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Exéquias midiáticas

Hoje, 07 de julho de 2009, o mundo inteiro, enlaçado pela TV e pela Internet, viu um espetáculo meticulosamente produzido, dentro da tecnológica mise-en-scène de Hollywood, precisamente na terra do cinema, Los Angeles.

Compreendo: a indústria do entretenimento, ao transformar cantores e jogadores de futebol em semideuses, cativa milhões de mentes que também buscam, por meio de seus ídolos, alcançar extática plenitude, embora uma felcicidade engastada em fantasias. Mas não pude deixar de sentir como somos nutridos por sentimentos paradoxais.

Ao mesmo tempo em que perdemos dias a velar e a chorar um distante personagem sabidamente produzido pela fábrica de ilusões – e que já foi causticamente imolado por erros e desencontros, em passado recente, pela mesma mídia que agora o coloca em altar mais alto do que os dos santos – conseguimos não perceber o desafortunado que passa por nosso lado e esquecer rapidamente a criança que morre de fome ou frio, a mãe que mingua por não ter como socorrer seus filhos.

Hoje uma família (os Jackson’s Five, que já devem ser Jackson’s Ten, Twenty or more) fez o seu espetáculo lacrimejante e, muito possivelmente, douradamente tilintante, capaz de fazê-los gastar 25 mil dólares em uma urna mortuária banhada a ouro. Hoje Stevie Wonder, um dos amigos do menor dos Jackson que cantaram em sua homenagem, disse singelamente que Deus precisou de Michael antes de findar seu tempo de permanência na Terra. E todos choraram e aplaudiram. Mas também hoje a mesma CNN, que transmitiu segundo por segundo as cenas do fantástico funeral,  noticiou que os Taliban, lá no Paquistão, estão comprando crianças para treiná-las em ataques suicidas. Quantos de nós protestamos e choramos por isso? Que deus está chamando prematuramente as crianças paquistanesas? C. de A.

Desculpem-me os fãs de Michael Jackson, mas tive que recorrer à poesia para fazer meu contrachoro.

Memorial a Peter Pan

Foto: CNN

Foto: CNN

Aprendi a rezar pequenininho, ajoelhado ao pé da cama.
xxxxxx“Santo anjo do senhor, meu zeloso guardador…”
Aprendi sem saber o que era zeloso
e nem piedade divina.

Depois conheci outras orações
xxxxxxas decoradas e ditas sem sentimentos
xxxxxximprovisadas e cheias de sensações
xxxxxxrezas medicinais de curandeiras
xxxxxxpreces de urgência socorrista
xxxxxxsúplicas de desespero de última hora
xxxxxxladainhas repetitivas e sem sentido
xxxxxxapressadas jaculatórias
xxxxxxladários corta-tempestades
xxxxxxlitanias por amores perdidos
xxxxxxpadre-nossos e ave-marias de carpideiras incontritas
xxxxxxreza braba e despachos de encruzilhada.

Desaprendi a rezar depois de pequenininho.

Aprendi a buscar dentro de mim
na vida e na viva deusa Gaia
energias mais próximas,
nem por isso distantes da energia cósmica,
nem por isso menos miraculosas, menos reconfortantes.

Mas não conhecia ainda a oração que hoje,
pasmo ser vivente do terceiro milênio,
testemunhei no mega-espetáculo, no mega-funeral,
na mega-encomenda fúnebre sacramentada por hinos profanos,
na produzida despedida do Peter Pan midiático
saído prematuramente da terra do agora
em busca de uma sonhada terra do nunca.

No adeus televisivo, vinte mil curiosos
inauguradores dos funerais com bilhetes e lugares marcados
representantes de milhões de órfãos e viúvas
do cantor bailarino de mil faces e de uma só e terrível solidão.

Ao ver, em cores e ao vivo,
diretamente da cidade dos anjos
as exéquias do agora outro arcanjo Miguel,
son of Jack, o predador,
pensei no esquecimento constante imposto por seus milhões de órfãos e viúvas
a milhares de mães e filhos anônimos
que ontem, hoje e amanhã
sofreram e penarão a dor e a solidão da morte,
sem ter ao menos uma pequena criança a rezar por eles
para pedir a um anjo menos holiudiano
que os reja, os guarde, os governe, os ilumine,
amém.

xxxxxxxxxxCleto de Assis