Arquivo do mês: junho 2009

Prêmio Camões para Cabo Verde

AVtomando_cafe_no_extinto_Café_Cachito_Praia_julho1997O poeta Armenio Vieira, de Cabo Verde, ganhou o Prêmio Camões, o mais importante prêmio literário da língua portuguesa, informou na quarta-feira, dia 3/6,  a imprensa portuguesa. É a primeira vez que este prêmio é atribuído a um cidadão de Cabo Verde, “país cuja tradição literária e cultural merece um reconhecimento”, segundo a presidente do júri Helena Buescu.

Nascido em 2 de janeiro de 1941, Vieira é jornalista e colabora com diversas publicações. Seu primeiro livro, intitulado Poemas foi publicado em 1981. O Prêmio Camões, dotado de 100 mil euros, foi criado em 1988 por Portugal e Brasil com o objetivo de recompensar os autores de língua portuguesa que contribuem para enriquecer o patrimônio cultural e literário dos países lusófonos. Autores como os portugueses Antonio Lobo Antunes (em 2007) e José Saramago (em 1995), o brasileiro Jorge Amado (em 1994) e o angolano Pepetela (em 1997) foram alguns dos vencedores em edições anteriores. (Agência France Presse)

O Banco da Poesia também presta homenagem ao recente laureado, com três poemas de sua lavra. Ao final, a homenagem a Cabo Verde, que também apareceu por aqui no dia 31 de maio, com Corsino Fortes. No vídeo, canta uma das maiores intérpretes cabo-verdianas, Cesária Évora, em crioulo, que é uma mistura do português arcaico com a lingua nativa. E quem a acompanha é a nossa Marisa Monte. Segundo a Wikipédia, Cesária Évora (Mindelo, 27 de agosto de 1941), também conhecida como “a diva dos pés descalços”, é a cantora cabo-verdiana de maior reconhecimento internacional de toda história da música popular daquele país. O gênero musical com o qual ela é melhor relacionada é a “morna”, por isso também recebe o apelido de “Rainha da morna”, mesmo tendo sido bastante sucedida com diversos outros gêneros musicais. Morna é um ritmo e uma dança de Cabo-Verde, que lembra o nosso samba e, às vezes, o chorinho.

Isto é o que fazem de nós

Galinhas

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxIsto!
E perguntam-nos:
xxxxxxxxxxxxxxx sois homens?
Respondemos:
xxxxxxxxxxxxxxx animais de capoeira.
Dizem-nos:
xxxxxxxxxxxxxxx bom dia.
Pensamos:
xxxxxxxxxxxxxxxlá fora…

Isto é que fazem de nós
quando nos inquirem:
xxxxxxxxxxxxxxx estais vivos?
E em nós
as galinhas respondem:
xxxxxxxxxxxxxxxdormimos.

Poema

Sand__Sea

Mar! Mar!
Mar! Mar!

Quem sentiu mar?

Não o mar azul
de caravelas ao largo
e marinheiros valentes

Não o mar de todos os ruídos
de ondas
que estalam na praia

Não o mar salgado
dos pássaros marinhos
de conchas
areias
e algas do mar

Mar!

Raiva-angústia
de revolta contida

Mar!

Siléncio-espuma
de lábios sangrados
e dentes partidos

Mar!
do não-repartido
e do sonho afrontado

Mar!

Quem sentiu mar?

xxxxxxxxxxxxxxx(1962)

Ser Tigre

tigerO tigre ignora a liberdade do salto
é como se uma mola o compelisse a pular.

Entre o cio e a cópula
o tigre não ama.

Ele busca a fêmea
como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
é no presente que o tigre existe.

Nenhuma voz lhe fala da morte.
O tigre, já velho, dorme e passa.

Ele é esquivo,
não há mãos que o tomem.

Não soa,
porque não respira.

É menos que embrião
abaixo do ovo,
infra-sémen.

Não tem forma,
é quase nada, parece morto.

Porém existe,
por isso espera.

Epopéia, canção de amor,
epigrama, ode moderna, epitáfio,

Ele será
quando for tempo disso.

xxxxxxxxxxxxxxx(de Vozes poéticas da lusofonia, Sintra, 1999)

Cesária Évora e Marisa Monte

Mar Azul

Composição: B. Leza

xxxxxO… Mar, detá quitinho bô dixam bai
xxxxxBô dixam bai spiá nha terra
xxxxxBô dixam bai salvá nha Mâe… Oh Mar, oh mar
xxxxxMar azul, subi mansinho
xxxxxLua cheia lumiam caminho
xxxxxPam ba nha terra di meu
xxxxxSão Vicente pequinino, pam bà braçá nha cretcheu…
xxxxxOh… Mar, anô passá tempo corrê
xxxxxSol raiá, lua sai
xxxxxA mi ausente na terra longe… Oh  Mar, oh Mar..

Murilo Mendes, dois poemas

murilomendes_guignardMédico, telegrafista, auxiliar de guarda-livros, notário e Inspetor do Ensino Secundário do Distrito Federal. Foi escrivão da quarta Vara de Família do Distrito Federal, em 1946. De 1953 a 1955 percorreu diversos países da Europa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira.Em 1957 se estabeleceu em Roma, onde lecionou Literatura Brasileira. Manteve-se fiel às imagens mineiras, mesclando-as às da Sicília e Espanha, carregadas de história. Assim diz a sua biografia. Mas Murilo Mendes, nascido em Juiz de Fora, em 13 de maio de 1901, e falecido em Lisboa, em 13 de agosto de 1975, mais que tudo isso, foi um poeta. E dos bons.

Cartão postal

PostCard
Domingo no jardim público pensativo.
Consciências corando ao sol nos bancos,
bebês arquivados em carrinhos alemães
esperam pacientemente o dia em que poderão ler o Guarani.
Passam braços e seios com um jeitão
que se Lenine visse não fazia o Soviete.
Marinheiros americanos bêbedos
fazem pipi na estátua de Barroso,
portugueses de bigode e corrente de relógio
abocanham mulatas.

O sol afunda-se no ocaso
como a cabeça daquela menina sardenta
na almofada de ramagens bordadas por Dona Cocota Pereira.

xxxxxxxxxxxxxxde Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

Canto a García Lorca

LorcaBlood
Não basta o sopro do vento
Nas oliveiras desertas,
O lamento de água oculta
Nos pátios da Andaluzia.

Trago-te o canto poroso,
O lamento consciente
Da palavra à outra palavra
Que fundaste com rigor.

O lamento substantivo
Sem ponto de exclamação:
Diverso do rito antigo,
Une a aridez ao fervor,

Recordando que soubeste
Defrontar a morte seca
Vinda no gume certeiro
Da espada silenciosa
Fazendo irromper o jacto

De vermelho: cor do mito
Criado com a força humana
Em que sonho e realidade
Ajustam seu contraponto.

Consolo-me da tua morte.
Que ela nos elucidou
Tua linguagem corporal
Onde el duende é alimentado
Pelo sal da inteligência,
Onde Espanha é calculada
Em número, peso e medida.

xxxxxxxxxxxxxxde Antologia poética. Sel. João Cabral de Melo Neto. Introd. José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Fontana; Brasília: INL, 1976
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Ilustrações
Alberto da Veiga Guignard – Retrato de Murilo Mendes
Óleo sobre tela – 61cm x52cm
Cartão postal e García Lorca – montagem gráfica de C. de A.

Artur Alonso Novelhe, o mexicano-galego

ArturANartArtur Alonso Novelhe, poeta e escritor, nasceu na Cidade do México em 1964. Ele mesmo informa: “Filho de galegos, galego pois, e mexicano porque os primeiros aromas, os primeiros passos sobre a relva, o sonho persistente de lua como parte da vida, o corpo deitado da mulher desnuda, essa figura de vulcão que dorme e escuta o latir da cidade, do vale na profundeza no silêncio… ficam para sempre inseridos na alma». Artur acrescenta que também fazem parte da sua identidade “o exílio e a forçada migração… dos seres que vivem divididos em dois…”. Membro da AGLP (Academia Galega da Língua Portuguesa) e do Clube dos Poetas Vivos, uma associação poética que mistura musica, pintura com poesia e textos literários. Participa nas redes sociais da cultura galega, “para levar a poesia a rua e campo, a natureza… de onde surgiu”.

Tem dois livros publicados : Entre os teus Olhos (Difusora, 2003) e Umha Meixela Depois a Outra* (AGAL, 2005), além de poemas soltos na revista Agália, colaborando também com a revista Outras Vozes e o periódico Novas da Galiza. Primeiro prêmio no XVIII Certame Poético Feliciano Rolán (Guarda – Baixo Minho). Tem participado em livros coletivos, várias colaborações em revistas e jornais, assim como na Web e jornais digitais. Nossas boas vindas ao mais recente amigo do Banco da Poesia.(Informações do próprio poeta e do site Clube dos Poetas Vivos http://poetas.agal-gz.org )

Houve um tempo

LostInnocenseFoto:Philippe Tarbouriech - Galeria Flickr

Houve um tempo em que o mar de fogo
não ardia meu peito preso da história vital
que cada homem percorre no fio do seu cutelo

e eu tinha companheiros no dia para dançar
almoçando até o pôr de sol fazer inveja
de sonhar toda a noite, serem nossa, num branco para o luar

assim como quem abre entre as asas de duas pombas
uma bandeira  branca encaixada na linha do ar,
para ansiar dele mesmo ser vento
eu crescia na ideia de tudo dar porque a vida era infinita

porque houve um tempo em que a humildade
e a casa e a pobreza não tinham importância
e tu e companheiro igual significado
como amigo e alento

mas também houve um tempo
em que a luz do nosso interior era cinzas na crueldade a vir
dos homens que se aferram, com medo,
a impor desejos, no sangue de quem caiu

porque também houve um tempo
para irrigar brêtema** densa nos olhos dos filhos
e morte nas veias
e mães que perseguem eternamente um porquê
nas janelas retidas da sua memória, que nunca se abrem

e esse era o tempo para eu perder a inocência.
E esse era o tempo para enfrentar-me com Deuses falsos,
sentir e comprovar que eram gigantes de Pedra
e junto a toda sua mentira minha alma velha falecer.

Porque houve esse tempo doloroso
preciso para renascer na Aurora da Vida
bebendo de seus lábios o néctar da verdade
para eu dos sonhos acordar.

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NOTAS

(*) Unha meixela depois a outra:  Uma bochecha depois a outra (do latim maxillam, passando pelo castelhano mejilla)
(**) Brêtema s. f. Termo usado na Galícia: (1) Névoa úmida. Variações: Brêtima, brêtoma. (2) Chuva forte. (3) Chuva forte com vento. (4) Nuvens que passam sem produzir chuva.