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Aroldo Murá Haygert indica a Passagem

No ano de 2009, na passagem da Páscoa, o Banco da Poesia publicou informações sobre as Pêssankas, os coloridos ovos ucranianos elaborados no Paraná pela colônia que aqui se estabeleceu a partir de 1895 e seus descendentes. E Manoel de Andrade nos ofereceu um belo poema sobre a Paixão de Cristo. Neste ano, pensei em outro amigo querido, que conhece e adota muito mais do que eu os mistérios da fé. Por sinal, foi um dos criadores do Instituto Ciência e Fé, que reúne excelentes cabeças de Curitiba para “discutir temas atuais à luz da razão e da fé, assim como desenvolver e apoiar pesquisas nas áreas da fenomenologia religiosa”.  Pedi a ele um texto ecumênico sobre a Páscoa, uma vez que não só os cristãos estão comemorando esta festa, mas também a comunidade judaica rememorou, na semana que passou, as tradições da Pessach, data milenar que originou a festa católica que hoje se comemora.

Arolodo Murá G. Haygert

Aroldo Murá Gomes Haygert é jornalista, a quem a imprensa paranaense muito deve, não só pela sua sempre honesta e dinâmica atuação em vários órgãos de comunicação, desde 1950, mas também por sua produtiva vida pedagógia como professor de Técnica de Jornal no curso de Jornalismo da Universidade Católica do Paraná. Por suas mãos passaram mutos e muitos dos atuais comunicadores conterrâneos, que até agora o tratam carinhosa e respeitosamente como Professor.

Ele nasceu em São Francisco de Assis, no Rio Grande do Sul e veio para Curitiba com oito anos de idade. Bacharel em Jornalismo pela PUC/PR, tem cursos de especialização feitos no Brasil e no exterior. Foi correspondente da agência North & South News Service, dos Estados Unidos e atualmente é comentarista da Rádio Banda B, além de presidir o Instituto Ciência e Fé. Mas seu trabalho de observador do trabalho alheio levou-o a publicar os dois volumes de Vozes do Paraná, 1 e 2, respectivamente em 2008 e 2009. São perfis de figuras parananeses, reportagens biográficas que ele denomina de “retratos”. Na sua tarefa de retratar amigos e personagens importantes do Paraná ressalta o cuidado do texto primoroso pelo qual Aroldo tornou-se conhecido e respeitado.

Sou grato a Aroldo e,  com sua mensagem, reitero os votos de feliz Páscoa a todos os nossos leitores, colaboradores e amigos.

Passagem

Estou cada vez mais convencido de que vivemos numa páscoa permanente, se tomarmos a Passagem como significado da celebração, que é cristã e judaica. Estamos todos de Passagem, de saída de muitos egitos e babilônias, rompendo, com múltiplos talentos e esforços, as pedras que cobrem nossas sepulturas/limitações diárias. Até por isso considero oportuníssima a simbologia do ovo de Páscoa, significando a vida que renasce.

Claro que com o simbólico da fuga e da libertação da morte – imagens judaicas e cristãs – os operadores do mercado conseguiram fazer mil e uma estripulias, a ponto de entronizarem nas crianças a idéia de que o coelho e o cacau são o centro da celebração. Não são o centro, mas hoje
identificam rapidamente o memorial que a data contém. Aliás, a vitalidade do coelho e sua capacidade de multiplicar-se colocam a Páscoa  como festa da vida por excelência.

Essas são figuras de uma imagem forte,  reafirmando  que todos estamos de Passagem, gerando filhos, idéias, obras, projetos, sonhos (e frustrações, claro), amores e desamores.

Páscoa contém essas realidades, profundamente envolvidas no grande mistério do transcendental: nascemos e estamos de Passagem, às vezes, parecendo que vivemos em fuga. Mas estamos, isto é o que importa. E estando, estaremos vivos, nós mesmos, nossos filhos, nossos sonhos, nossos projetos, nossos amores…

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Ilustração: C. de A.

A Paixão elegíaca de Camões

À Paixão de Cristo Nosso Senhor

Luís Vaz de Camões (1524-1580)

Se quando contemplamos as secretas
causas, por que o mundo se sustenta,
o revolver dos céus e dos planetas;

e se quando a memória se apresenta
este curso do sol, que é tão medido
que um ponto só não mingua nem se aumenta;

aquele efeito, tarde conhecido,
da lua, em ser mudável tão constante
que minguar e crescer é seu partido;

aquela natureza tão possante
dos céus, que tão conformes e contrários
caminham, sem parar um breve instante;

aqueles movimentos ordinários,
a que responde o tempo, que não mente,
cos efeitos da terra necessários;

se quando, enfim, revolve sutilmente
tantas cousas a leve fantasia,
sagaz, escrutadora e diligente;

vê bem, se da razão só não desvia,
o altíssimo Ser, puro e divino,
que tudo pode, manda, move e cria;

sem fim e sem começo, um ser contino;
um Padre grande, a quem tudo é possível,
por mais árduo que seja ao homem indino;

um saber infinito, incompreensível;
ua verdade que nas cousas anda,
que mora no visível e invisível.

Esta potência, enfim, que tudo manda,
esta causa das causas, revestida
foi desta nossa carne miseranda.

Do amor e da justiça compelida,
polos erros da gente, em mãos da gente
– como se Deus não fosse – perde a vida.

O cristão descuidado e negligente,
pondera isto que digo, repousado;
não passes por aqui tão levemente.

Não, que aquele Deus alto incriado,
Senhor das cousas todas, que fundou
o céu, a terra, o fogo e o mar irado,

não do confuso caos, como cuidou
a falsa teologia e povo escuro,
que nesta só verdade tanto errou;

não dos átomos falsos de Epicuro;
não do largo oceano, como Tales,
mas só do pensamento casto e puro.

Olha, animal humano, quanto vales,
que por ti este grande Deus padece
novo modo de morte, novos males.

Olha que o sol no Olimpo se escurece,
não por oposição doutro planeta,
mas só porque virtude lhe falece.

Não vês que a grande máquina inquieta
do mundo se desfaz toda em tristeza,
e não por natural causa secreta?

Não vês como se perde a natureza;
o ar se turba; o mar, batendo, geme,
desfazendo das pedras a dureza?

Não vês que os montes caem, a terra treme
e que, até na remota e grande Atenas
o sábio Dionísio sente e teme?

Ó sumo Deus, tu mesmo te condenas,
pelo mal em que eu só sou tão culpado,
a tamanhas afrontas, tantas penas!

Por mim, Senhor, no mundo reputado
por falso e por quebrantador da lei,
a fama a ti se põe de meu pecado.

Eu, Senhor, sou ladrão; tu, sumo Rei;
eu, só, furtei; tu, com ladrões padeces;
a pena a ti se dá do que eu pequei.

Eu, servo sem valor; tu, sumo preço,
em preço vil te pões, por me tirares
do cativeiro eterno, que mereço.

Eu, por perder-te; e tu, por me ganhares,
te dás aos homens baixos, que te vendem,
só para os homens presos resgatares.

A ti, que as almas soltas, a ti prendem;
a ti, sumo Juiz, ante juízes
te acusam, pelo error dos que te ofendem.

Chamam-te malfeitor, não contradizes;
sendo tu dos profetas a certeza,
dizem que quem te fere profetizes.

Riem-se de ti; tu choras a crueza
que sobre eles virá. A gente dura,
por quem tu vens ao mundo, te despreza.

O teu rosto, de cuja fermosura
se veste o céu e o sol resplandecente,
diante de quem muda está a Natura,

com cruas bofetadas da vil gente,
de precioso sangue está banhado
cuspido, arrepelado cruelmente.

Aquele corpo tenro e delicado,
sobre todos os santos sacrossanto,
de açoutes rigorosos flagelado;

depois coberto mal de um pobre manto,
que se pegava às carnes magoadas,
para dobrar-lhe as dores outro tanto.

Magoavam-no as chagas não curadas,
um tormento causando-lhe, excessivo,
ao despir pelas mãos cruéis e iradas.

As santíssimas barbas de Deus vivo,
de resplandor ornadas, lhe arrancavam,
para desempenhar Adão cativo.

Com cordas pelas ruas o levavam,
levando sobre os ombros o troféu
das vitórias que as almas alcançavam.


e tu que passas, homem cireneu,
ajuda um pouco este Homem verdadeiro,
que agora como humano enfraqueceu!

Olha que o corpo, aflito do marteiro
e dos longos jejuns debilitado,
não pode já co peso do madeiro.

Oh! Não enfraqueçais, Deus encarnado!
Essas quedas, que tanto vos magoam,
suportai, Cavaleiro sublimado!

Que aquelas altas vozes que lá soam,
dos padres são que estão no Limbo escuro,
que já de louro e palma vos coroam.

Todos vos bradam que subais ao muro
da cidade infernal, e que arvoreis
em cima essa bandeira mui seguro.

Oh Santos Padres, não vos apresseis,
que muito mais a Deus que a vós custaram
essas duras prisões em que jazeis!

Aquelas mãos, que o mundo edificaram,
aqueles pés, que pisam as estrelas,
com duríssimos pregos se encravaram.

Mas qual será a pessoa, que as querelas
da angustiada Virgem contemplasse,
que não se mova a dor e a mágoa delas,

e que dos olhos seus não estilasse
tanta cópia de lágrimas ardentes
que carreiras no rosto assinalasse?

Oh! Quem lhe vira os olhos refulgentes
desfazendo-se em lágrimas, regando
aquelas belas faces excelentes!

Quem a vira cos gritos ir tocando
as estrelas, a quem responde o Céu,
cos acentos dos Anjos retumbando!

Quem vira quando o claro rosto ergueu
a ver o Filho, que na Cruz pendia,
donde a nossa saúde descendeu!

Que mágoas tão chorosas que diria!
Que palavras tão míseras e tristes
para o Céu, para a gente espalharia!

Pois que seria, Virgem, quando vistes
com fel nojoso e com vinagre amaro
matar a sede ao Filho que paristes?

Não era este o licor suave e claro
que, para o confortar, então daríeis
a quem vos era, mais que a vida, caro.

Como, Virgem Senhora, não corríeis
a dar tetas puras ao Cordeiro
que padecer na Cruz com sede víeis?

Não só era esse, Senhora, o verdadeiro
poto, que vosso Filho desejava,
morrendo pelo mundo num madeiro;

mas era a salvação, que ali ganhava
para o mísero Adão, que ali bebia
na fonte, que do peito lhe manava.

Pois, ó pura e Santíssima Maria,
que enfim sentistes esta mágoa, quanto
a gravidade dela o requeria;

dessa Fonte sagrada e peito santo
me alcançai ua gota, com que lave
a culpa, que me agrava e pesa tanto.

Do licor salutífero e suave
me abrangei, com que mate a sede dura
deste mundo tão cego, torpe e grave.

Assi, Senhora, toda a criatura
que vive e viverá, que não conhece
a Lei do vosso Filho, santa e pura;

o falsíssimo herege, que carece
da graça, e com danado e falso esprito
perturba a Santa Igreja, que floresce;

o povo pertinaz, no antigo rito,
que só o desterro seu, que tanto dura,
lhe diz que é pena igual ao seu delito;

o torpe Ismaelita, que mistura
as leis, e com preceitos viciosos
na terra estende a seita falsa, impura;

os idólatras maus, supersticiosos,
vários de opiniões e de costume,
levados de conceitos fabulosos;

as mais remotas gentes, onde o lume
da nossa fé não chega, nem que tenham
religião algua se presume;

assi todos, enfim, Senhora, venham
confessar um só Deus crucificado,
e por nenhum respeito se detenham.

Mas de todos o vício já passado,
o Seu nome co vosso, neste dia,
seja por todo mundo celebrado;
e respondam os Céus: JESUS, MARIA.

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Ilustrações: imagens do filme A Paixão de Cristo, de Mel Gibson, 2004