesadelo do diurno sonhar… A cada nova poesia: a experiência do instante, do tapa do real na ilusão, do novo e do velho, do profundo que diz Não ao Sim da razão. E o poeta se alarga, se retifica dolorido, “visceral” eternum retorno e perda de si, lato e strictu sensu João… Ah, João, já a pensar em outras pedras ou está a pedra a golpear por Amor?

São feitas nesta poética várias alusões aos quatro elementos: água, ar, fogo, terra. Podem ser escritos tratados (e já foram) sobre a simbologia oculta nesses elementos alquímicos, elementos de criação, elementos poéticos. Mas, num recorte, que nos interessa aqui, cabe atentar para a decomposição que o poeta faz criando desses símbolos metáforas de metáforas.

Assim, na busca do ouro alquímico de seu próprio ser e de sua consciência no real, o fogo tanto pode servir-se de seu papel de nilificador (uma espécie de redução a cinzas), quanto de purificador (uma espécie de lapidação das imperfeições). Poderá ser símbolo de paixão, do íntimo, do instintual que queima, de corporificação do desejo que consome. Há, porém, um sentido maior, não excludente dos demais, o de transcendência: o fogo, ao consumir matéria (e, aqui também, espírito) dialetiza o sujeito e o objeto João, purifica-o e lapida-o em suas arestas antagônicas… e que dor inevitável, que luz que cega!

Já da Água nos vem à mente a noção de fluidez, de uma poesia que é afluente (deságua e compõe rios), que João faz fluidicamente, como fecundante rio a fertilizar margens. Mas na água se lavam também os pecados originais, nela nasce o novo homem… Ecce homo…; dela bebe-se iniciaticamente a “Verdade” que sustenta. Águas há assassinas, violentas, profundas nas quais submergem homens que convivem com as águas primaveris e claras em que se banham despreocupados os jovens corpus amantes. Já aqui, em meio às águas, João até pensa irônico no peixe-poeta, crístico símbolo a se deixar pescar, pois que peixes e água são partes de um todo só…

Do Ar, capta-lhe, em seu movimento ascensional, a dupla face da queda e do vôo. Sobe assim, pleno em devoção, buscando o elevado Olimpo no qual fará uma oblação de si. Há vestígios arqueológicos de deuses no Olimpo? E como se livrar das impurezas que o alçaram lá?

Já agora é a Terra, pois, a lhe avisar de suas raízes, do repouso e do ventre que lhe germina e sepulta. É a terra a lhe fazer brotar uma nostalgia do vivido e do que poderia ser… Saudade menina de um menino João… um bem querer de Pátria amada, de uma amada distante no tempo, de chão natal amado, inocente pandoravelmente a espiar… E assim as antíteses diurno/noturno (racional/onírico) amam-se despudoradas e inocentes no universo alquímico de João…

Penso (será que realmente existo no meu pensar?) agora (serei mais uma na Ágora sonolenta?), por fim, na impressão que me fica após a leitura deste livro. Pareceu-me que o poeta envia aos seus leitores a seguinte mensagem: – “É preciso reaprender a capacidade de se espantar; é urgente adentrar, pela iniciação poética, o umbral do conhecimento; é imperioso o despertar consciente e atuante diante do que é dado, do que é imposto, levantar o véu da essência que a aparência encobre. É necessário também sentir que há sangue tanto nas próprias veias quanto na história da humanização; é urgente também redescobrir-se numa reinserção. Porque é um desrespeito valer-se da poesia de uma forma vil… é proibido alienar-se a poesia!”

Obrigada pelos mergulhos no abismo, por dar voz aos gritos tão nossos, pela denúncia (porém atente: Si vis pacem para bellum… se queres a Paz, prepara-te para a guerra!), pelo fogo, pela água… e pelo ar e pela terra… Obrigada pelo ocaso-interregno; pelas primaveras que estão contidas nas geleiras… Obrigada, mais que simplesmente, visceralmente… Lembrei-me de um trecho de um imortal, nosso poeta Carlos Drummond de Andrade, de sua magnífica poesia intitulada Procura da poesia; dizia ele: – “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível que lhe deres:/ Trouxeste a chave?” Creio que João Batista do Lago a tem…

Alpha Leninha (http://alfaleninha.spaces.live.com)

Dicas de Fernando Pessoa – 01

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Fernando Pessoa é considerado um dos maiores nomes da poesia universal.    Há quem o coloque acima de Camões, dentro da língua portuguesa. Há quem ainda não o conheça e há os que nele pensam apenas como poeta. Mas FP foi um homem preocupado com seu tempo e com o tempo futuro. Ensimesmado, solitário quase, refugiado em várias personas porque não decifrava convenientemente a sua, FP leu muito, escreveu muito e sua geografia era a palavra, assim como sua pátria era a Língua Portuguesa. Pouco viajou pela terra (a grande viagem foi de Lisboa-Durban-Lisboa e nunca mais pisou em grandes navios ou comboios de longa distância). Mas poucos viajaram tanto na literatura e com tanta maestria. FP legou-nos uma arca repleta de anotações, projetos, poemas prontos e outros inconclusos, páginas de crítica literária, reflexões sobre a língua portuguesa, digressões sobre a política de sua época e sobre a realidade daqueles tempos, como o caloroso Ultimatum que dirigiu à sociedade internacional. Místico, grafou mapas zodiacais e dialogou com deuses diversos. Escreveu páginas sobre ocultismo, rosacrucianismo e teosofia, ele mesmo um alquimista da palavra. Deixou páginas sobre filosofia e estética, e traçou teorias literárias. Após sua morte, suas palavras fizeram o que ele nunca pode realizar: viajaram por todo o mundo.

Como todo banco que se preza, o Banco da Poesia buscou em Fernando Pessoa a valia de uma consultoria de alto nível, que poderá ser-nos útil para o direcionamento de nossos depósitos. Claro está que os ricos fragmentos de FP sobre arte, estética, literatura e, sobretudo, poesia que, a partir de hoje, publicaremos em nosso blog, não trazem a marca da coerência. Aliás, como ocorre também no mercado financeiro. Hoje o conselho é tal, amanhã outro diferente. Os compiladores do livro “Páginas de Estética e Crítica Literária” (de onde sairão a maior parte dos fragmentos), Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, expressaram uma advertência sobre ambiguidades de sua obra. Prado Coelho defende essa posição, até porque “os artistas tendem a explorar intencionalmente a ambiguidade, fazendo dela um ‘fim explícito da obra, uma valor a realizar de preferência a qualquer outro’”, como asseveraria, mais tarde, Umberto Eco em sua “Obra Aberta”.

Segue a primeira gota de sabedoria. Para quem não a conhece, saboreie-a. Para quem já a conhece, conselho de televisão: vale a pena ver de novo.

Literatura, Poesia e Prosa

Fernando Pessoa

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Érato, musa da poesia lírica – Painel em carvalho de Simon Vouet (França, 1590-1649)

Encontram-se nesta publicação, que é dividida em Seções ou Títulos, dois títulos ou seções que têm nome Literatura e Poesia. Parecerá a muitos absurdo que se estabeleça o que parece ser uma distinção entre um gênero e uma das suas espécies.
A poesia é, sem dúvida, e no que a boa lógica tem só de boa lógica, uma espécie do gênero literatura. Esta é a arte que se forma com palavras; aquela a espécie dela que se forma com palavras dispostas de determinada maneira. “A prosa”, dizia Coleridge, “é as palavras dispostas na melhor ordem; a poesia as melhores palavras dispostas na melhor ordem”. Assim é, ou quase assim.
A palavra é, numa só unidade, três coisas distintas – o sentido que tem, os sentidos que evoca, e o ritmo que envolve esse sentido e estes sentidos. Assim a palavra “alma” contém em si como sentido direto a designação da essência mental do homem, distinta, por um lado, da inconsciência do corpo ou dos corpos, por outro da possível superconsciência de uma consciência abstrata universal. Mas à parte isso, a palavra “alma” sugere um grande número de sentidos acessórios, que variam de indivíduo para indivíduo, conforme as preocupações, a cultura e outros elementos que contribuam para a associação de ideias: para um estará inevitavelmente implícito na palavra o sentido secundário de “ânimo”, “intensidade de caráter”; para outro o sentido secundário de “espiritualidade”, “misticismo”; para um terceiro o sentido secundário de “irrealidade”, “intangibilidade”. Finalmente, a palavra “alma” tem um som, que constitui o seu ritmo e com que colabora no ritmo formado com as palavras que lhe sejam anexas, com ela formando o texto. É por isto que o mais claro dos textos começa, quando é aprofundado ou meditado por este ou aquele, a abrir-se em divergências de íntimo sentido de um para outro: é que, havendo acordo, em geral, quanto ao sentido direto ou primário da palavra, começa a o não haver quanto aos sentidos indiretos ou secundários. No ritmo de novo os indivíduos se aproximam uns dos outros, salvas diferenças de pronúncia e preferências auditivo-mentais.
Decomposta, assim, em três elementos constitutivos para fins lógicos, não os oferece a palavra distintos na realidade da sua vida; são consubstanciados, e a impressão resultante da palavra e, portanto, das palavras dispostas em discurso, provém de uma percepção sintética em que se entrevivem todos três. Isto é importante de notar, sobretudo, quanto à valia e ao alcance do ritmo, que não existe na palavra, como no som, independente e livre, mas preso aos sentidos que a palavra comporta ou sugere. A palavra “César”, em si mesma frouxa de som, tem contudo um relevo rítmico em certo modo imperial, porque imperial é a sua origem e a evocação que a memória dela nos traz. Um alinhamento de palavras sem sentido conjunto, ou de pseudopalavras inventadas com belos sons, não grada por bem que soe: não é mais que música absurda e postiça.
Lembrados sempre desta consubstanciação e interpenetração dos três elementos da palavra, podemos contudo, sem realizar abstrações, distinguir três tipos de arte literária, conforme se olhe mais ao sentido primário da palavra, aos seus sentidos secundários, ou ao ritmo – ou mais propriamente,visto ao que acaba de se ver, à projeção no ritmo da vida inteira da palavra.
A arte que vive primordialmente do sentido direto da palavra chamar-se-á propriamente prosa, sem mais nada; a que vive primordialmente dos sentidos indiretos da palavra – do que a palavra contém, não do que simplesmente diz – chamar-se-á convenientemente literatura; a que vive primordialmente da projeção de tudo isso no ritmo, com propriedade se chamará poesia.

A Revista Forma

Manoel de Andrade
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Não me esquecera da Revista Forma e do impacto cultural que causou na época, acenando-nos, naquele janeiro de 1966, com um espaço onde pudéssemos semear nossas ideias e nossos sonhos.

Forma chegava no momento certo. Os tempos sinalizavam para a nossa emancipação intelectual e, na década de 60, apesar do quartelaço de 64, o Paraná passava por um estado de graça em termos de cultura, e Curitiba, como centro polarizador dessa conjuntura, demandava uma publicação que expressasse ao país aquela realidade e partilhasse suas inquietudes com a inteligência nacional.. Vivia-se numa agradável atmosfera do espírito, marcada pela relevância das artes plásticas na presença do Juarez Machado, cartunista, na imprensa nacional; pelos prêmios do João Osório Brzezinski; pelas gravuras do Fernando Calderari e pelo destaque do Salão Paranaense de Belas-Artes. A literatura ainda buscava seu espaço marcado com a presença de novos poetas e contistas, pelo destaque de prosadores como o Dalton Trevisan e Jamil Snege e pela emocionante Noite da Poesia Paranaense, em 65, no Teatro Guaira. A dramaturgia mostrava sua presença com o talento de Cláudio Correia e Castro na direção do Teatro de Comédia do Paraná e, pelo apoio oficial, foi criado no Teatro Guaíra a Escola de Arte Dramática,  promovendo-se um intercâmbio com grandes companhias nacionais que colocaram Curitiba no roteiro dos grandes espetáculos. A música também ensaiava, por aqui, os seus melhores passos e instituições como a Pró-Música e a Scabi estiveram à frente de cursos e festivais de música realizados na Capital. Tudo isso partilhado com a regência do grande trabalho do maestro Roberto Schnorremberg no comando do Curso Internacional de Música do Paraná. Muitos de nós líamos o Cahiers du Cinéma e acompanhávamos também o pionerismo de Sylvio Back que já anunciava seu grande talento em vários curta-metragens, lançando em 1968, o filme Lance Maior.A crítica cinematográfica surge com o talento prematuro e de vanguarda de Lélio Sotomaior e Sérgio Rubens Sossélla, –que em setembro de 1963 me presenteou seu primeiro livro, 9 Artigos de Crítica  –marcou sua  indelével passagem por aqueles anos, como poeta, como crítico  – um dos maiores entendidos na obra de Fialho de Almeida, no Brasil  – e como colaborador e membro do Conselho de Redação da revista Forma. Naquela mesma época, publicava o ensaio sobre Milton Carneiro e sua Procissão de Eus. Na imprensa, a cultura era veiculada através da incansável atividade de Aramis Millarch e, sobretudo, pelo respeitável trabalho de Aroldo Murá Haigert, cuja coluna Vernissage, no Diário do Paraná, era a caixa de ressonância da melhor expressão da arte e da cultura paranaense. Quiséramos falar de outras sementes, de flores que desabrochavam e de frutos que começavam a amadurecer. Quiséramos falar  das tantas luzes que iluminaram aquela aurora cultural – marcada também pela arquitetura e a importância superlativa do nosso urbanismo –, mas tudo isso ou quase tudo, mal conseguiu chegar intacto até o fim de 68. E toda esta  primavera curitibana  –  abortada pela repressão e o trágico silêncio cultural que se seguiu ao AI-5 –  a Forma se propunha abarcar em seu espaço, mas fechou suas páginas prematuramente e não conseguiu retratar a integralidade daquele fenômeno.

Em julho de 2003 enviei uma carta a Fabio Campana parabenizando-o pelo primoroso lançamento da Revista Et Cetera e dizendo-lhe que, apesar de não ter notícia de que no Paraná se tenha publicado uma revista de cultura com um requinte visual e uma escolha tão criteriosa dos textos quanto a sua, houve, contudo, em Curitiba, uma honrosa exceção, tentada no bem intencionado projeto da revista Forma, lançada pela originalidade e a sensibilidade gráfica de Cleto de Assis e com carismática intelectualidade de Philomena Gebran.

Hoje, 43 anos depois, compulsando com saudade suas páginas, abro o meu nº 01  – autografado pela Philomena, pelo Cleto e pelo João Osório – e releio o primeiro artigo: Cultura no Paraná, uma bela matéria sobre a primeira metade da década de 60. Escrito com  elegância  e inteligência por Ennio Marques Ferreira (a quem o Paraná também muito deve por sua passagem, naquela época, pelo Departamento de Cultura da Secretaria da Educação e Cultura e, mais recentemente, na Casa Andrade Muricy), o texto delineia toda a paisagem cultural do Estado, na primeira década de 60, enfatizando o papel da arquitetura e das artes plásticas. Seguem outras tantas expressões da cultura paranaense e pontificam neste número os desenhos litografados de Poty, a pintura de João Osório, um estudo sobre uma partitura de Bach feita pelo regente José de Almeida Penalva (o famoso Padre Penalva, da época), um belíssimo poema do poeta e estadista senegalês Léopold Sedar Senghor e textos de Sylvio Back, Elias Farah e Nelson Padrella.

A nota de abertura do segundo número comenta da receptividade e do alcance nacional da Revista. Enfatiza seus propósitos como instrumento de diálogo com a intelectualidade brasileira e como instrumento de divulgação de uma cultura democrática. Não vou declinar, nos limites desta nota, toda a seleta galeria dos nomes que integraram os dois números da revista Forma. Contudo, quero ressaltar, no segundo número, a saudosa presença de Guido Pellegrino Viaro contando, num texto autobiográfico, as passagens marcantes de sua vida, desde sua origem simples e provinciana na cidadezinha italiana de Badia Polesina, onde nasceu em 1897. Destaca as dificuldades dos primeiros estudos, seus sonhos com terras distantes, seu alistamento, aos 16 anos, sua participação na 1ª Guerra Mundial, depois a tristeza e os horrores. Mais tarde, os estudos em Veneza e a busca de um caminho para a sua arte…, “a linha – sempre a linha  – os espaços, a cor.”  Da Europa para a América. Do Rio para São Paulo. A chegada fortuita a Curitiba. “Procurei me manter em pé sem fazer concessões. (…). Tratei com carinho a composição, após ter estudado a paisagem e a criatura. Só assim consegui não soçobrar, permanecendo assim mesmo, o pintor figurativo de ontem.”  O  segundo número tem sequência com um estudo arquitetônico de Cleon Ricardo dos Santos; um recheado BAÚ de notícias culturais, o poema Cântico de Guerra, de João Manuel Simões e um interessantíssimo artigo sobre Literatura: Regional & Universal, de Hélio de Freitas Puglielli. Este número fala ainda de teatro e promove  um DEBATE sobre Orson  Welles,  através de textos de Sergio Rubens Sossella, Sylvio Back e Luiz Geraldo Mazza. Entre outras matérias, este segundo e último número da Revista se encerra com dois contos: Lamentações de Curitiba, de Dalton Trevisan e Noite/Nove,  de Jamil Snege.

Forma teve um nascimento deslumbrante, mas, infelizmente, morreu ainda infante. Tinha tudo para ser nossa aldeia, nosso mágico território. Gestada pelas idéias de um tempo melhor, teve um parto cultural luminoso. Filha de tantos anseios e dos legítimos sonhos de cultura do Cleto e da Philomena, todos acompanhamos seus primeiros passos, e por isso  ela foi o nosso mimo, nosso relicário e agonizou em nossas lágrimas. Nestes dias, em que a memória da década de 60 abre as portas para tantos visitantes, registramos aqui nosso saudoso sentimento e uma esperançosa alegria por sabermos que o Cleto de Assis, que navega com destreza nas águas da informática, pretende publicar na Internet todo o rico conteúdo das duas únicas edições.

Uma conta para Saramar

Quero abrir conta corrente, neste Banco da Poesia, em nome de Saramar Mendes de Souza, poeta goiana. Ou, simplesmente, Saramar, nome que já é um poema de apenas sete letras, como as notas da escala musical. Há algum tempo, ela se autodefinia como uma “aprendiz de poeta, em constante luta com as palavras”. Pura enganação. Fingimento de poeta, como diria Pessoa, já que ela domina as palavras com maestria. Hoje, a descrição de si mesma é mais singela: “Sou apenas uma mulher tentando escrever sobre sentimentos, emoções e algumas dores”.

Conheci Saramar por outros caminhos, não os abertos pela poesia. Frequentamos, durante algum tempo, uma comunidade da Internet preocupada com os destinos deste país e nos identificamos em alguns comentários. Ela gostou de um texto meu e pediu licença para publicá-lo no blog Outras Letras, mantido por um amigo seu. Foi depois disso que descobri a imensidão poética que nela habita. Visitei seus blogs, indicados em seu perfil. Aliás, um perfil que não esconde, por exemplo, sua idade, mas não revela outras qualidades que por certo lhe acompanham.

Lembro que, entusiasmado, fiz um comentário elogioso em um de seus poemas publicado no Flanarfalares (veja, abaixo, os endereços dos principais que ela criou e administra) e enviei uma mensagem para alongar meus elogios: Hoje matei o tempo a vaguear (ou flanar?) pela Internet e decidi conhecer um pouco mais de minha prolífica amiga, mãe de encantadas escrevinhações e doces falares. Busquei por seu nome no Google e voilà! você é mais que domínio público, de tão conhecida por este mundão. Foi melhor que uma taça de vinho tomada no Santo Graal! Escarafunchei quase tudo e só parei para poder economizar mais sabores para outras ocasiões. Estou verdadeiramente deslumbrado com sua poesia, embora tão impregnada de solitudes. Temos muitas coincidências a enfeitar nossas vidas: nascemos em um dia 9 (eu, 9 de maio), gostamos de boleros e MPB e amamos as palavras mágicas da poesia: ambos pessoanos declarados. Muito obrigado pela tarde maravilhosa que lhe roubei, sem pedir licença. Como não concordo com seu perfil de “aprendiz de poeta, em constante luta com as palavras”, resolvi pagar o tempo furtado com outra escrevinhada, louvando as palavras como nossas ternas e eternas amigas, mesmo quando as usamos para nos defender da áspera insensibilidade de tantas pessoas. Declaro, perante a Humanidade, que me senti orgulhoso por você ter-me incluído entre seus amigos, que já se contam aos milhares.

Espero que Saramar me perdoe pela abertura desta conta corrente, feita sem prévio consentimento da correntista. Juro que minha intenção não é a mesma dos demais bancos e administradoras de cartões de crédito que nos mandavam (agora já é proibido) cartões não solicitados. A sua inclusão em nosso rol de “clientes”, além de homenagem mais que merecida por seu trabalho poético, intenciona motivar outros possíveis depositantes, neste começo de vida do Banco da Poesia. E a inauguração ficaria incompleta sem o registro de sua presença.

Escolhi quatro poemas de Saramar entre os últimos publicados. Não usei qualquer critério para a escolha, pois não é preciso ser criterioso em relação à sua obra para se obter poesia da melhor qualidade.

Para quem quiser conhecer mais sobre o oceano de sensações de Saramar, aqui vão os endereços de quatro de seus principais blogs. A partir deles, os leitores poderão descobrir outras veredas da poesia saramariana, inclusive em publicações internacionais.

Escrevinhações  http://lidosevividos.blogspot.com/
Falares http://flanarfalares.blogspot.com/
Abrindo janelas http://abrindojanelas.blogspot.com/
Eufeminismos http://eufeminismos.blogspot.com/

Como sempre, visito seu mundo de sensibilidade sem pedir licença, como fiz em uma tarde antiga e em muitas ocasiões posteriores. Terei seu perdão?

A alguém

Alguém diz com lentidão:
” Lisboa, sabes…”
Eu sei. É uma rapariga descalça e leve,
um vento súbito e claro nos cabelos…”
Eugénio de Andrade

caminhobl

A alguém, um único alguém, importam todos os versos.
Se, por acaso, desarvorado, outro alguém degusta a ânsia
das minhas palavras espalhadas em arremedo de poemas
e nelas bebe o que me sacia e me abre os céus do amor,
percebe logo, em uma ou outra linha dispersa e morna,
que todas as luas acesas e os beijos estão encantados
do feitiço mais improvável.

Não me culpe, nem queira desvendar meu sentir,
se, porventura, alguma palavra tange a corda do querer
e desperta o desejo de amor semelhante a este meu amor
que não se cala, antes abre-se como portas arrebatadas pelo vento.

Não, não me culpe e nem me peça o que já não me pertence.
O meu amor, insubmisso e alheio ao que lhe nega o existir,
anda perdido pelos caminhos, buscando os rumos
de quem o tomou sem pressentir.

Saramar

Silêncio

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Da saudade já disse
e da boca nua e fria
de desolação.
Adormeço as palavras na pele
na mudez de todo dia.
O silêncio espanta o sono
guardado no verbo insensato
de quem ama o desvario,
de quem planta o pranto.
Já mais não falo
meu silêncio agoniado
dói nos olhos da noite.
Insone sigo
olhando a dor por dentro.

Saramar

Amantes de outonos ou dos pedidos ao tempo

outono3

É de outonos que me disfarço,
vento na manhã,
o tempo violando cortinas,
passos tangidos na premência de ser já primavera
colorindo estes muros mortos de sono.

Nas calçadas inelutáveis dos dias,
ao som dos saltos e do gemido das folhas,
o vento se despedindo do que fora árvore
sonho o destino dos pássaros, alto,
de caminhar entre o vento.
(e chegar, enfim, aos teus braços).

Nos outonos de que me visto,
nunca te esqueço e, como pedes,
peço ao tempo as horas maiores
de voltear em teus braços
frágil fêmea em flerte,
nas mais tontas danças,
o vento voluteando-nos.

Eu peço ao tempo, o maior do dia
a hora mansa e quente
os chãos de amar
em cores de amantes,
semelhantes, todos semelhantes
no querer.
peço ao tempo, o tempo de te encontrar.

Saramar

Rendas de sal

“Invento o amor e sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar…”
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

rendabl

Rendo-me ao improvável navegante
de minhas águas
marés ignoradas.
Rendo-me
ao que nunca me abraça
ao barco que passa além
e seus olhos de não ver ressacas e remansos
areia de palavras, decorada
que espalho, de tempos em tempos.
Rendo-me ao vento inocente dos dias
que apaga o sonho, ao passar
e leva o aroma dos beijos
e leva quem amava para outro e longe mar.
Rendo-me à ardente constância das águas
presas nestes meus olhos
e à abstinência dos sentidos
nestes frios lençóis, perdidos.
Rendo-me
e me sufocam os bordados
e as flores tristes
à espera do navegante para sempre longe
destas rendas que, de amor,
teci.

Saramar

Réquiem para o trema

O presente texto foi escrito no final do ano passado para ser publicado no blog Palavras, Todas Palavras. Entretanto, com o recesso sofrido pela publicação do irmão Vidal, ele permaneceu inédito até agora. Mas não perdeu atualidade, posto que as mudanças da nova ortografia da língua portuguesa ainda não estão totalmente difundidas. E muita gente ainda resiste a elas.

Cleto de Assis

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Treme, trema! É quase chegada a hora de partires.
O rei e sua corte de sábios assim ditaram
e a hora do cadafalso se aproxima.
Treme, porque os tribunais já se fecharam para ti,
não tens mais direito a apelações ou a acentuações.
Também os juízes e monarcas d’além mar
Não tiveram piedade e firmaram suas sentenças.

Se te serve de consolo, recordemos tuas culpas,
tantas vezes levantadas nas querelas contra ti,
estas mesmas em que te recusaste a aportar,
qual ungüento escorregadio.

Mas não te livraste dos qüiproquós.

Lembremos a ambigüidade dos lingüistas que
freqüentam as academias, intranqüilos,
com argüições grandiloqüentes, porém de qüércica acidez,
contra esses dois míseros pontinhos
de que és formado. Todos a gritar:
“Apropinqüemos sua morte!
Averigüemos suas culpas, pois ele não mais agüentará!
À forca com esse delinqüente!”

Mais atrapalhaste que ajudaste.
Chegaste da velha Grécia, via Gália e Lusitânia,
Para simbolizar um buraquinho na gramática.
Aliás, dois orifícios, para que ninguém te confundisse
com o indefectível ponto, de falsa modéstia postado aos
pés das frases, mas sempre a determinar seus fins.
Tu ganhaste o pináculo, acima delas e em cima de gordinhos us,
quase como bolhas de champanha a transbordar da taça.

Mas quantos vestibulandos levaste ao desespero!
Quantos parlamentares enganaste em ambíguos  discursos
plenos de obliqüidades!

Muitas vezes seqüestraste a inteligência de
Poetas, jornalistas, bacharéis e multilíngües mestres,
Que, distraídos, esqueceram de ti e preferiram
Levar-se a sonhos e incompletudes
com teus três tranqüilos irmãos penserosos…

Mais felizes, por certo, foram teus irmãos franceses,
Ainda a cavalgar, qual eqüestres sinais de la grammaire,
sobre muitas vogais e consoantes.

Mas os lusos, que te copiaram dos vizinhos gauleses,
foram os que deram a ti a primeira coroa espinhenta da ingratidão,
ao retirarem-te, há mais de cinqüenta anos,
Da palavra saüdade, na qual sentias tanta vaïdade.

Talvez uma de tuas maiores culpas é a de não seres
amigo do povo inculto, que não vê razões
para andares embarcado no lombo de desmilingüidas lingüiças
e de pingüins de geladeira.
Vieste para dividir,  meu dierético amigo,
e não para unir. E este é um tempo de solidariedade
no qual pouca serventia têm sinais que semeiam confusão,
embora, às vezes, sejas tão elucidativo.

Em ti sinto pena de nossos irmãos autóctones
Que, sem conhecer a língua dos missionários,
Já te pronunciavam em tão belas palavras naturais.
Que será feito, a partir de alguns poucos dias,
Do canto do güyarapuru, que já soa bonito só ao ser nominado?
E os birigüis e sagüis não poderão mais saltar nas árvores e fugir de Anhangüera?

Aproveite, pois, teus últimos dias do verão brasileiro
E das outras estações em que vivem os demais lusófonos,
pois teus dias estão contados.
Pelo menos os de freqüência nas gramáticas e dicionários de Português,
que serão liqüidados nas livrarias por tua culpa,
tua máxima culpa.

Breve virão novos gramáticas e novos léxicos
Para fazer o povo esquecer-te completamente
E começar a mudar algumas palavrinhas onde eras necessário.

Consola-te: nós aqui ficaremos para cuidar das vogais
que recusam a se transformar em ditongos
com a coleguinha do lado, como a u e a i da recém escrita palavra.
E, nos dias que se esvaem, pense que ainda poderás estar conosco
De vez em quando
Em estrangeiras palavras.

Aproveita bem este final de ano e tenha um bom Natal:
a partir daquele dia de graça terás apenas um qüinqüídio de vida.
Requiescat in pace.

Curitiba
27.out.08

Quarenta anos de quase solidão

Há exatos 40 anos, na madrugada de 14 de março de 1969, Manoel de Andrade preparava sua longa viagem. Não a sonhada desde a infância, quando os olhos do menino tentavam alcançar além dos horizontes marinhos e a magia de seus sonhos colocava velas ao vento para empurrar o barco do marinheiro que nunca se fez. Era a  derrota programada para o escuro daquela noite de sexta-feira, com apenas um começo, mas sem qualquer perspectiva para o fim. Sem bússolas, astrolábios ou sextantes, sem cartas de navegação, apenas pressentimentos e pânico. Na alma do homem, saudades antecipadas de tudo e de todos que não podiam ir junto. Na alma do poeta, a expiração de um poema nascido horas antes, na véspera da partida. Nele, suas sensações sobre a pátria esmagada pela repressão e pelo intenso patrulhamento político-ideológico que se instalou no país com o Ato Institucional nº. 5, imposto pelo governo militar em dezembro de 1968. Fala de prisões e interrogatórios e de almas devassadas pela tortura.  Fala de suas canções amordaçadas e, contudo, canta profeticamente para um distante amanhecer em que sua poesia  irá florescer e, por isso, escreve para um dia em que tantos crimes poderiam ser contados, para  um tempo anunciado  pelo hino dos sobreviventes. O poema é um doloroso gesto  de despedida e, ao mesmo tempo, iluminado pelo brilho da esperança.
Dor e esperança ampliadas pela visão e memória dos livros perfilados na tristeza, os amigos dos últimos momentos, as lágrimas de um benquerer e o beijo de adeus em sua filhinha adormecida. O poeta antecipa  poeticamente a madrugada e sai pela porta estreita da incerteza em busca de uma rota de fuga. Leva intactos seus sonhos, uma bandeira escondida na alma e, no coração, o passaporte da liberdade. Manoel de Andrade deixou o Brasil, alertado da sua prisão iminente pelo conteúdo do seu poema “Saudação a Che Guevara”, escrito em outubro de 1968, e panfletado em universidades e  sindicatos de Curitiba. O poeta deixava o país exatamente numa época em que sua poesia começava a ser conhecida nacionalmente, divulgada em grandes jornais e publicações como a Revista Civilização Brasileira. O poema Véspera consta de seu livro Poemas para a Liberdade, com quatro edições no exterior e a ser lançado no Brasil no próximo mês de abril, pela Escrituras Editora, de São Paulo a mesma que publicou seu último livro Cantares, em 2007. (texto adaptado da apresentação feita para a Revista Hispanista – http://www.hispanista.com.br)

Véspera

Quatorze de março
mil novecentos e sessenta e nove.
É preciso…
é imprescindível denunciar o compasso ameaçador destas horas,
descrever esta porta estreita que atravesso,
esta noite que me escorre numa ampulheta de pressentimentos.

Um desespero impessoal e sinistro paira sobre as horas…
O ano se curva sob um tempo que me esmaga
porque esmaga a pátria inteira…

Nossas canções silenciadas
nossos sonhos escondidos
nossas vidas patrulhadas
nossos punhos algemados
nossas almas devassadas.

Pelos ecos rastreados dos meus versos
chegam os  pretorianos do regime.
Alguém já foi detido, interrogado, ameaçado
e por isso é necessário antecipar a madrugada.

E eis porque esse canto já nasce amordaçado
porque surge no limiar do pânico.
Meu testemunho é hoje um grito clandestino
meus versos não conhecem a luz da liberdade
nascem iluminados pelo archote da esperança
para se esconderem na silenciosa penumbra das gavetas.

Escrevo numa página velada pelo tempo
e num distante amanhecer
é que o meu canto irá florescer.

Escrevo num horizonte longínquo e libertário
e num tempo a ser anunciado pelo hino dos sobreviventes.
Escrevo para um dia em que os crimes destes anos puderem ser contados
para o dia em que o banco dos réus estiver ocupado pelos torturadores

Contudo, nesta hora, neste agora
o tempo se reparte pra quem parte
e um coração se parte nos corações que ficam…
O amanhecer caminha para desterrar os nossos gestos
para separar nossas mãos e nossos olhos
e nesta eternidade para pressentir o que me espera
já não há mais tempo para dizer quanto quisera.

Tudo é uma amarga despedida nesta longa madrugada
e neste descompassado palpitar,
contemplo meus livros perfilados de tristeza
retratos silenciosos de tantas utopias,
bússolas, faróis, retalhos da beleza.
Aceno a Cervantes, a Lorca, a Maiakovski
mas só Whitman seguirá comigo
nas suas páginas de relva
e no seu canto democrático.
Contemplo ainda os pedaços do meu mundo
nos amigos do penúltimo momento
nas lágrimas de um bem-querer
na infância de minha filha
e nesse beijo de adeus em sua inocência adormecida.

Nesta agonia…
neste abismo de incertezas…
abre-se o itinerário clandestino dos meus passos.
De todos os caminhos
resta-me uma rota de fuga, outras fronteiras e um destino.
Das trincheiras escavadas e dos meus sonhos,
restou uma bandeira escondida no sacrário da alma
e no coração…
um passaporte chamado… liberdade.

Curitiba, 14 de março de 1969

Víspera

Catorce de marzo
mil novecientos sesenta y nueve.
Es preciso…
es imprescindible denunciar el compás amenazador de estas horas,
describir esta puerta estrecha que atravieso,
esa noche que me escurre en un sumidero de presentimientos

Un desespero impersonal y siniestro planea sobre las horas…
el año se doblega bajo un tiempo que me aplasta
porque aplasta la patria entera…

Nuestras canciones silenciadas
nuestros sueños escondidos
nuestras vidas patrulladas
nuestros puños esposados
nuestras almas invadidas.

Por los ecos rastrillados de mis versos
llegan los pretorianos del régimen.
Alguien  ya fue detenido, interrogado, amenazado
y por eso es necesario anticipar la madrugada.

Y he aquí porque ese canto ya nace amordazado
porque surge en el umbral del pánico.
Mi testimonio es hoy un grito clandestino
mis versos no conocen la luz de la libertad
nacen iluminados por la antorcha de la esperanza
para esconderse en la silenciosa penumbra de los cajones.

Escribo en una página velada por el tiempo
y en un distante amanecer
es que mi canto irá florecer.

Escribo en un horizonte lejano y libertario
y en un tiempo a ser anunciado por el himno de los sobrevivientes.
Escribo para un día en que los crímenes de estos años puedan ser contados
para el día en que el banquillo de los reos esté ocupado por los torturadores.

Sin embargo, en esta hora, en este ahora
el tiempo se reparte para quien parte
y un corazón se parte en los corazones que se quedan.
El amanecer camina para desterrar nuestros gestos
para separar nuestras manos y nuestros ojos
y en esta eternidad para presentir lo que me espera
ya no hay más tiempo para decir cuanto quisiera.

Todo es una amarga despedida en esta larga madrugada
y en este descompasado palpitar,
contemplo mis libros perfilados de tristeza
retratos silenciosos de tantas utopías,
brújulas, faros, retazos de la belleza.
Digo adiós a Cervantes, a Lorca, a Maiakovski
pero solamente Whitman seguirá conmigo
en sus páginas de hierba
y en su canto democrático.
Contemplo aún los pedazos de mi mundo
en los amigos del penúltimo momento
en las lágrimas de un bienquerer
en la infancia de mi hija
y en ese beso de adiós en su inocencia adormecida.

En esta agonía…
en este abismo de incertidumbre…
se abre el itinerario clandestino de mis pasos.
De todos los caminos
réstame una ruta de fuga, otras fronteras y un destino.
De las trincheras excavadas y de mis sueños,
restó una bandera escondida en el sagrario del alma
y en el corazón…
un pasaporte llamado… libertad.

Curitiba, 14 de marzo de 1969

No primeiro post, uma homenagem

Há quase 43 anos, participei de uma aventura editorial, que resultou em dois números de uma revista de cultura que, segundo afirmam os contemporâneos, marcou aquela época da vida curitibana. Era a revista Forma, feita em parceria com Philomena Gebran. Pretendíamos fundar uma tribuna concreta de divulgação da cultura, “num esforço conjunto de todos os que sentem a falta de uma revista de cultura, em nosso ambiente tão necessitado, cada vez mais, de melhores meios de comunicação entre os que trabalham e se preocupam com o problema cultural”, conforme escrevemos no primeiro editorial.

Mas de antemão fazíamos a previsão da curta vida: “Sabemos, os descrentes já nos contaram, que somos movidos por um sonho quase irrealizável e que estamos sujeitos à inclusão entre os casos – comuns – de ‘mortalidade infantil’ das revistas de cultura, conforme a expressão sugerida por Sylvio Back, um dos membros do Conselho de Redação. Conselho, aliás, composto por colaboradores de peso, como Adherbal Fortes de Sá Junior (decano da imprensa do Paraná), Célia Reis Lazzarotto (esposa de Poty), Cesar Muniz Filho(poeta perdido para a Economia), Ernani Reichmann (escritor paranaense, considerado um dos maiores especialistas em Soeren Kierkegaard, José Renato (diretor teatral que, à época, ajudava a fundar o Teatro de Comédia do Paraná), Marcos de Vasconcellos (escritor e arquiteto carioca), Sérgio Rubens Sossela (um de nossos grandes poetas, que nos deixou recentemente) e o já citado Sylvio Back, conhecido por seus filmes e, mais recentemente, por seu trabalho poético.

Chegamos ao segundo número bastante animados com a repercussão da iniciativa, não só no Paraná, mas em várias cidades brasileiras. Mas não escapamos do registro amargo no mapa epidemiológico da cultura, que registrou a revista como mais uma vítima da tal mortalidade infantil. Como pretendíamos sobreviver sem inserções publicitárias, nos baseamos em promessas de apoio cultural de autoridades da época, que, afinal, foram somente promessas. Mas valeu a experiência.

Valeu tanto que, passados mais de 40 anos, ao reler os dois únicos números, podemos verificar que todos os nossos colaboradores, se ainda não eram consagrados, tiveram todos brilhantes caminhos em suas atividades culturais. E Forma ainda é lembrada com elogios, apesar de sua curtíssima existência.

Mas volto ao assunto principal deste primeiro post, que é uma homenagem a um dos primeiros poetas publicados por Forma. Ficamos sem nos ver também por quase quarenta anos. No reencontro, rapidamente religamos os laços separados por diferentes fados, sem que tivéssemos diminuídas as ligações de amizade e valores comuns daqueles tempos de juventude.

Remarcada a agenda social, até mesmo para apresentarmos as respectivas famílias, tivemos um encontro em minha casa, na noite de 21 de maio de 2008. Conheci Neiva e ele conheceu Teresa. Com o papo mais animado, criei um momento de suspense, dizendo lamentar por ele não ter lembrado que, exatamente naquele dia, um filho seu completava 42 anos. Mas eu, querendo reparar seu esquecimento pelo filho abandonado, resolvera trazer-lhe o herdeiro para revê-lo. Claro que a comediazinha causou certo frisson no ambiente, principalmente pelo fato de Neiva, até aquela altura, desconhecer a existência de um filho de seu marido com aquela idade.

Para desvendar rapidamente o mistério, entreguei-lhe o “filho” aparentemente esquecido, que veio à luz no dia 21 de maio de 1964 e foi publicado na revista Forma 1, em 1966. Era o Poema Brabo, do reencontrado Manoel de Andrade, poeta e amigo de longa data, ressuscitado em forma de um pôster emoldurado, com a reprodução da página da revista. Apenas acrescentei, como dedicatória: reeditado em maio de 2008.

E é esta a homenagem que o primeiro post do Banco da Poesia quer fazer ao Maneco, como ele é chamado carinhosamente, com a publicação, já em formato eletrônico, de seu Poema Brabo, tal como foi editado na Forma.

poemabrabo