Fui soldado no Brasil
marinheiro em Portugal
dos meses prefiro abril
aurora primaveril
de liberdade ideal
das festas vou por Natal
em que inocência infantil
triunfante vence o mal
e sempre em sonhos de anil
sempre em vagas de real
fui soldado no Brasil
marinheiro em Portugal.
Na década de 50, quando estudava em Florianópolis, conheci um brilhante jovem português que havia acompanhado seu pai em várias jornadas, desde a saída da família de Portugal, em 1944. Convivemos, Pedro Manuel Agostinho da Silva e eu, durante alguns anos, no movimento escoteiro e consolidamos uma bela amizade, embora nossos destinos tivessem se orientado a diferentes geografias. Pedro Agostinho queria estudar Arqueologia, mas o Brasil não oferecia esse curso. Acabou optando por Antropologia, com mestrado na Universidade de Brasília, depois de cursar História na Universidade Federal Fluminense. E foi parar na Bahia, onde se tornou titular da cadeira de Antropologia, agora aposentado.
Por meio de Pedro Agostinho conheci seu pai, George Agostinho Baptista da Silva, então diretor do Departamento de Cultura de Santa Catarina. Ambos dividiam um apartamento em Florianópolis, perto da Praça Getúlio Vargas. Hoje a rua onde moravam não existe mais, ocupada por uma grande avenida. Mas a residência oficial da família era no interior da ilha, em Saco Grande, onde Judite, esposa de George, lá ficava com as crianças menores, durante a semana.
E vamos às revelações. Judite era filha do historiador português Jaime Cortesão, com quem George havia trabalhado, entre 1948 e 1954, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e na organização da exposição do 4º Centenário de São Paulo. E o prof. George – como todos o conheciam em sua temporada catarinense e que, para mim, era apenas o pai de Pedro, naquela época de adolescência – na realidade era um grande filósofo e poeta português, que andava pela terra descoberta por seu patrício Cabral desde que decidiu abandonar Portugal, em razão das dissensões com o governo de Oliveira Salazar, após curtas estadas no Uruguai e na Argentina.
Agostinho da Silva, redução nominal pela qual passou a ser conhecido no universo cultural, trabalhou muito por nosso país, após sua chegada, em 1947. Já em 1948 começou a trabalhar no Instituto Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, onde também estudou entomologia e, ao mesmo tempo, lecionou na Faculdade Fluminense de Filosofia. Com o historiador português Jaime Cortesão (seu ulterior sogro, no casamento com Judite Cortesão) colaborou em pesquisa sobre Alexandre de Gusmão. De 1952 a 1954, foi professor na Universidade Federal da Paraíba e também em Pernambuco.
Em 1954, como registrei acima, trabalhou novamente com Jaime Cortesão na organização da Exposição do Quarto Centenário da Cidade de São Paulo. Na mesma década, mudou-se para Florianópolis, onde exerceu a função de diretor do Departamento de Cultura do Estado. Foi um dos fundadores da Universidade de Santa Catarina, criou o Centro de Estudos Afro-Orientais e ensinou Filosofia do Teatro na Universidade Federal da Bahia. Em 1961, tornou-se assessor para a política externa do presidente Jânio Quadros. Em suas andanças pela capital federal, participou na criação da Universidade de Brasília e do seu Centro de Estudos Portugueses, em 1962, e, em 1964, criou a Casa Paulo Dias Adorno, em Cachoeira, na Bahia (existente até hoje) e idealizou o Museu do Atlântico Sul, em Salvador.
Regressou a Portugal em 1969, após a doença de Salazar e a sua substituição por Marcello Caetano, já em época de abertura política e cultural. A decisão de retornar a Portugal também se deveu à sua discordância com o regime militar brasileiro instaurado à época. Na terra natal, continuou a escrever e a lecionar em diversas universidades portuguesas. Também dirigiu o Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade Técnica de Lisboa, e foi consultor do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, atual Instituto Camões.
Como literato, pontuou sua obra como filósofo, poeta e ensaísta. Seus exegetas registram que “seu pensamento combina elementos de panteísmo, milenarismo e ética da renúncia, afirmando a Liberdade como a mais importante qualidade do ser humano”. Agostinho da Silva é considerado um filósofo prático, dedicado à transformação da sociedade. Dedicou parte de seu trabalho à integração cultural entre Portugal e o Brasil. É considerado como um dos principais intelectuais portugueses do Século XX, Agostinho da Silva, nascido no Porto em 1906, é também reconhecido como um batalhador da integração cultural entre Portugal e o Brasil. Seu falecimento ocorreu em Lisboa, que acolheu a última fase de sua vida, a 3 de abril de 1994. Em 2006, o centenário de seu nascimento foi comemorado em Portugal e no Brasil.
Conheci Agostinho da Silva de raspão. Jovenzinho ainda desatento às grandezas do mundo, eu o via apenas como pai de meu amigo, embora já admirasse sua grande inteligência. Mas não sabia que estava convivendo com uma enorme personalidade da cultura portuguesa, assim reconhecido em pesquisa recente da RTP, na qual os portugueses elegeram as maiores figuras nacionais de sempre. Agostinho da Silva ficou em 21º lugar na votação do programa “Os Grandes Portugueses”, como um dos mais notáveis filósofos da história de Portugal. Comparado até a santo, como se registra no vídeo abaixo.
E também um dos mais paradoxais pensadores portugueses. O escritor Fernando Dacosta afirmou que, “para mim, é a personalidade mais marcante da segunda metade do século XX português, tal como Fernando Pessoa é da primeira metade. Conciliava um raciocínio rigorosíssimo com um mistério profundo das coisas. Conseguiu a harmonia de realidades verdadeiramente inconciliáveis.”
Agostinho da Silva se autodefiniu com a seguinte frase: “Não sou um ortodoxo nem um heterodoxo. Sou um paradoxo.”
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Uns poemas de Agostinho
1
A quem faz pão ou poema
só se muda o jeito à mão
e não o tema.
2
Crente é pouco sê-te Deus
e para o nada que é tudo
inventa caminhos teus.
3
Pena que as revoluções
não as façam os tiranos
se fariam bem em ordem
durariam menos anos.
liberdade sairia
como verba de orçamento
e se houvesse qualquer saldo
se inventava suplemento
pagamento em dia certo
daria isto aquilo
o que sobrasse guardado
de todo o assalto a silo
mas o que falta aos tiranos
é só imaginação
e o jeito na circunstância
é mesmo a revolução.
4
O que escrevo de versinho
e na verdade o que sinto
mas porque procuro a forma
de qualquer maneira minto
o que eu quero era poder
dar naquilo que escrevesse
de tal modo o que me sou
que a todos aprendesse
sem os prender no entanto
deixando-os livres de ser
mas que sentissem então
o que eu fosse sem dizer
ser poema não poeta
é que vejo como um alvo
se o não for para que vivo
mas se for me vivo e salvo.
5
Vieram com Lutero os vendilhões do templo – e o Sol se cobriu;
Vieram com os Césares os fumosde mandar – e o Sol se cobriu;
Vieram com Trento os autos-de-fé – e o Sol se cobriu;
xxxxxe nunca mais Portugal foi luz.
Porque, porém, dobrou o joelho – eis aí a pergunta;
Porque é tão fácil, entregou o guerreiro a sua espada – eis aí a pergunta;
Porque foi tão fácil, renunciou o monge à sua alma– eis aí a pergunta;
xxxxxa pergunta que, sem resposta, fez da Nação um luto.
Inês o sabe e não perdoa – que por ela pecaram os portugueses;
Fernando o o sabe e não perdoa – que por ele pecaram os portugueses;
África o sabe e não perdoa – que por ela pecaram os portugueses;
xxxxxcurva o remorso as frontes, abate a pena as mentes.
Só pagará a dívida o que em mim for frade – num só claustro, o mundo;
Só pagará a dívida o que em mim for braço – de meu irmão ajuda;
Só pagará a dívida o que em mim for nada – perante um Deus que é Tudo;
xxxxxcomo se Portugal inteiro em mim coubesse.