Arquivo da tag: Ennio Marques Ferreira

Vem de Jaú um novo canto

Segundo o próprio Mauricio Ferreira, “nasci em Jaú, SP no ano de 1970, estudei Direito (incompleto), Jornalismo (incompleto), fui viver uma aventura em Floripa em 1990, onde me tornei caseiro e me interessei definitivamente por letras. De volta pra São Paulo, ingressei no curso de Cinema e foi um dos editores do fanzine Azougue. Finalmente, me formei em Cinema, em 1996, fui produtor de vídeo em Bauru, SP, virei saci (tive que amputar uma perna) e atualmente sou diretor da Secretaria Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos de Jaú, completando assim um ciclo de minha vida”.

Maurício se esqueceu de dizer: é também poeta. E dos bons. Tem um livro — Que se vá —  ainda não publicado. Ele prometeu assiduidade de depósitos no Banco da Poesia. Maurício tem um parente ilustre em Curitiba: é sobrinho de nosso amigo e artista plástico Ennio Marques Ferreira, um dos maiores semeadores (ele também é agrônomo) de cultura que o Paraná teve durante toda a segunda metade do Séc. XX.

Bem vindo, Maurício,  agora e sempre!

A Cidade

I

Não há sentido nas manhãs desta cidade

Só é vivo quem não pode fugir do sol.
O resto, todo mundo dorme,
Enquanto receitas de saúde e longevidade
São transmitidas na cadeia nacional.

O meio dia se almoça com protetor solar.
Seja o que deus quiser.
Tenho que trabalhar.

A tarde é uma miragem
Vista pelo fundo de um copo americano.
Nada desliga o ópio dos dias.

Vantagens contadas diante da TV,
Sonhos improváveis antes de dormir e
Promessas de eletrodomésticos
num crediário fácil.

Dias melhores, delírio,
sinto muito.
Pingue logo seu colírio,
Ou a vida é juros pra quem dá mole.
Ou moleza pra quem tem juros.

Há-há! Escreveu Jack the Ripper.
Loucura, Loucura, Loucura
Riu de volta outro maníaco.

Não há sentido nas manhãs desta cidade

II

Sexta Feira
O crepúsculo me revela vazio.
Expõe o cansaço da cidade:

O resto.

Carvão de cana no outono
Anunciando o suor da vassoura pela casa
E a agonia terra-roxa

Por miligramas de alegria,
A Cidade zumbi trabailando até as 18:00
No remoinho de cinzas em que piso

Lá longe o centro acende as luzes:
O rugir excitado dos motores
É um mantra de impotência.

_________

Do livro Que se vá   – Ilustração: C. de A.

A Revista Forma

Manoel de Andrade
formaneco

Não me esquecera da Revista Forma e do impacto cultural que causou na época, acenando-nos, naquele janeiro de 1966, com um espaço onde pudéssemos semear nossas ideias e nossos sonhos.

Forma chegava no momento certo. Os tempos sinalizavam para a nossa emancipação intelectual e, na década de 60, apesar do quartelaço de 64, o Paraná passava por um estado de graça em termos de cultura, e Curitiba, como centro polarizador dessa conjuntura, demandava uma publicação que expressasse ao país aquela realidade e partilhasse suas inquietudes com a inteligência nacional.. Vivia-se numa agradável atmosfera do espírito, marcada pela relevância das artes plásticas na presença do Juarez Machado, cartunista, na imprensa nacional; pelos prêmios do João Osório Brzezinski; pelas gravuras do Fernando Calderari e pelo destaque do Salão Paranaense de Belas-Artes. A literatura ainda buscava seu espaço marcado com a presença de novos poetas e contistas, pelo destaque de prosadores como o Dalton Trevisan e Jamil Snege e pela emocionante Noite da Poesia Paranaense, em 65, no Teatro Guaira. A dramaturgia mostrava sua presença com o talento de Cláudio Correia e Castro na direção do Teatro de Comédia do Paraná e, pelo apoio oficial, foi criado no Teatro Guaíra a Escola de Arte Dramática,  promovendo-se um intercâmbio com grandes companhias nacionais que colocaram Curitiba no roteiro dos grandes espetáculos. A música também ensaiava, por aqui, os seus melhores passos e instituições como a Pró-Música e a Scabi estiveram à frente de cursos e festivais de música realizados na Capital. Tudo isso partilhado com a regência do grande trabalho do maestro Roberto Schnorremberg no comando do Curso Internacional de Música do Paraná. Muitos de nós líamos o Cahiers du Cinéma e acompanhávamos também o pionerismo de Sylvio Back que já anunciava seu grande talento em vários curta-metragens, lançando em 1968, o filme Lance Maior.A crítica cinematográfica surge com o talento prematuro e de vanguarda de Lélio Sotomaior e Sérgio Rubens Sossélla, –que em setembro de 1963 me presenteou seu primeiro livro, 9 Artigos de Crítica  –marcou sua  indelével passagem por aqueles anos, como poeta, como crítico  – um dos maiores entendidos na obra de Fialho de Almeida, no Brasil  – e como colaborador e membro do Conselho de Redação da revista Forma. Naquela mesma época, publicava o ensaio sobre Milton Carneiro e sua Procissão de Eus. Na imprensa, a cultura era veiculada através da incansável atividade de Aramis Millarch e, sobretudo, pelo respeitável trabalho de Aroldo Murá Haigert, cuja coluna Vernissage, no Diário do Paraná, era a caixa de ressonância da melhor expressão da arte e da cultura paranaense. Quiséramos falar de outras sementes, de flores que desabrochavam e de frutos que começavam a amadurecer. Quiséramos falar  das tantas luzes que iluminaram aquela aurora cultural – marcada também pela arquitetura e a importância superlativa do nosso urbanismo –, mas tudo isso ou quase tudo, mal conseguiu chegar intacto até o fim de 68. E toda esta  primavera curitibana  –  abortada pela repressão e o trágico silêncio cultural que se seguiu ao AI-5 –  a Forma se propunha abarcar em seu espaço, mas fechou suas páginas prematuramente e não conseguiu retratar a integralidade daquele fenômeno.

Em julho de 2003 enviei uma carta a Fabio Campana parabenizando-o pelo primoroso lançamento da Revista Et Cetera e dizendo-lhe que, apesar de não ter notícia de que no Paraná se tenha publicado uma revista de cultura com um requinte visual e uma escolha tão criteriosa dos textos quanto a sua, houve, contudo, em Curitiba, uma honrosa exceção, tentada no bem intencionado projeto da revista Forma, lançada pela originalidade e a sensibilidade gráfica de Cleto de Assis e com carismática intelectualidade de Philomena Gebran.

Hoje, 43 anos depois, compulsando com saudade suas páginas, abro o meu nº 01  – autografado pela Philomena, pelo Cleto e pelo João Osório – e releio o primeiro artigo: Cultura no Paraná, uma bela matéria sobre a primeira metade da década de 60. Escrito com  elegância  e inteligência por Ennio Marques Ferreira (a quem o Paraná também muito deve por sua passagem, naquela época, pelo Departamento de Cultura da Secretaria da Educação e Cultura e, mais recentemente, na Casa Andrade Muricy), o texto delineia toda a paisagem cultural do Estado, na primeira década de 60, enfatizando o papel da arquitetura e das artes plásticas. Seguem outras tantas expressões da cultura paranaense e pontificam neste número os desenhos litografados de Poty, a pintura de João Osório, um estudo sobre uma partitura de Bach feita pelo regente José de Almeida Penalva (o famoso Padre Penalva, da época), um belíssimo poema do poeta e estadista senegalês Léopold Sedar Senghor e textos de Sylvio Back, Elias Farah e Nelson Padrella.

A nota de abertura do segundo número comenta da receptividade e do alcance nacional da Revista. Enfatiza seus propósitos como instrumento de diálogo com a intelectualidade brasileira e como instrumento de divulgação de uma cultura democrática. Não vou declinar, nos limites desta nota, toda a seleta galeria dos nomes que integraram os dois números da revista Forma. Contudo, quero ressaltar, no segundo número, a saudosa presença de Guido Pellegrino Viaro contando, num texto autobiográfico, as passagens marcantes de sua vida, desde sua origem simples e provinciana na cidadezinha italiana de Badia Polesina, onde nasceu em 1897. Destaca as dificuldades dos primeiros estudos, seus sonhos com terras distantes, seu alistamento, aos 16 anos, sua participação na 1ª Guerra Mundial, depois a tristeza e os horrores. Mais tarde, os estudos em Veneza e a busca de um caminho para a sua arte…, “a linha – sempre a linha  – os espaços, a cor.”  Da Europa para a América. Do Rio para São Paulo. A chegada fortuita a Curitiba. “Procurei me manter em pé sem fazer concessões. (…). Tratei com carinho a composição, após ter estudado a paisagem e a criatura. Só assim consegui não soçobrar, permanecendo assim mesmo, o pintor figurativo de ontem.”  O  segundo número tem sequência com um estudo arquitetônico de Cleon Ricardo dos Santos; um recheado BAÚ de notícias culturais, o poema Cântico de Guerra, de João Manuel Simões e um interessantíssimo artigo sobre Literatura: Regional & Universal, de Hélio de Freitas Puglielli. Este número fala ainda de teatro e promove  um DEBATE sobre Orson  Welles,  através de textos de Sergio Rubens Sossella, Sylvio Back e Luiz Geraldo Mazza. Entre outras matérias, este segundo e último número da Revista se encerra com dois contos: Lamentações de Curitiba, de Dalton Trevisan e Noite/Nove,  de Jamil Snege.

Forma teve um nascimento deslumbrante, mas, infelizmente, morreu ainda infante. Tinha tudo para ser nossa aldeia, nosso mágico território. Gestada pelas idéias de um tempo melhor, teve um parto cultural luminoso. Filha de tantos anseios e dos legítimos sonhos de cultura do Cleto e da Philomena, todos acompanhamos seus primeiros passos, e por isso  ela foi o nosso mimo, nosso relicário e agonizou em nossas lágrimas. Nestes dias, em que a memória da década de 60 abre as portas para tantos visitantes, registramos aqui nosso saudoso sentimento e uma esperançosa alegria por sabermos que o Cleto de Assis, que navega com destreza nas águas da informática, pretende publicar na Internet todo o rico conteúdo das duas únicas edições.