Quero abrir conta corrente, neste Banco da Poesia, em nome de Saramar Mendes de Souza, poeta goiana. Ou, simplesmente, Saramar, nome que já é um poema de apenas sete letras, como as notas da escala musical. Há algum tempo, ela se autodefinia como uma “aprendiz de poeta, em constante luta com as palavras”. Pura enganação. Fingimento de poeta, como diria Pessoa, já que ela domina as palavras com maestria. Hoje, a descrição de si mesma é mais singela: “Sou apenas uma mulher tentando escrever sobre sentimentos, emoções e algumas dores”.
Conheci Saramar por outros caminhos, não os abertos pela poesia. Frequentamos, durante algum tempo, uma comunidade da Internet preocupada com os destinos deste país e nos identificamos em alguns comentários. Ela gostou de um texto meu e pediu licença para publicá-lo no blog Outras Letras, mantido por um amigo seu. Foi depois disso que descobri a imensidão poética que nela habita. Visitei seus blogs, indicados em seu perfil. Aliás, um perfil que não esconde, por exemplo, sua idade, mas não revela outras qualidades que por certo lhe acompanham.
Lembro que, entusiasmado, fiz um comentário elogioso em um de seus poemas publicado no Flanarfalares (veja, abaixo, os endereços dos principais que ela criou e administra) e enviei uma mensagem para alongar meus elogios: Hoje matei o tempo a vaguear (ou flanar?) pela Internet e decidi conhecer um pouco mais de minha prolífica amiga, mãe de encantadas escrevinhações e doces falares. Busquei por seu nome no Google e voilà! você é mais que domínio público, de tão conhecida por este mundão. Foi melhor que uma taça de vinho tomada no Santo Graal! Escarafunchei quase tudo e só parei para poder economizar mais sabores para outras ocasiões. Estou verdadeiramente deslumbrado com sua poesia, embora tão impregnada de solitudes. Temos muitas coincidências a enfeitar nossas vidas: nascemos em um dia 9 (eu, 9 de maio), gostamos de boleros e MPB e amamos as palavras mágicas da poesia: ambos pessoanos declarados. Muito obrigado pela tarde maravilhosa que lhe roubei, sem pedir licença. Como não concordo com seu perfil de “aprendiz de poeta, em constante luta com as palavras”, resolvi pagar o tempo furtado com outra escrevinhada, louvando as palavras como nossas ternas e eternas amigas, mesmo quando as usamos para nos defender da áspera insensibilidade de tantas pessoas. Declaro, perante a Humanidade, que me senti orgulhoso por você ter-me incluído entre seus amigos, que já se contam aos milhares.
Espero que Saramar me perdoe pela abertura desta conta corrente, feita sem prévio consentimento da correntista. Juro que minha intenção não é a mesma dos demais bancos e administradoras de cartões de crédito que nos mandavam (agora já é proibido) cartões não solicitados. A sua inclusão em nosso rol de “clientes”, além de homenagem mais que merecida por seu trabalho poético, intenciona motivar outros possíveis depositantes, neste começo de vida do Banco da Poesia. E a inauguração ficaria incompleta sem o registro de sua presença.
Escolhi quatro poemas de Saramar entre os últimos publicados. Não usei qualquer critério para a escolha, pois não é preciso ser criterioso em relação à sua obra para se obter poesia da melhor qualidade.
Para quem quiser conhecer mais sobre o oceano de sensações de Saramar, aqui vão os endereços de quatro de seus principais blogs. A partir deles, os leitores poderão descobrir outras veredas da poesia saramariana, inclusive em publicações internacionais.
Escrevinhações http://lidosevividos.blogspot.com/
Falares http://flanarfalares.blogspot.com/
Abrindo janelas http://abrindojanelas.blogspot.com/
Eufeminismos http://eufeminismos.blogspot.com/
Como sempre, visito seu mundo de sensibilidade sem pedir licença, como fiz em uma tarde antiga e em muitas ocasiões posteriores. Terei seu perdão?
A alguém
Alguém diz com lentidão: ” Lisboa, sabes…” Eu sei. É uma rapariga descalça e leve, um vento súbito e claro nos cabelos…” Eugénio de AndradeA alguém, um único alguém, importam todos os versos.
Se, por acaso, desarvorado, outro alguém degusta a ânsia
das minhas palavras espalhadas em arremedo de poemas
e nelas bebe o que me sacia e me abre os céus do amor,
percebe logo, em uma ou outra linha dispersa e morna,
que todas as luas acesas e os beijos estão encantados
do feitiço mais improvável.
Não me culpe, nem queira desvendar meu sentir,
se, porventura, alguma palavra tange a corda do querer
e desperta o desejo de amor semelhante a este meu amor
que não se cala, antes abre-se como portas arrebatadas pelo vento.
Não, não me culpe e nem me peça o que já não me pertence.
O meu amor, insubmisso e alheio ao que lhe nega o existir,
anda perdido pelos caminhos, buscando os rumos
de quem o tomou sem pressentir.
Saramar
Silêncio
Da saudade já disse
e da boca nua e fria
de desolação.
Adormeço as palavras na pele
na mudez de todo dia.
O silêncio espanta o sono
guardado no verbo insensato
de quem ama o desvario,
de quem planta o pranto.
Já mais não falo
meu silêncio agoniado
dói nos olhos da noite.
Insone sigo
olhando a dor por dentro.
Saramar
Amantes de outonos ou dos pedidos ao tempo
É de outonos que me disfarço,
vento na manhã,
o tempo violando cortinas,
passos tangidos na premência de ser já primavera
colorindo estes muros mortos de sono.
Nas calçadas inelutáveis dos dias,
ao som dos saltos e do gemido das folhas,
o vento se despedindo do que fora árvore
sonho o destino dos pássaros, alto,
de caminhar entre o vento.
(e chegar, enfim, aos teus braços).
Nos outonos de que me visto,
nunca te esqueço e, como pedes,
peço ao tempo as horas maiores
de voltear em teus braços
frágil fêmea em flerte,
nas mais tontas danças,
o vento voluteando-nos.
Eu peço ao tempo, o maior do dia
a hora mansa e quente
os chãos de amar
em cores de amantes,
semelhantes, todos semelhantes
no querer.
peço ao tempo, o tempo de te encontrar.
Saramar
Rendas de sal
“Invento o amor e sei a dor de me lançar Eu queria ser feliz Invento o mar…” Milton Nascimento e Ronaldo BastosRendo-me ao improvável navegante
de minhas águas
marés ignoradas.
Rendo-me
ao que nunca me abraça
ao barco que passa além
e seus olhos de não ver ressacas e remansos
areia de palavras, decorada
que espalho, de tempos em tempos.
Rendo-me ao vento inocente dos dias
que apaga o sonho, ao passar
e leva o aroma dos beijos
e leva quem amava para outro e longe mar.
Rendo-me à ardente constância das águas
presas nestes meus olhos
e à abstinência dos sentidos
nestes frios lençóis, perdidos.
Rendo-me
e me sufocam os bordados
e as flores tristes
à espera do navegante para sempre longe
destas rendas que, de amor,
teci.
Saramar