Arquivo do mês: julho 2009

Indelével imagem do começo

Infância

por Manoel de Andrade

PaiA meu pai

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

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xxxxxLá vai a Dona Biloca levando uma corvina…
xxxxxLevei uma surra porque peguei um ovo no galinheiro dela
xxxxxe disse pra minha mãe que achei na rua…

Bilocaxxx

xxxxxLá vem a Odair e o Udinho…
xxxxxEu sei que eles querem brincar na piscina que eu fiz sooozinho…
xxxxx Ei Lelo, lá vem o Seu Badico lavar os cavalos na praia…
xxxxxEu sei, mas depois ele vai encher a carroça de tainhas,
xxxxxvai pôr folhas de bananeira em cima e vai vender lá em Medeiros.
xxxxx Paaaai!… deixa eu ir com o senhor lá em Medeiros???
xxxxxComo eu gosto de lavar o Sanho… ele é tão mansinho…
xxxxx Pai… o senhor já nadou até a ilha?
xxxxx Pai… depois o senhor me leva até o fundo?
xxxxx Pai… eles vão pôr de novo a rede hoje?
xxxxx Pai… depois vamos tomar garapa lá no Seu Bebé?

Infância… a indelével imagem da vida
o território mágico da alma
lembrança viva e peregrina que flutua pelo tempo.
Ah! Essa salgada saudade dos braços fortes de meu pai
a levar-me sobre os ombros entre as ondas.
O salto, o mergulho, o torvelinho das águas
minha festa, meu delírio.
Meu mar, meu céu, meu pão de liberdade
meus sete anos correndo atrás das gaivotas
perambulando entre as canoas que chegavam
meus pés vestidos com pantufas de espuma
a chutar seus densos flocos pelo ar.
As estrelas-do-mar semeadas ao longo dos meus passos
os siris entrando em seus buracos
os maçaricos andando ligeirinhos pela praia
as redes chegando lentamente com o cardume aprisionado
arraias, bagres, cações
espadas, águas-vivas, caranguejos
os pescadores repartindo os peixes agonizantes
os baiacus mortos na areia
os restos do arrastão espalhados sobre a praia
meu samburá repleto de peixinhos.

Ah, a canção intermitente das ondas
o poético itinerário das velas levadas pelo vento
o vôo vagabundo das aves litorâneas
o dorso escuro dos botos surgindo de quando em quando sobre as águas.
A maré alta da tarde apagando as marcas da manhã
a minha lagoinha lá perto da ponte
o meu mangue povoado de siris-goiá
meu pai tirando ostras
o rio desembocando lá na barra
a chegada das tainhas no inverno.

PesacaTainha

Ali morava minha infância
ali, e na imensurável morada do horizonte…
Meus olhos despertavam nas pálpebras entreabertas da aurora
e partiam com os mastros que sumiam na distância.
Vagavam no caminho melancólico do crepúsculo
no ocaso das tardes e na penumbra
na sedução da lua cheia sobre o mar.
Ah, Piçarras!… Piçarras!………………………
Não eras ainda esse moderno balneário
e a tua praia era somente minha o ano inteiro.

………………………………………………………………………………………………………………….
xxxxxAs velas da minha infância,
xxxxxarriadas pelo tempo, já não saem pra pescar.
xxxxxAs redes daqueles anos,
xxxxxabertas qual flor nas águas, chegam vazias do mar.
xxxxxOs cardumes de tainhas,
xxxxxligeiras como corisco, já não chegam pra invernar.
xxxxxAs águas vivas do rio,
xxxxxhoje carregam chorando, seu veneno para o mar.


Infancia
xxxxxMeu manguezal de menino,
xxxxxberçário de tantas vidas, foi inteiro loteado.
xxxxxMinhas canoas à vela,
xxxxxpoemas soltos ao vento, hoje navegam roncando.
xxxxxO lago era um ovário
xxxxxcujo canal dava ao rio, e tudo foi aterrado.
xxxxxProgresso… que desencanto!!!
xxxxxsou um estranho nesse ninho, sou uma infância chorando.

………………………………………………………………………………………………………………….

Ó mar, ó mar
procuro em vão meus rastros na areia
e por isso meus passos já não serão como um regresso…
Me restará, contudo, sempre a tua eterna imagem,
tua beleza amanhecida e retocada pelo sol e pela brisa,
tuas verdes planícies que espraiam o mundo.
Resta-me o teu sabor primordial
“o sal da vida”
linfa incorruptível
ventre profundo que dia a dia reinaugura a maternidade planetária.
Restam-me tuas noites pontilhadas pelos faróis do mundo
por Sírius, Antares, Aldebarã…
por todo o firmamento constelado
e pelo esplendor dos plenilúnios.

Volto, saudoso, a meus mares
porque sempre haverá um leste e um sul magnético no meu peito
apontando-me o encanto desses íntimos recantos.
Aqui, uma pequenina praia entre pedras e penhascos,
ali, a visão imensa da baía com seus barcos e canoas,
além, o grito alado das plumagens que voam lentamente sobre as ondas
ao longe, o pesqueiro solitário que demanda as águas fundas.
Relembro este molhe de pedra que avança sobre o mar
do farol da barra e desta paisagem soberana
e da minha adolescência, cruzando a nado esta corrente.
É o meu Itajaí-Açu desembocando calmamente no oceano
neste mar tão verde desta manhã de sol.
Meu olhar ancora ao longe, nos navios fundeados
e navega, mais além, pousado no mastro esbelto de um veleiro.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
FozdoItajaí
Mar, ó mar
restará sempre o teu murmúrio a embalar o mundo
a voz inaudível das profundidades orientando a rota dos cardumes
a tua gestação incessante de criaturas
a força imponderável das correntes
a pontualidade das marés
os teus ciclos arquétipos que sustentam a vida.

Mar, ó mar
basta-me hoje o que já me deste desde sempre…
a tua imensidão tatuada nos meus olhos,
verde enseada onde aportou meu lírico destino.
Esses teus encantos, as tuas extensões, essa totalidade…
todas as tuas medidas eu quisera ter na suprema síntese dos meus versos,
para dá-la ao mundo na expressão mais bela da poesia:
a face deslumbrante da esperança.

xxxxxxxxxxxxxxxxPiçarras – Itajaí, fevereiro de 2005.

Exéquias midiáticas

Hoje, 07 de julho de 2009, o mundo inteiro, enlaçado pela TV e pela Internet, viu um espetáculo meticulosamente produzido, dentro da tecnológica mise-en-scène de Hollywood, precisamente na terra do cinema, Los Angeles.

Compreendo: a indústria do entretenimento, ao transformar cantores e jogadores de futebol em semideuses, cativa milhões de mentes que também buscam, por meio de seus ídolos, alcançar extática plenitude, embora uma felcicidade engastada em fantasias. Mas não pude deixar de sentir como somos nutridos por sentimentos paradoxais.

Ao mesmo tempo em que perdemos dias a velar e a chorar um distante personagem sabidamente produzido pela fábrica de ilusões – e que já foi causticamente imolado por erros e desencontros, em passado recente, pela mesma mídia que agora o coloca em altar mais alto do que os dos santos – conseguimos não perceber o desafortunado que passa por nosso lado e esquecer rapidamente a criança que morre de fome ou frio, a mãe que mingua por não ter como socorrer seus filhos.

Hoje uma família (os Jackson’s Five, que já devem ser Jackson’s Ten, Twenty or more) fez o seu espetáculo lacrimejante e, muito possivelmente, douradamente tilintante, capaz de fazê-los gastar 25 mil dólares em uma urna mortuária banhada a ouro. Hoje Stevie Wonder, um dos amigos do menor dos Jackson que cantaram em sua homenagem, disse singelamente que Deus precisou de Michael antes de findar seu tempo de permanência na Terra. E todos choraram e aplaudiram. Mas também hoje a mesma CNN, que transmitiu segundo por segundo as cenas do fantástico funeral,  noticiou que os Taliban, lá no Paquistão, estão comprando crianças para treiná-las em ataques suicidas. Quantos de nós protestamos e choramos por isso? Que deus está chamando prematuramente as crianças paquistanesas? C. de A.

Desculpem-me os fãs de Michael Jackson, mas tive que recorrer à poesia para fazer meu contrachoro.

Memorial a Peter Pan

Foto: CNN

Foto: CNN

Aprendi a rezar pequenininho, ajoelhado ao pé da cama.
xxxxxx“Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador…”
Aprendi sem saber o que era zeloso
e nem piedade divina.

Depois conheci outras orações
xxxxxxas decoradas e ditas sem sentimentos
xxxxxximprovisadas e cheias de sensações
xxxxxxrezas medicinais de curandeiras
xxxxxxpreces de urgência socorrista
xxxxxxsúplicas de desespero de última hora
xxxxxxladainhas repetitivas e sem sentido
xxxxxxapressadas jaculatórias
xxxxxxladários corta-tempestades
xxxxxxlitanias por amores perdidos
xxxxxxpadre-nossos e ave-marias de carpideiras incontritas
xxxxxxreza braba e despachos de encruzilhada.

Desaprendi a rezar depois de pequenininho.

Aprendi a buscar dentro de mim
na vida e na viva deusa Gaia
energias mais próximas,
nem por isso distantes da energia cósmica,
nem por isso menos miraculosas, menos reconfortantes.

Mas não conhecia ainda a oração que hoje,
pasmo ser vivente do terceiro milênio,
testemunhei no mega-espetáculo, no mega-funeral,
na mega-encomenda fúnebre sacramentada por hinos profanos,
na produzida despedida do Peter Pan midiático
saído prematuramente da terra do agora
em busca de uma sonhada terra do nunca.

No adeus televisivo, vinte mil curiosos
inauguradores dos funerais com bilhetes e lugares marcados
representantes de milhões de órfãos e viúvas
do cantor bailarino de mil faces e de uma só e terrível solidão.

Ao ver, em cores e ao vivo,
diretamente da cidade dos anjos
as exéquias do agora outro arcanjo Miguel,
son of Jack, o predador,
pensei no esquecimento constante imposto por seus milhões de órfãos e viúvas
a milhares de mães e filhos anônimos
que ontem, hoje e amanhã
sofreram e penarão a dor e a solidão da morte,
sem ter ao menos uma pequena criança a rezar por eles
para pedir a um anjo menos holiudiano
que os reja, os guarde, os governe, os ilumine,
amém.

xxxxxxxxxxCleto de Assis

Dicas de Fernando Pessoa – 05

Caricatura de Gustavo Duarte  http://mangabastudios.blog.uol.com.br/

Caricatura de Gustavo Duarte http://mangabastudios.blog.uol.com.br/

Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são, contudo, sonhos de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.

A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.

Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá, contudo, que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.

Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões.Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.

O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta – estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade – um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.

Nada me satisfaz, nada me consola, tudo – quer haja sido, quer não – me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.

____________

Do Livro do Desassossego. Pelo semi-heterônimo Bernardo Soares. Organização de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

Depósito em ouro de Marilda Confortin

Marilda mandou um poetrix. Tratei de engastá-lo no Fundo Dourado do Banco da Poesia.

Ourivesaria

Brisa literária

José Marins manda o convite:

A Brisa é Você

C O N V I T E

Araucária Cultural e Biblioteca Pública do Paraná

convidam você e seus amigos para o lançamento

da coletânea de minicontos “A BRISA É VOCÊ”.

Local: Saguão da Biblioteca Pública do Paraná

Rua Cândido Lopes, 133 Centro – Curitiba

Data: 10 de julho de 2009 – sexta-feira

Horário: às 18 horas

Os dez autores agradecem o seu apoio.

Luiz Adolfo Pinheiro, uma viva lembrança

Luiz_Adolfo_PinheiroHá amigos que vêm e se vão. Há amigos que chegam e ficam para sempre. Luiz Adolfo Pinheiro foi um deles. Partiu prematuramente, na manhã da terça-feira de carnaval, 28 de fevereiro de 2006, vítima de um ataque cardíaco fulminante. Naquela época, ele encarnava um sonho há muito perseguido, como um Dirceu que tinha, realmente, encontrado a sua Marília e podia dizer, abertamente, como seu conterrâneo Tomás Antonio Gonzaga: “Graças, Marília bela, graças à minha Estrela!

Convivi com Luiz Adolfo durante muitos anos. Foi no Ministério da Educação, em Brasília, que nos conhecemos, onde ele fazia uma assessoria de comunicação social para o então ministro Ney Braga. Dali em diante estivemos em permanente contato social e profissional. Desenhei algumas capas de livros por ele escritos e participei de alguns de seus projetos editoriais, ele sempre cheio de criatividade. Em uma de suas dedicatórios em livro, ele definiu-me como “artifice e partícipe das aventuras brasilianas”.

Sofri com ele quando, num erro imperdoável, o incluiram no episódio dos anões do Congresso. Mais tarde o erro seria reconhecido, mas restaram cicatrizes. Ele havia feito uma reforma gráfica e editorial no Correio Braziliense, do qual era diretor de redação e o jornal, em vez de defendê-lo, optou pela medida mais simples, deixando-o sem emprego. Não sei se chegou a receber a indenização concedida pelos danos morais que sofreu, mas as marcas tristes não são apagadas por dinheiro nenhum.

O jornalista, escritor e poeta brasileiro Luís Adolfo Pinheiro nasceu em Prados, MG, em 1940. Fez seus primeiros estudos no Colégio Anchieta, de padres jesuítas, em Nova Friburgo (Rio de Janeiro). Começou no jornalismo como repórter do Correio de Minas, em 1962, de uma geração de jovens profissionais, como Moacir Japiassu, José Maria Mayrink, Carmo Chagas, entre outros. Trabalhou ainda no Estado de Minas, no Diário de Minas e no A Notícia. No Rio, foi de O Jornal e do departamento de pesquisa do Jornal do Brasil, quando ganhou o prêmio de reportagem do IV Centenário do Rio, com o pseudônimo de Flávio de Sá. Em 1968, mudou-se para São Paulo para compor o primeiro time da revista Veja, pela qual mudou-se para Brasília em 1970.

Na capital federal, comandou a sucursal de Veja e de O Globo. Foi superintendente da EBN (atual Radiobrás), redator, colunista e editorialista do Jornal de Brasília e do Correio Braziliense, onde criou os cadernos Mulher e Cidades, e do qual foi também diretor de Redação. Foi também editor da revista Rádio & TV, da Abert e fundador da revista Poder, voltada para a política em Brasília, e vice-presidente da Federação Nacional de Jornalistas, de 1996 até 1968.

Foi vencedor de vários prêmios jornalísticos, entre eles o do IV Centenário do Rio de Janeiro, outorgado pelo Jornal do Brasil (1965) e o Prêmio Esso Regional Centro-Oeste (1993), pelo Correio Braziliense.

Publicou ainda livros sobre a história política do País, como A Consciência Nacionalista;
A Política Demográfica Brasileira; A Queda de Jango; A República dos Golpes; 3 X 30 – Bastidores da Imprensa;
e JK, Jânio e Jango, os Três Jotas que Abalaram o Brasil. São dele também as ficções Tocata & Fuga e Joel, um Justiceiro e preparava o lançamento de JK, Procura-se um Outro, em que narra a trajetória política de Juscelino Kubitschek.

Seu último cargo foi de assessor-chefe da Assessoria de Comunicação Social do Superior Tribunal de Justiça (STJ), convidado pelo presidente Edson Vidigal, cargo que assumiu em 5 de abril de 2004.

A Luiz Adolfo, o poeta amigo, minha homenagem, com a publicação de poemas seus em nosso Banco da Poesia. C. de A.

Morte

xxxxxxxxxxxxxxxx“Meu canto de morte,
xxxxxxxxxxxxxxxxxGuerreiros, ouvi!”
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx(Gonçalves Dias)

anjo_da_morte
minha morte
como será?

morrerei de acidente
dor grito gente gente
entre sangue e gemido
menos só, mais coletivo
no seio da multidão
xxxxxxxxxx– morrerei sem solidão?

minha morte
como será?

morrerei gasto, em desuso
de velhice velha e rabicho
que nem sabe se distingue
uma folha de um livro
um balanço de uma rede
uma palha de um caniço
xxxxxxxxxx – morrerei confuso, disso?

minha morte
como será?

soleníssima rito quente
missa de corpo presente
flor coroa e rastro
de alguém que teve lastro
numa terra pó sem fim
xxxxxxxxxx – morrerei de algo assim?

minha morte
como será?

morrerei de emboscada
morte quente e castigada
ou de pura sonolência
(sono de sonho e dolência)
numa tarde de janeiro
na Mantiqueira ou Florença
xxxxxxxxxx morrerei com minha essência?

minha morte
como será?

morrerei sem madrugada
no meio da noite, nada
no meio do dia, sem cada
pedaço que formei
com choro e sangue (sangrei)
xxxxxxxxxx – morrerei, eu saberei?

minha morte
como será?

Invasão holandesa

xxxxxxxxxxxxxxxx“Ali andavam entre eles três ou quatro moças,
xxxxxxxxxxxxxxxxxbem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos
xxxxxxxxxxxxxxxxxe compridos pelas costas; e suas vergonhas,
xxxxxxxxxxxxxxxxxtão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras
xxxxxxxxxxxxxxxxxque, de as nós muito bem olharmos,
xxxxxxxxxxxxxxxxxnão se envergonhavam.”
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx(Carta a El Rei D. Manuel,
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxde Pero Vaz de Caminha, em 1500)

índia
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxde
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxper
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxnas
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxa
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxbertas
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxe
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxar
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxvir
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxgi
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxnal
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxa
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxin
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxdia
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxre
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxce
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxbe
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxmau
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxcio
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxnas
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxsau

Festa do Livramento

xxxxxxxxxxxxxxxx“Andar com fé eu vou
xxxxxxxxxxxxxxxxQue a fé não costuma faiá.”
xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx(Gilberto Gil)

Imagem_procissaolivramento
No alto do morro
a igreja branca e amarela
espera o romeiro
de julho.

A parede
descascada
sustenta a torre sem sino
sem relógio
sem palma.

Já não se ouve o lamento do escravo
e o grito de “ouro!”
no fundo do vale.

Nossa Senhora do Livramento
do Pensamento
do Passamento
recebe no altar
a prece do romeiro
descalço
que pede a cura
da sífilis da filha.

A poeira vermelha
encobre o caminhão
a laranja
a boca
a alma.

o vigário traça uma cruz no ar:
em nome do Pai e do Filho e do
outro lado estoura o foguete
e a criança
chora no batismo.

o caipira
de roupa nova
ajoelha só com um joelho
e pede a Deus perdão
para o pecado da comadre.

o coro entoa
Maria Mater Gratiae
e o vento frio de julho
na Mantiqueira mineira
espalha a sua brisa
sobre o justo e o pecador.

Ao cair da noite
ainda há uma vela se consumindo
na porta da igreja deserta.

o romeiro se despediu
com o sinal da cruz
a cicatriz e o pus
até o ano que vem
amém.

____________

Do livro Brasilíadas. Editora Dom Quixote: Brasília, 1985

Duas parcerias

Brasilíadas e Tocata&Fuga, duas das capas que desenhei para Luiz Adolfo Pinheiro

Brasilíadas e Tocata&Fuga, duas das capas que desenhei para Luiz Adolfo Pinheiro

Artur Alonso Novelhe: de olhos em Marraquexe

Marraquexe*

Jardim Menara, Marraquech - Foto de Marcin Sochacki, Polônia - http://wanted.eu.org/

Jardim Menara, Marraquech - Foto de Marcin Sochacki, Polônia -

Se quiseres ver
tens de ir a Marraquexe

Há um contador de fábulas
que levanta pólen
formando romeiras,
a cada pancada de seu pé direito

e serpenteia cada braço
num rito consciente,
enquanto escuro o ventre palpita
retumbar ecoando sonhos
de tribos nômades perdidas,
presságios antigos
ainda não satisfeitos

a sua historia atendem
entusiastas as crianças,
os homem supõem visitar além o adentro
e as mulheres, por um segundo, evadem
libertadas de um severo olhar
as túnica gastas no vento

Se em verdade
abres os olhos
pode ser que penetres
por fim em Marraquexe

onda a luz solar flutua areia âmbar
o tempo é teu inconsciente
e aquele supor, agora faz parte
de um processo, pesado descanso

Na praça do enforcado estatuas vagueiam
e à cerimônia antiga, cumprido ritual,
as casas fazem círculos de adobe trás a lua

Senão foste flauta de alento
perde-te-ás
profundo no seu cetro
e já não poderás divisar sinais nas ringleiras
de palmeiras em sombra fresca

Não te será oferecida bem-vinda
nem avançar poderás
por estas portas sempre abertas

Para entrar em Marraquexe
é preciso deitar fora
toda carga que nos pese

______________

Artur Alonso Novelhe, poeta, vive na Galícia, Espanha.
*O topônimo Marraquech (capital da região marroquina
Marrakech-Tensift-Al Hauouz) é utilizado, no Brasil, com ch final.
No poema, respeitamos a grafia do autor, que é também correta.

Agostinho da Silva, um farol da cultura portuguesa

Fui soldado no Brasil
marinheiro em Portugal
dos meses prefiro abril
aurora primaveril
de liberdade ideal
das festas vou por Natal
em que inocência infantil
triunfante vence o mal
e sempre em sonhos de anil
sempre em vagas de real
fui soldado no Brasil
marinheiro em Portugal.

Na década de 50, quando estudava em Florianópolis, conheci um brilhante jovem português que havia acompanhado seu pai em várias jornadas, desde a saída da família de Portugal, em 1944. Convivemos, Pedro Manuel Agostinho da Silva e eu, durante alguns anos, no movimento escoteiro e consolidamos uma bela amizade, embora nossos destinos tivessem se orientado a diferentes geografias. Pedro Agostinho queria estudar Arqueologia, mas o Brasil não oferecia esse curso. Acabou optando por Antropologia, com mestrado na Universidade de Brasília, depois de cursar História na Universidade Federal Fluminense. E foi parar na Bahia, onde se tornou titular da cadeira de Antropologia, agora aposentado.

agostinhodasilvaPor meio de Pedro Agostinho conheci seu pai, George Agostinho Baptista da Silva, então diretor do Departamento de Cultura de Santa Catarina. Ambos dividiam um apartamento em Florianópolis, perto da Praça Getúlio Vargas. Hoje a rua onde moravam não existe mais, ocupada por uma grande avenida. Mas a residência oficial da família era no interior da ilha, em Saco Grande, onde Judite, esposa de George, lá ficava com as crianças menores, durante a semana.

E vamos às revelações. Judite era filha do historiador português Jaime Cortesão, com quem George havia trabalhado, entre 1948 e 1954, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e na organização da exposição do 4º Centenário de São Paulo. E o prof. George – como todos o conheciam em sua temporada catarinense e que, para mim, era apenas o pai de Pedro, naquela época de adolescência – na realidade era um grande filósofo e poeta português, que andava pela terra descoberta por seu patrício Cabral desde que decidiu abandonar Portugal, em razão das dissensões com o governo de Oliveira Salazar, após curtas estadas no Uruguai e na Argentina.

Agostinho da Silva, redução nominal pela qual passou a ser conhecido no universo cultural, trabalhou muito por nosso país, após sua chegada, em 1947. Já em 1948 começou a trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, onde também estudou entomologia e, ao mesmo tempo, lecionou na Faculdade Fluminense de Filosofia. Com o historiador português Jaime Cortesão (seu ulterior sogro, no casamento com Judite Cortesão)  colaborou em pesquisa sobre Alexandre de Gusmão. De 1952 a 1954, foi professor na Universidade Federal da Paraíba e também em Pernambuco.

Em 1954, como registrei acima, trabalhou novamente com Jaime Cortesão na organização da Exposição do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. Na mesma década, mudou-se para Florianópolis, onde exerceu a função de diretor do Departamento de Cultura do Estado. Foi um dos fundadores da Universidade de Santa Catarina, criou o Centro de Estudos Afro-Orientais e ensinou Filosofia do Teatro na Universidade Federal da Bahia. Em 1961, tornou-se assessor para a política externa do presidente Jânio Quadros. Em suas andanças pela capital federal, participou na criação da Universidade de Brasília e do seu Centro de Estudos Portugueses, em 1962, e, em 1964, criou a Casa Paulo Dias Adorno, em Cachoeira, na Bahia (existente até hoje) e idealizou o Museu do Atlântico Sul, em Salvador.

Regressou a Portugal em 1969, após a doença de Salazar e a sua substituição por Marcello Caetano, já em época de abertura política e cultural. A decisão de retornar a Portugal também se deveu à sua discordância com o regime militar brasileiro instaurado à época. Na terra natal, continuou a escrever e a lecionar em diversas universidades portuguesas. Também dirigiu o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Técnica de Lisboa, e foi consultor do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, atual Instituto Camões.

Como literato, pontuou sua obra como filósofo, poeta e ensaísta. Seus exegetas registram que “seu pensamento combina elementos de panteísmo, milenarismo e ética da renúncia, afirmando a Liberdade como a mais importante qualidade do ser humano”. Agostinho da Silva é considerado um filósofo prático, dedicado à transformação da sociedade. Dedicou parte de seu trabalho à integração cultural entre Portugal e o Brasil. É considerado como um dos principais intelectuais portugueses do Século XX, Agostinho da Silva, nascido no Porto em 1906,  é também reconhecido como um batalhador da integração cultural entre Portugal e o Brasil. Seu falecimento ocorreu em Lisboa, que acolheu a última fase de sua vida, a 3 de abril de 1994. Em 2006, o centenário de seu nascimento foi comemorado em Portugal e no Brasil.

Conheci Agostinho da Silva de raspão. Jovenzinho ainda desatento às grandezas do mundo, eu o via apenas como pai de meu amigo, embora já admirasse sua grande inteligência. Mas não sabia que estava convivendo com uma enorme personalidade da cultura portuguesa, assim reconhecido em pesquisa recente da RTP, na qual os portugueses elegeram as maiores figuras nacionais de sempre. Agostinho da Silva ficou em 21º lugar na votação do programa “Os Grandes Portugueses”, como um dos mais notáveis filósofos da história de Portugal. Comparado até a santo, como se registra no vídeo abaixo.

E também um dos mais paradoxais pensadores portugueses. O escritor Fernando Dacosta afirmou que, “para mim, é a personalidade mais marcante da segunda metade do século XX português, tal como Fernando Pessoa é da primeira metade. Conciliava um raciocínio rigorosíssimo com um mistério profundo das coisas. Conseguiu a harmonia de realidades verdadeiramente inconciliáveis.”

Agostinho da Silva se autodefiniu com a seguinte frase: “Não sou um ortodoxo nem um heterodoxo. Sou um paradoxo.”

_______________________

Uns poemas de Agostinho

1

A quem faz pão ou poema
só se muda o jeito à mão
e não o tema.

2

Crente é pouco sê-te Deus
e para o nada que é tudo
inventa caminhos teus.

3

Pena que as revoluções
não as façam os tiranos
se fariam bem em ordem
durariam menos anos.

liberdade sairia
como verba de orçamento
e se houvesse qualquer saldo
se inventava suplemento

pagamento em dia certo
daria isto aquilo
o que sobrasse guardado
de todo o assalto a silo

mas o que falta aos tiranos
é só imaginação
e o jeito na circunstância
é mesmo a revolução.

4

O que escrevo de versinho
e na verdade o que sinto
mas porque procuro a forma
de qualquer maneira minto

o que eu quero era poder
dar naquilo que escrevesse
de tal modo o que me sou
que a todos aprendesse

sem os prender no entanto
deixando-os livres de ser
mas que sentissem então
o que eu fosse sem dizer

ser poema não poeta
é que vejo como um alvo
se o não for para que vivo
mas se for me vivo e salvo.

5

Vieram com Lutero os vendilhões do templo – e o Sol se cobriu;
Vieram com os Césares os fumosde mandar – e o Sol se cobriu;
Vieram com Trento os autos-de-fé – e o Sol se cobriu;
xxxxxe nunca mais Portugal foi luz.

Porque, porém, dobrou o joelho – eis aí a pergunta;
Porque é tão fácil, entregou o guerreiro a sua espada – eis aí a pergunta;
Porque foi tão fácil, renunciou o monge à sua alma– eis aí a pergunta;
xxxxxa pergunta que, sem resposta, fez da Nação um luto.

Inês o sabe e não perdoa – que por ela pecaram os portugueses;
Fernando o o sabe e não perdoa – que por ele pecaram os portugueses;
África o sabe e não perdoa – que por ela pecaram os portugueses;
xxxxxcurva o remorso as frontes, abate a pena as mentes.

Só pagará a dívida o que em mim for frade – num só claustro, o mundo;
Só pagará a dívida o que em mim for braço – de meu irmão ajuda;
Só pagará a dívida o que em mim for nada – perante um Deus que é Tudo;
xxxxxcomo se Portugal inteiro em mim coubesse.

xxxxxxxxxxxDo livro Uns Poemas de Agostinho – Editora Ulmeiro: Lisboa, 1990

Pablo Neruda crepuscular

Aquí estoy con mi pobre cuerpo frente al crepúsculo
que entinta de oros rojos el cielo de la tarde:
mientras entre la niebla los árboles oscuros
se libertan y salen a danzar por las calles.

Yo no sé por qué estoy aquí, ni cuándo vine,
ni por qué la luz roja del sol lo llena todo;
me basta con sentir frente a mi cuerpo triste
la inmensidad de un cielo de luz teñido de oro.

la inmensa rojedad de un sol que ya no existe,
el inmenso cadáver de una tierra ya muerta,
y frente a las astrales luminarias que tiñen el cielo,
la inmensidad de mi alma bajo la tarde inmensa.

PabloNerudaCrepuscular

Aqui estou com meu pobre corpo frente ao crepúsculo
que entinta de ouros vermelhos o céu da tarde:
enquanto entre a névoa as árvores escuras
se libertam e saem a dançar pelas ruas.

Eu não sei por que estou aqui, nem quando vim,
nem por que a luz vermelha do sol preenche tudo;
basta-me sentir frente a meu corpo triste
a imensidão de um céu de luz tingido de ouro,

a imensa vermelhidão de um sol que não mais existe,
o imenso cadáver de uma terra já morta,
e frente às astrais luminárias que tingem o céu,
a imensidão de minha alma sob a tarde imensa.

xxxxxxxxxxxxxVersão ao Português e ilustração: C. de A.