Arquivo do mês: abril 2010

Virgínia Victorino, (e)terna voz da poesia portuguesa do Séc. XX

A situação das mulheres em Portugal, na primeira metade do Século XX, não era nada confortável, embora a Europa vivesse momentos de tensões sociais profundas, com mudanças sensíveis na vida social e cultural. Surgiam, no Velho Continente, e se espraiavam pelo mundo, novas tecnologias artísticas e reformulações extremas de conceitos estéticos. Portugal também era influenciado por esses movimentos, mas obedecia a padrões internos bastante conformados pela vida política, principalmente nos anos do governo de Antonio de Oliveira Salazar (1889-1970; presidente do Conselho de Ministros durante quase todo o Estado Novo, de 1933 até sua morte).

No período salazarista, regido por preceitos religisos e soais que realçavam o trinômio “Deus, Pátria e Família”, imperava a tendência de considerar a mulher como ser social subsidiário do homem, inclusive afastando-a do trabalho, reservado prioritariamente aos profissionais masculinos, embora a mulher ocupasse, largamente, funções de trabalho mais árduo em vários segmentos sociais, do rural ao urbano. Mas, apesar de certo isolamento de Portugal provocado pela forte política nacionalsita da época, surgiram muitos valores altos na cultura portuguesa, a exemplo de Fernando Pessoa, a máxima expressão da poesia portuguesa de então.

Às mulheres com maior sensibilidade artística cabia lutar contra os preconceitos e impor seu trabalho a duras penas, como ocorreu com Florbela Espanca e Virgínia Victorino, poetas contemporâneas, mas pouco saudadas pela sociedade daquela época. Falaremos de Florbela mais tarde. Hoje vamos ver um pouco da vida e da obra de Virgínia Victorino, poeta ainda pouco conhecida no Brasil.

Virgínia Villa-Nova de Sousa Vitorino nasceu em Alcobaça, a 13 de Agosto de 1895 e morreu en Lisboa, em1967. Foi poeta e dramaturga. Estudou Filologia Românica na Faculdade de Letras de Lisboa e frequentou o Conservatório Nacional de Música, onde estudou piano, canto, harmonia e italiano. Professora de liceu, trabalhou também na Emissora Nacional, onde dirigia radioteatro. Autora de três livros de poesia e de seis peças de teatro, todas representadas pela Companhia de Amélia Rey Colaço, Virgínia Vitorino foi agraciada pelo governo português com o grau de Oficial da Ordem de Cristo, em 1929, e com a Comenda da Ordem de Santiago, em 1932.

Do governo espanhol recebeu a Cruz de D. Afonso XII, em 1930.  Almada Negreiros foi
autor de algumas das capas dos seus livros. Recebeu o Prêmio Gil Vicente do Secretariado Nacional de Informação pela peça Camaradas. A sua obra Namorados (1918) foi editada catorze vezes. Teve vasta colaboração em jornais e revistas portuguesas e brasileiras. Esteve no Brasil a convite de Getúlio Vargas, por volta de 1937.

Medo


Ouve o grande silêncio destas horas!
Há quanto tempo não dizemos nada…
Tens no sorriso uma expressão magoada,
tens lágrimas nos olhos, e não choras!

As tuas mãos nas minhas mãos demoras
numa eloqüência muda, apaixonada…
Se o meu sombrio olhar de amargurada
procura o teu, sucumbes e descoras…

O momento mais triste de uma vida
é o momento fatal da despedida,
— Vê como o medo cresce em mim, latente…

Que assustadora, enorme sombra escura!
Eis afinal, amor, toda a tortura:
— vejo-te ainda, e já te sinto ausente!

Palavras

Seja alegria, seja mágoa, ciúme
Pena de amor, ou grito de revolta
Tudo a palavra humana em si resume
Tudo arrasta suspenso á sua volta!

Palavras
Céu e inferno!
Cinza e lume!
Mistério que a nossa alma traz envolta!
Umas, consolação!
Outras, queixume…
Todas correndo como o vento á solta!

Tudo as palavras dizem
A verdade, a mentira, a crueldade…
Mas afinal, o que perturba e espanta
É o drama das que nunca foram ditas
Das palavras pequenas e infinitas
Que morrem sufocadas na garganta!”

Renúncia


Fui nova, mas fui triste; só eu sei
como passou por mim a mocidade!
Cantar era o dever da minha idade…
Devia ter cantado, e não cantei!

Fui bela. Fui amada. E desprezei…
Não quiz beber o filtro da ansiedade.
Amar era o destino, a claridade…
Devia ter amado, e não amei!

Ai de mim! Nem saudades, nem desejos;
nem cinzas mortas, nem calor de beijos…
— Eu nada soube, nada quis prender!

E o que me resta? Uma amargura infinda:
ver que é, para morrer, tão cedo ainda,
e que é tão tarde já para viver!

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Ilustrações: C. de A.

Ademir Demarchi e o elogio a Tânatos

Ademir Demarchi nasceu em Maringá, em 7 de abril de 1960, e reside em Santos há 15 anos, onde trabalha como redator. Formado em Letras/Francês, com Mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina (1991) e Doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1997), foi editor da revista Babel, de poesia, crítica e tradução, com seis números publicados de 2000 a 2004. É autor de Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial do PR, 2002); Volúpias (poemas, Florianópolis: Editora Semprelo, 1990); Espelhos incessantes (“livro de artista” com poemas do autor e gravuras de Denise Helena Corá, edição dos autores, Santos: 1993; exposto no Museu da Gravura em Curitiba no mesmo ano); Janelas para lugar nenhum (poemas, com linoleogravuras de Edgar Cliquet, edição dos autores, Santos: 1993; lançamento feito em Curitiba, no Museu da Gravura, no mesmo ano). Além desses trabalhos, o autor tem também poemas, artigos e ensaios publicados nos livros Passagens – Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná; 18 Poetas CatarinensesA mais nova geração deles (ed. e org. Fábio Brüggemann, FCC Edições/Editora Semprelo, 1991); Os mortos na sala de jantar (Realejo Livros, 2007) e Passeios na Floresta (Editora Éblis, Porto Alegre, 2008). Publica também em periódicos como Literatura e Sociedade (São Paulo, USP); Medusa (Curitiba); Coyote (São Paulo), Oroboro (Curitiba),  Jornal do Brasil/Idéias; Rascunho (Curitiba); Jornal da Biblioteca Pública do Paraná; Babel (Santos); Sebastião (São Paulo); Los Rollos del Mar Muerto (Buenos Aires, Argentina) e sites,  entre eles,  as revistas eletrônicas Germina, Agulha, El Artefacto Literario, Tanto e Critério.

Em seu livro Os Mortos na Sala de Jantar, Ademir Demarchi invade o terreno quase proibido — ou pelo menos evitado — da Morte, essa senhora que nos espera desde o dia em que nascemos. Não é tema inédito nas artes, mas é sempre corajoso, dado o costume que temos defugir do tema. Talvez, em nossa literatura pátria, o exemplo máximo de culto à morte tenha sido o de Augusto dos Anjos (1884-1914), poeta que feria sua obra com a obsessão pelo sofrimento, produto de sua frágil saúde e senilidade precoce. Demarchi, no entanto, não se refugia em sentimentos negativos pessoais. Apenas nos lança um desafio — olhar de frente o único acontecimento previsível de nossa própria vida e do qual quase sempre nos recusamos até mesmo de falar.  E já no começo de seu livro, registra a simples e inequívoca frase lapidar de Marcel Duchamp (1887-1968), o polêmico dadaísta francês: “…além disso, é sempre os outros que morrem…“.

Mas avisa aos desavisados, no seu primeiro registro poético:

As aparências enganam

qualquer semelhança
com palavras fatos
coisas pessoas

mortos

terá sido mera coincidência

Ademir dedica seu livro “aos cadáveres que a vida no dá de comer”, o que explica o título Os Mortos na Sala de Jantar. Em um de seus poemas, ironicamente nos faz pensar na atualíssima ração humana (“seja lá o que isso for“), para ampliar o cardápio do excêntrico (ou muito centrado) ágape poético. E pesponta o livro com momentos de irônico humor: “lá vai o viúvo / sorri sua mulher / morreu sua amante” (Da Felicidade e da Infelicidade) e satirizando a Política em Manchete: “ex-diretor de cemitério / nega ter sido / funcionário fantasma“.

Quem tem medo do escuro, leia. Quem não gosta nem de ouvir falar na Morte, leia também. O livro de Ademir Demarchi faz a gente pensar por meio da composição poética, que estende as mínimas palavras em máximas reflexões. Como no seu mais lacônico poema, quase posfácio, Pós Tudo: ¨pó”. É preciso mais para filosofarmos sobre nosso destino? (C. de A.)

Da Incapacidade de Sentir Luto


amas parasita, diz e diz, não exita:
o amor, errante, além de tudo cego
feito um imenso morcego negro
que, imerso em trevas, só vê o ego

ouves senão por apupos meigos
inflação econômica de si mesmo
insuflada por espelhos vesgos
e promessas de paraísos ternos

no vazio de si inflas de ilusão
e epifania um Pai de aluvião
que cadencie carnificina e gozo

o ego cego que tem por coração
blindado e oco veloz do ai se esvazia

veloz esqueces crimes e imune à punição
desobrigas-te de tudo
e até do luto

Balada de Narayama

Imagem do cartaz do filme Balada de Narayama, de Keisuke Kinoshita (1958)

a sina assinala a hora
para o filho chegada
para a mãe partida

ossos pelo caminho
assinalam as vorazes fomes
dos que deles nasceram
e se nutriram para tomar forma
perpetuando a vinha

o útero que o fiou
agora às costas
é uma pena inútil
pela qual não se chora

subindo a montanha
reprimes a vida de manhas
para ser pai deixarás
a mãe às entranhas

Enterros no Céu


não há terra para o enterro
nem parasitas para roer
há frio que congela os corpos
e não os desintegra

é preciso fazê-Ias desaparecer

por não ter onde os pôr
os tibetanos os levam a uma alta pedra
e os repicam em pedaços
que as aves de rapina
possam bicar

e

levar

para

o

céu

Homenagem ao Índio, por Gonçalves Dias

Se alguém conseguiu falar magistralmente do índio brasileiro, esse alguém foi Antonio Gonçalves Dias, poeta maranhense (Caxias a 10 de agosto de 1823 — Guimarães, 3 de novembro de 1864) que se orgulhava de ser filho de português com mulher cafuza. Tinha, portanto, sangue branco, negro e índio, a mescla étnica que domina a formação cultural brasileira. José de Alencar, escritor seu contemporâneo e, também como ele, retratista da formação da nacionalidade, afirmou que “Gonçalves Dias é o poeta nacional por excelência: ninguém lhe disputa na opulência da imaginação, no fino lavor do verso, no conhecimento da natureza brasileira e dos seus costumes selvagens”. Embora cantasse a bravura do índio, ele também lamentava o recolhimento físico e cultural do povo indígena.

Deixou muitas obras indianistas, dentro do romantismo que abraçou como conceito literário de sua época. Em homenagem ao Dia do Índio, que se comemora a 19 de abril, publicamos um de seus poemas mais conhecidos.

Canção do Tamoio

Rodolfo Amoedo - O Último Tamoio , 1883 óleo sobre tela, 180,3 x 261,3 cm Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro, RJ)

I

Não chores, meu filho;
Não chores, que a vida
É luta renhida:
Viver é lutar.
A vida é combate,
Que os fracos abate,
Que os fortes, os bravos
Só pode exaltar.

II

Um dia vivemos!
O homem que é forte
Não teme da morte;
Só teme fugir;
No arco que entesa
Tem certa uma presa,
Quer seja tapuia,
Condor ou tapir.

III

O forte, o covarde
Seus feitos inveja
De o ver na peleja
Garboso e feroz;
E os tímidos velhos
Nos graves concelhos,
Curvadas as frontes,
Escutam-lhe a voz!

IV

Domina, se vive;
Se morre, descansa
Dos seus na lembrança,
Na voz do porvir.
Não cures da vida!
Sê bravo, sê forte!
Não fujas da morte,
Que a morte há de vir!

V

E pois que és meu filho,
Meus brios reveste;
Tamoio nasceste,
Valente serás.
Sê duro guerreiro,
Robusto, fragueiro,
Brasão dos tamoios
Na guerra e na paz.

VI

Teu grito de guerra
Retumbe aos ouvidos
D’imigos transidos
Por vil comoção;
E tremam d’ouvi-lo
Pior que o sibilo
Das setas ligeiras,
Pior que o trovão.

VII

E a mão nessas tabas,
Querendo calados
Os filhos criados
Na lei do terror;
Teu nome lhes diga,
Que a gente inimiga
Talvez não escute
Sem pranto, sem dor!

VIII

Porém se a fortuna,
Traindo teus passos,
Te arroja nos laços
Do inimigo falaz!
Na última hora
Teus feitos memora,
Tranqüilo nos gestos,
Impávido, audaz.

IX

E cai como o tronco
Do raio tocado,
Partido, rojado
Por larga extensão;
Assim morre o forte!
No passo da morte
Triunfa, conquista
Mais alto brasão.

X

As armas ensaia,
Penetra na vida:
Pesada ou querida,
Viver é lutar.
Se o duro combate
Os fracos abate,
Aos fortes, aos bravos,
Só pode exaltar.

Dia Internacional do Beijo

Hoje é o Dia Internacional do Beijo. De quem terá sido a idéia? Porque beijos calham bem em qualquer dia, a qualquer hora. E é sempre motivo para os poetas. Sem dar muita atenção aos perigos do beijo, como alertam alguns procupados internetianos (principalmente neste começo de outono, quando os ares se tornam mais frios e o perigo da gripe suína nos ronda), saudemos essa expressão da sensibilidade e da sensualidade humana, imitada até pelos animais ditos irracionais. Comecemos com alguns poetas que se inspiraram no ósculo (que palavrinha feia!) entre amantes. Depois, uma série de imagens colhidas na Internet, para comprovar que o beijo é extensivamente animal. No bom sentido, é claro…

Beijoqueiros de todo o mundo, uní-vos!

Um beijo

Olavo Bilac
Foste o beijo melhor da minha vida,
ou talvez o pior…Glória e tormento,
contigo à luz subi do firmamento,
contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
e do teu gosto amargo me alimento,
e rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
batismo e extrema-unção, naquele instante
por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-me o ardor, e o crepitar te escuto,
beijo divino! e anseio delirante,
na perpétua saudade de um minuto…

O mundo é grande

Carlos Drummond de Andrade

O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

De  Amar se Aprende Amando


Teus lábios de navegar

Saramar Mendes

Refazem teus lábios
minha pele lassa
e rios traçam,
de sangue em rebuliço
de mar sem tempo marcado,
teus lábios de me tomar.

Tanto tempo desfazes
com teus beijos
e o sol tem outro alumiar
de passeio e pipa, no ar
e a pele que com teus beijos devassas,
são rosas avermelhadas
de amor, guardando o viço,
o fogo de me queimar.

Tanto tempo, tanto amor
e conheço a saudade de cada pedaço meu
de onde tua língua lenta e doce se vai,
barco de me singrar.

Tanto teus lábios levam de mim
para jardins no mar
o ruim, a escuridão, o siso
e deixam, longe, longe…
em meus delírios, teus risos
em meus rios,
teus lábios a navegar.

Sailor kiss - famosa foto de Alfred Eisenstaedt, no final da II Guerra Mundial

Uma voz de Valência, transformada em silêncios, atravessa o Atlântico

Em Algemesí, municipio da província de Valência, na Espanha, uma comemoração tradicional rememora o achado, em 1247, de uma imagem de Nossa Senhora da Saúde (Verge de la Salut ou Mare de Déu da Salut, na língua valenciana). A festa cobre os días de 7 e 8 de setembro, que se constituem nas maiores datas da cidade. No dia 8, uma procissão formada por danças típicas,

Torre humana na Muixeranga de Algemesí

introduz a imagen da Virgem na basílica de Algemesí, “rodeada de muixerangues e danças de tornejants, bastonets e llauradores, ao som de dolçaines e tabalets” (ver significado abaixo). No dia da festa do ano de 1968, poucas horas depois da imagen ter entrado na igreja, nascia uma menina que receberia o nome de Salut, em homenagem à padroeira local.

O cenário que cercou o nascimento de Salut Navarro Girbés talvez lhe tenha tocado com o dom da poesía. Mais tarde, ela estudaria Psicologia, pela Universidade de Valência, e tornou-se mestre em Marketing. Apaixonada pela poesia e a literatura desde sua infância, só recentemente lançou seu primeiro libro Silentes, no qual ela convida o leitor a percorrer seus sentimentos e experiências pessoais, magnificados sempre pelo silêncio, que  identifica e define toda sua obra poética. Como ela mesma expressa: “Estou plena de silêncios, mas ainda me restam algumas palavras”.

Conheci Salut Navarro no ning Militeraturas! e, após ler seus poemas em vários sites, convidei-a a abrir uma conta no Banco da Poesia. Não só aceitou o convite como me comunicou que seu libro e seu disco já estão atravesando o oceano Atlântico para me encontrar.

Mas antes que Silentes chegue, vamos conhecê-lo por meio da sinopse que o livro nos oferece.

Existe.

Há um lugar no qual o silêncio caminha descalço sobre sinuosa hera, onde a profundidade salobre nos protege a todos de caminhos cotidianos na vida.

Há um lugar perdido, repleto de atalhos inundados de fragrâncias, paixões, amor, tristeza notâmbula e lodo azulado de olhares ermos.

O mar convertido em homem nos arroupa azul, esculpindo ilhas, abrigando náufragos, albergando para sempre nossas almas silentes…

Silentes é um percurso pela ampla bagagem sentimental, uma carícia essencial, uma biografia da sensibilidade inata, um passeio pelas emoções capturadas. Em suma, um esboço das palabras que jamais se pronunciam.”

E Salut– cujo nome já é uma saudação – continua: “Creio estar exatamente na metade do caminho, nem muito jovem, nem muito mais velha para nada, e tenciono aproveitar ao máximo tal situação. Tenho um pé na terra e outro em Vênus, balanço-me mas consigo o equilíbrio. Sou cidadã do mundo, como todos os cidadãos, e escrevo para ti, enaltecendo o mestre Sanchis Girbés, seguindo seus sábios conselhos: ‘Escreve e caminha. Nunca deixes de escrever nem de caminhar’. Nele estou, e ainda que ele me acompanhe, tenho que assumir também que se foi, ainda que seja só um pouco”.

Seja bem-vinda, Salut. Que seus versos sigam enriquecendo o Banco da Poesia! (C. de A.)

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Notas

  • Muixerangues ou Muixeranga – conjunto de quadros plásticos composto por torres humanas e figuras representativas, abrem uma sucessão de danças que finalizam as festas da Virgem da Saúde.
  • Els Bastonets – dança guerreira que aparece em muitos partes de Valência. Sua presença em Algemesí datada de 1839 e relaciona a festa com as tradições mais ancestrais da cultura valenciana. Ao som dos tabalets e da dolçaines os oito componentes da dança encenam uma luta com os bastonets (bastões) e as plantxetes.
  • Els Tornejants – a dança mais emblemática da festa da Virgem Maria da Saúde. Repleta de conteúdos místicos, põe em evidência as destrezas e habilidades de um grupo de cavalheiros que se movimentam ao som de um tambor como único acompanhamento.
  • Llauradores (lavradores) ou Bolero é a dança mais moderna da procissão, pois apareceu pela primeira vez em 1906. É a única dança que não vai acompanhada pela música da dulzaina e do tabalet, mas pela seção de instrumentos de sopro da banda.
  • Tabalet ou tamboril é um instrumento de percussão membranófono, cilíndrico, percutido com baqueta típico da península Ibérica. Similar a um tambor, mas com uma caixa mais estreita e alongada.
  • Dolçaines ou dulzaina é um instrumento de sopro de lingueta dupla, da família do oboé. Tem forma cônica e cerca de 30 cm de comprimento.

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Mienten

A Juan E. Sanchis Girbés
Maestro literario

Batas blancas dicen que has muerto,
que tu último aliento ha expirado.
Emblemático y simbólico
transciendes a tu propio ser,
y expandes tu fuerza al viento
que mueve gigantes y molinos.

…Y te yergues sobre tu caballo,
altivo, noble, sincero, digno.
Por lanza, una pluma afilada.
De escudo,  innata honestidad.
La honra, libertad blanca.
Arte, como lucha e himno.

Tu prisma ante la vida, zurdo y caleidoscópico,
te transforma en amenazador de miradas hipócritas.
Rey de los locos,
loco en presencia de fariseos,
cuerdo-loco por sabio, por bondadoso, por tierno.
Eres amor infinito.

Acaricio el pelo negro, la barba entrecana.
Frente tibia en lágrimas bañada.
Agua salina de horizonte vital y sombrío.
Permanezco en tu ribera,
en tus manos que se tornan frías, amarillean.
Mis palabras trenzadas con respuestas silentes.

Escudero soy, sé que las batas blancas mienten,
como se equivocó don Miguel.
¡Don Quijote no ha muerto!
Yo quiero ser loco,
privilegiadamente loco,
cíclope sabio de sensibilidad eterna.

Hoy dicen que has muerto,
y encierran tu cuerpo en un sepulcro gélido, mudo, oscuro.
Mis ojos te persiguen y mi alma queda presa contigo
entre las cuatro claustrofóbicas paredes de tu silencio.
Festones negros adornan el cielo.

Testigo e indigna de tu pluma
armaré el valor con lanza aguda,
tejiendo sentimientos con palabras esenciales,
aullando al vacío las que jamás se pronuncian.
Perdurarán nuestros silencios compartidos,
que hablarán de nosotros con el tiempo como vestigio.

Tú, mi Quijote, que siempre fuiste libre,
hoy te escapas galopando.
Y yo tu fiel escudero, te serviré y te seguiré sin dudarlo
cuando llegue el momento, allí estaré contigo.
¡Cabalga!
¡No mires atrás!
¡Cabalga libre Quijote mío…!

Mentem

A Juan E. Sanchis Girbés
Mestre literario

Batas brancas dizem que morreste,
que teu último alento expirou.
Emblemático e simbólico
transcendes a teu próprio ser,
e expandes tua força ao vento
que move gigantes e moinhos.

…E te ergues sobre teu cavalo,
altivo,nobre,sincero, digno.
Por lança,uma pluma aguçada.
De escudo,inata honestidade.
A honra, liberdade branca.
Arte, como luta e hino.

Teu prisma ante a vida, canhoto e caleidoscópico,
Transforma-te em ameaçador de olhares hipócritas.
Rei dos loucos,
louco em presença de fariseus,
lúcido-loco por sábio,por bondoso,por terno.
És amor infinito.

Acaricio o cabelo negro,a barba gris.
Fronte tíbia em lágrimas banhada.
Água salina de horizonte vital e sombrIo.
Permaneço em tua ribeira,
em tuas mãos que se tornam frias,amarelecem.
Minhas palavras trançadas com respostas silentes.

Escudeiro sou, sei que as batas brancas mentem,
como se equivocou dom Miguel.
Dom Quixote não morreu!
Eu quero ser louco,
privilegiadamente louco,
cíclope sábio de sensibilidade eterna.

Hoje dizem que morreste,
e encerram teu corpo em um sepulcro gélido, mudo, escuro.
Meus olhos te persiguem e minh’alma fica presa contigo
entre as quatro claustrofóbicas paredes de teu silêncio.
Festões negros adornam o céu.

Testemunha e indigna de tua pluma
armarei o valor con lança aguda,
tecendo sentimentos com palavras essenciais,
uivando ao vazio as que jamais se pronunciam.
Perdurarão nossos silêncios compartilhados,
que falarão de nós com o tempo como vestígio.

Tu, meu Quixote, que sempre foste livre,
hojr escapas galopando.
E eu, teu fiel escudeiro, te servirei e te seguirei sem duvidá-lo
quando chegue o momento, ali estarei contigo.
Cavalga!
Não olhes atrás!
Cavalga livre, Quixote meu…!

Noche

“La gran tumba de la noche
su negro velo levanta
para ocultar con el día
la inmensa cumbre estrellada”

García Lorca

Envuelta en seda
y rosas de espina rasgada,
majestuosa y quimérica,
amaneces engalanada.

Viajera errabunda
en la tregua del camino
brindas por la sangre
besando tu filo.

Despuntan,
cuchillos y navajas
tiritando como el frío
envuelto entre mortajas.

Noche

Dulce noche de los néctares.
Noche abandonada en destierro.
Oscura noche aniquilada.

Noche

Tu mirada se estrecha,
deambulando,
antojadiza,
enlutada.

Noite

“A grande tumba da noite
seu negro véu levanta
para ocultar com o dia
a imensa cúpula estrelada”

García Lorca

Envolta em seda
e rosas de espinha rasgada,
majestosa e quimérica,
amanheces engalanada.

Viageira errabunda
na trégua do caminho
brindas pelo sangue
beijando teu fio.

Despontam,
facas e navalhas
tiritando como o frio
envolto entre mortalhas.

Noite

Doce noite dos néctares.
Noite abandonada no desterro.
Escura noite aniquilada.

Noite

Teu olhar se estreita,
deambulando,
antojadiça,
enlutada.

Saudade

Saudade, dueña del sueño
Sinuosa yedra
Serpiente sibilina
Silenciosa carcelera

Añoranza, mensajera del tiempo
Anunciadora de ausencias
Amante de la sierpe
Ábaco de bellezas

Nostalgia, concilio de los afectos
Navío sin estrella
Náufrago desesperado
Nacimiento sin fecha

Melancolía, amiga del recuerdo
Memoria evocadora
Marinero sin destino
Mañana sin aurora

Soledad, desatada por el viento
Sinuosa yedra
Serpiente sibilina
Silenciosa carcelera

Saudade

Saudade, dona do sonho
Sinuosa hera
Serpente sibilina
Silenciosa carcereira

Amarga mensageira do tiempo
Anunciadora de ausências
Amante da serpe
Ábaco de belezas

Nostalgia, concilio dos afetos
Navio sem estrela
N
áufrago desesperado
Nascimento sem data

Melancolia, amiga da recordação
Memória evocadora
Marinheiro sem destino
Manhã sem aurora

Solidão, desatada pelo vento
Sinuosa hera
S
erpente sibilina
Silenciosa carcereira

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Tradução e ilustrações: C. de A.

Um paulistano nas Alagoas: Walter Bezerra

Ganhamos um novo correntista: Walter Bezerra nos escreve de  Maceió,  de Alagoas, onde vive. E conta quem é: “Não tenho muito a falar de mim. Nasci paulistano em 1959, mas sou alagoano até a alma. Sou publicitário por convicção e poeta, contista, cronista e compositor por insistência. Como sempre vivi no ostracismo voluntário, não tenho nenhuma obra publicada, a não ser uma mísera participação numa coletânea de poetas alagoanos”.

E prossegue: “Fui redator das principais agências de publicidade do Recife, como a Ítalo Bianchi, Gruponove e MMS. Em 1989, participei, no Rio,  da campanha de Brizola para presidente da República, através da Makplan, agência do publicitário pernambucano José Nivaldo Júnior. Assinei a coluna Dito por não Dito, no semanário A Semana, de Olinda. Fui responsável também pela coluna Brainstorm, no Jornal do Comércio, do Clube de Criação de Pernambuco, entidade da qual eu fui presidente. Como profissional,  fui medalhista ouro no Colunistas Norte/Nordeste e finalista do Profissional do Ano, da Globo.  Vez e outra, me dou articulista e publico alguns textos nos jornais de  Alagoas. No momento, estou concluindo um romance e produzindo um CD, que contará com a participação de 10 cantores daqui da terra”.

“É só isso, Cleto. Um grande abraço!”

O só-isso já é muito. Quem é “poeta, contista, cronista e compositor” – além de publicitário, atividade onde deve depositar sua criatividade, – já faz bastante coisa para melhorar este mundinho. Esperamos que os seus poemas e também suas crônicas sejam permanentemente entesourados em nosso Banco da Poesia.

Bem vindo, Walter!

Da morte

Walter Bezerra

O que é viver senão um estágio para a morte?
Quando defendemos uma ideologia,
…..e ela não floresce, não morremos aos poucos?
Quando amamos e não há reciprocidade,
…..não violentamos o fígado, pâncreas,
…..pulmões, tripas, mente, coração?
Os humanistas e os apaixonados são suicidas
involuntários.
Quem dera, antes de morrer, possa eu esclarecer
…..o que se fez dúvida ou má interpretação.
Quem dera, antes de morrer, possa eu me redimir
…..com aqueles que, por negligência, não os inclui
…..entre os meus prediletos.-
…..com aqueles que, por omissão, não me dediquei
…..com a merecida intensidade.
Quem dera, antes de morrer, possa desculpar-me
…..com aqueles que, por imprudência, não amei
…..com a devida ternura.Quem dera, antes de morrer, possa eu,
…..no meu ínfimo alcance, contribuir para que os que são covardemente
…..manipulados repugnem os seus déspotas.
Quem dera, antes de morrer, possa eu deixar algum
…..legado para os oprimidos e os que sofrem
…..de prisão de ventre neurônica.
Não tenho medo da morte,
…..mas desejo que ela permita que as rugas
…..me venham em primeiro plano.
Morrer precoce é uma tirania.
Sei que a morte é inevitável,
…..mas espero que ela não me surpreenda
…..fulminantemente.
Espero que ela me venha dócil,
…..encontre-me dormindo, anestesiado,
…..sem pesadelos, sem cumplicidade.
A pior das mortes é a súbita.
Quando eu morrer, não me visitem o túmulo,
…..porque nem a minha alma niilista
…..estará mais ali.
Quando eu morrer, não me acendam velas,
…..porque luz não haverá mais em mim.
Quando eu morrer, para que flores
…..se eu não poderei mais sentir-lhes
…..o perfume?
A lembrança que se tem de alguém que partiu
…..é a única explicação teórica da ressurreição.
O nascimento é, por si só, a anunciação da morte.
Imortal é aquele que nunca nascerá.
A morte nos mora na vida;
…..ela é o pagar das luzes,
…..a plenitude da solidão.
Morrer é dar adeus em silêncio;
…..é colocar um ponto final na poesia
…..que somos nós.
A gente não morre; evolui.
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Ilustração: C. de A.

Minas pede a palavra: fala o poeta Flávio Otávio Ferreira

Flávio Otávio Ferreira nasceu em outubro de 1980, em João Monlevade. Mas ele se considera um belavistano (de Bela Vista, também MG). É graduado em Letras pelo Centro Universitário de Araxá, cidade na qual reside atualmente. Tem  poemas publicados em várias antologias. Em 2005, lançou, pela Litteris Editora, o seu livro de estreia Cata-ventos, o destino de uma poesia, que participou da 12ª Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Em 2007, foi contemplado com a 2ª colocação no I Prêmio Solar de Literatura João Monlevade 43 anos, com o texto Poema Insano. Ainda em 2007, obteve a 3ª colocação no 7º Concurso Estadual de Contos promovido pelo Clesi – Clube dos Escritores de Ipatinga, com o conto  A Mutação.  Em 2009, publicou o livro Itinerário Fragmentado, pelo selo Quártica Premium da Litteris Editora, lançado na 14ª Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro. Seus textos podem ser lidos nos blogs Misantropia , Manufatura (todo dia 7 do mês) e Poema Dia (todo dia 19 do mês).

Nossas boas vindas ao novo correntista do Banco da Poesia.

Recado ao Poeta

Flávio Otávio Ferreira

A morte me assombra o sono,
Deveras, ainda vivo em sonho.
No peito entreaberto
Mal cabe o coração palpitante.
A alma, em frangalhos,
Se vê partida por mil adagas
E, em desespero,
choro em um quarto escuro.

Pobre poeta!
Por que te envenenas em versos?
Quais os objetos de tuas conjecturas?
Que olhos? Que boca? Que sorrisos?
Há na distância das noites estelares
O brilho que se apaga nas horas escuras?
Há na ausência que te move
O tato a tocar de leve em nuvens?

Pobre poeta!
Por que não mergulhas no Ganges,
No Sena, no Reno, no Tietê, no Piracicaba?
Se joga do alto da ponte
Submerge nas águas turvas
E some, consome esses versos
Leva embora estes sonhos que te sufocam.
Por que se perder em amores vãos
Se tens mais a viver para ti?
Exorciza em teu pobre peito
O que o tempo, inexpressivo,
Não pode apagar.
Arranca-lhe o coração
E joga às aves de rapina
Que te espreitam ao longe.

Pobre poeta!
Escolhestes o lado errado da estrada!
Escolhestes o pior dos desertos!
Enquanto buscares na poesia o teu consolo
Terás apenas o desfavor dos versos
Que se amontoam em escombros.
Ruínas que se erguem vertiginosamente
Em teu peito enfurecido.
Logrará, contigo, pobre destino
E, talvez, um dia, tuas próprias mãos
Consigam limpar o sangue
Que jorra em torrentes
Nestas pautas encardidas.

Loucura e silêncio

Não fosse esta loucura
serias mais que abstração nesta linguagem de ícones
que se movem como formigas gigantescas
a carregar consigo as lembranças.
Não fosse este silêncio
regressarias de tuas viagens, mesmo com ressaca de viver
ou tédio a corroer tuas esperanças que em vão
se movem como ratos a remexer latas na dispensa.
Não fosse esta loucura
estarias presente em meu cubículo a bater-me na cara,
coagindo-me a dizer mentiras que te agradam,
apenas para salvar-te da névoa que encobre teu rosto.
Não fosse este silêncio
viria possuir-me o teu espírito em noites sem lua
em tempos de mistério e sombra, simplesmente
pra fazer gracejos e brincar sobre meu corpo quente.
Não fosse esta loucura
não serias só palavras rabiscadas por mãos trêmulas
em muros carcomidos, onde a alvura da cal
não esconde os desfavores do tempo.
Não fosse este silêncio
não terias ido embora pra longe destes olhos
deixando a este louco apenas o consolo
de versos obscenos no espelho do banheiro.
Mas, terias me libertado.
Desatando os nós que nos envolvem;
quebrando este silêncio que devora
as entranhas sufocando em nós o ânimo.
Quebraria este espelho que revela
a nossos olhos as misérias
a que nos condenamos;
Romperia o cordão que injeta em nós venenos.
Abortaria, pois, este desvanecimento
que nos rouba lentamente um do outro,
tornando loucura a tudo que um dia
dissemos querer da vida.

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Ilustrações: Cleto de Assis

Veredas de Alfonsina

Tu dulzura

Alfonsina Stormi

Camino lentamente por la senda de acacias,
me perfuman las manos sus pétalos de nieve,
mis cabellos se inquietan bajo céfiro leve
y el alma es como espuma de las aristocracias.

Genio bueno: este día conmigo te congracias,
apenas un suspiro me torna eterna y breve…
¿Voy a volar acaso ya que el alma se mueve?
En mis pies cobran alas y danzan las tres Gracias.

Es que anoche tus manos, en mis manos de fuego,
dieron tantas dulzuras a mi sangre, que luego,
llenóseme la boca de mieles perfumadas.

Tan frescas que en la limpia madrugada de Estío
mucho temo volverme corriendo al caserío
prendidas en mis labios mariposas doradas.

Tua doçura

Lentamente caminho por sendas de flores,
me perfumam as mãos suas pétalas de neve,
meus cabelos se inquietam sob zéfiro leve
e a alma se enleva, sem dor, sem temores.

Gênio bom: este dia comigo congraças,
apenas um suspiro me faz eterna e breve…
Vou voar acaso já com a alma tão leve?
Em meus pés nascem asas e dançam as três Graças.

É que ontem tuas mãos, em minhas mãos de fogo,
deram tantas doçuras a meu sangue, que logo
senti em minha boca delícias perfumadas.

Tão frescas que na limpa madrugada de Estio
muito temo voltar correndo ao casario
presas em meus lábios borboletas douradas.

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Versão/ilustração: Cleto de Assis

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Aroldo Murá Haygert indica a Passagem

No ano de 2009, na passagem da Páscoa, o Banco da Poesia publicou informações sobre as Pêssankas, os coloridos ovos ucranianos elaborados no Paraná pela colônia que aqui se estabeleceu a partir de 1895 e seus descendentes. E Manoel de Andrade nos ofereceu um belo poema sobre a Paixão de Cristo. Neste ano, pensei em outro amigo querido, que conhece e adota muito mais do que eu os mistérios da fé. Por sinal, foi um dos criadores do Instituto Ciência e Fé, que reúne excelentes cabeças de Curitiba para “discutir temas atuais à luz da razão e da fé, assim como desenvolver e apoiar pesquisas nas áreas da fenomenologia religiosa”.  Pedi a ele um texto ecumênico sobre a Páscoa, uma vez que não só os cristãos estão comemorando esta festa, mas também a comunidade judaica rememorou, na semana que passou, as tradições da Pessach, data milenar que originou a festa católica que hoje se comemora.

Arolodo Murá G. Haygert

Aroldo Murá Gomes Haygert é jornalista, a quem a imprensa paranaense muito deve, não só pela sua sempre honesta e dinâmica atuação em vários órgãos de comunicação, desde 1950, mas também por sua produtiva vida pedagógia como professor de Técnica de Jornal no curso de Jornalismo da Universidade Católica do Paraná. Por suas mãos passaram mutos e muitos dos atuais comunicadores conterrâneos, que até agora o tratam carinhosa e respeitosamente como Professor.

Ele nasceu em São Francisco de Assis, no Rio Grande do Sul e veio para Curitiba com oito anos de idade. Bacharel em Jornalismo pela PUC/PR, tem cursos de especialização feitos no Brasil e no exterior. Foi correspondente da agência North & South News Service, dos Estados Unidos e atualmente é comentarista da Rádio Banda B, além de presidir o Instituto Ciência e Fé. Mas seu trabalho de observador do trabalho alheio levou-o a publicar os dois volumes de Vozes do Paraná, 1 e 2, respectivamente em 2008 e 2009. São perfis de figuras parananeses, reportagens biográficas que ele denomina de “retratos”. Na sua tarefa de retratar amigos e personagens importantes do Paraná ressalta o cuidado do texto primoroso pelo qual Aroldo tornou-se conhecido e respeitado.

Sou grato a Aroldo e,  com sua mensagem, reitero os votos de feliz Páscoa a todos os nossos leitores, colaboradores e amigos.

Passagem

Estou cada vez mais convencido de que vivemos numa páscoa permanente, se tomarmos a Passagem como significado da celebração, que é cristã e judaica. Estamos todos de Passagem, de saída de muitos egitos e babilônias, rompendo, com múltiplos talentos e esforços, as pedras que cobrem nossas sepulturas/limitações diárias. Até por isso considero oportuníssima a simbologia do ovo de Páscoa, significando a vida que renasce.

Claro que com o simbólico da fuga e da libertação da morte – imagens judaicas e cristãs – os operadores do mercado conseguiram fazer mil e uma estripulias, a ponto de entronizarem nas crianças a idéia de que o coelho e o cacau são o centro da celebração. Não são o centro, mas hoje
identificam rapidamente o memorial que a data contém. Aliás, a vitalidade do coelho e sua capacidade de multiplicar-se colocam a Páscoa  como festa da vida por excelência.

Essas são figuras de uma imagem forte,  reafirmando  que todos estamos de Passagem, gerando filhos, idéias, obras, projetos, sonhos (e frustrações, claro), amores e desamores.

Páscoa contém essas realidades, profundamente envolvidas no grande mistério do transcendental: nascemos e estamos de Passagem, às vezes, parecendo que vivemos em fuga. Mas estamos, isto é o que importa. E estando, estaremos vivos, nós mesmos, nossos filhos, nossos sonhos, nossos projetos, nossos amores…

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Ilustração: C. de A.