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O Poder do X

Raul Pough, novo correntista

raulpough2Segundo texto enviado pelo próprio, “Raul Pough é um poeta paranaense, de umbigo pontagrossense e alma gaudéria. Apaixonado pela literatura minimalista, sua praia são os poetrix, os haicais, os tercetos, os dísticos, os epigramas e as combinações de tudo isso. Poemínimo, textículo, poema-minuto, poema-miojo, não importa o nome que se dê a estes escritos onde o autor usa e abusa dos vícios e figuras de linguagem, especialmente da ironia, das metáforas, dos trocadilhos, beirando – quase via de regra – a marginalidade. Seus textos são breves, precisos e certeiros – a marca da concisão. Como diria Cláudio Feldman, para ler na escada rolante. Raul Pough já tem um livro lançado (2008), o Síndrome de Hipotenusa – Poemínimos e também publica seus textos na Internet e antologias. É superfã de Paulo Leminski“.

Bem vindo seja, Raul, ao Banco da Poesia. E continue enviando seus depósitos. Hoje publicamos o primeiro, que conheci n último sábado (15/maio), na reunião do Bar do Mato. Marilda Confortin viu nele um inventário. Eu imaginei um testamento. Mas, no final, você explica o destino de tantas memórias recolhidas no cenário vital, ofertando-as a um destino esperançoso. Eis aí seu Dote.

Dote

Dote
minhas fotos de criança, uns trocados na poupança
meus planos, meus cinquenta anos, meus enganos
livros importantes, cd’s interessantes, sonhos distantes

meus trancos e barrancos, quatrocentos e poucos francos
uma caneca amarela, três alfinetes de lapela
meus poemas, meus dilemas, aquela pesquisa de cinemas

uma fé qualquer, uma medalhinha du sacre couer
a aposentadoria precoce, umas pastilhas pra tosse
um velho videocassete, uns arquivos em disquete

uma garrafa de vinho branco, umas dívidas no banco
um bilhete da megasena, duas mamárias e uma safena
primeiros socorros num estojo, um pacote de miojo

minhas orações, minhas ereções, minhas opiniões
uma lupa, um lugar na minha garupa
um suvenir parisiense, uma camisa do fluminense

uma fivela de caubói, minha vocação pra super-herói
umas cicatrizes, alguns deslizes, decisões infelizes
filtro solar, um ferro-de-passar, baterias de celular

minhas fotos de paris, dois ternos risca-de-giz
defeitos reais, fantasias sexuais, alguns postais
minha coleção de calendários, meus dicionários

um computador, um ebulidor, um despertador
um pouco de incenso, outro tanto de bom senso
um aparelho de TV, um exame negativo de HIV

um certo espelho, um grampeador vermelho
meus medos, meus segredos… contados nos dedos
um modem banda-larga, duas canetas sem carga

uma cafeteira, uma lapiseira, uma cadeira
meu radinho portátil, minha esperança volátil
meus vídeos, um medo danado de aranha-marrom

umas revistas de turismo, um pouco de astigmatismo
recordações da infância, emoções em abundância
um dinheiro a receber, descobertas por fazer

uns poucos amigos, uns objetos antigos
as minhas andanças, as minhas lembranças
um bom balde-de-gelo, ainda bastante cabelo

uma gravata, marmelada em lata, software pirata
meu humor, meu sabor, meu calor, uma garrafa de licor
dois guarda-chuvas dobráveis, alguns hábitos saudáveis

meu sul, um ursinho azul, uma cisma com istambul
meu norte, meu passaporte, minha sorte
um chico bento sorridente, uma filmadora gradiente

um passado errante, uma estante, um endereço mutante
nem tudo tão bom assim, mas também nada tão ruim
meus beijos especiais, com gosto de quero mais

minhas novas idades, um montão de afinidades
meus talentos, meus momentos, meus pensamentos
aquele indiozinho, o meu cheirinho, o meu carinho

e o meu amor, enquanto eu viver…
quer ficar comigo?

13 de maio

Lei_Áurea

Documento da Lei Áurea, assinado pela Princesa Isabel, Regente do Brasil, em 1888

No dia em que completamos 111 anos da assinatura da Lei Áurea, que aboliu a escravatura no Brasil, é bom lembrar o ímpeto de Antonio Frederico de CASTRO ALVES, que morreu jovem, em 1871, sem ver um de seus belos sonhos realizados. Sua obra deixou muitas páginas de gritos fragorosos em favor da liberdade dos escravos. Um de seus livros foi inteiramente dedicado a eles, além de poemas esparsos que faziam a denúncia desta página infame de nossa história.

Ao romperD'alva

Ao lembrar o dia 13 de maio, neste início de século e de milênio, não quero partilhar o ferro da vingança, como ilustrou o poeta baiano em um de seus poemas. Cresci em um ambiente de liberdade social, convivendo, desde os primeiros anos de escola, com colegas brancos, negros, pobres e ricos. Aprendi, desde cedo, que o Brasil, por seu notável caldeamento étnico (não racial, pois só existe uma raça humana), era um país de oportunidades para todos. Mais tarde, também aprendi que as oportunidades não eram tão bem repartidas, mas estavam ao alcance de todos os que a procuravam, principalmente por meio da educação.

Lamentavelmente, estamos vivendo um regresso a sentimentos mesquinhos, que têm ranço de uma nova – e errada – mentalidade  racista e, o que é pior, uma “democracia” que tentam construir somente em favor das chamadas minorias. O que temos que construir, na verdade, é uma nação cada vez mais solidária, que se educa com os erros do passado fazendo acontecer um presente digno para todas as pessoas. Jamais evocá-los para cobrar faltas a quem não as cometeu ou aproveitá-las para justificar certas facilidades sociais que premiam apenas alguns poucos, em desfavor de um grande número de brasileiros que também merece crescer.

Queremos um Brasil justo para todos os brasileiros, como sonhava o cantor da Cachoeira de Paulo Afonso. (C. de A.)

AO ROMPER D’ALVA

Castro Alvescastroalves
Página feia, que ao futuro narra
Dos homens de hoje, a lassidão, a história
Com o pranto escrita, com suor selada
Dos párias misérrimos do mundo!…
Página feia, que eu não possa altivo
Romper, pisar-te, recalcar, punir-te…
xxxxxxxxxxxxxxxxxPedro Calasans



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Sigo só caminhando serra acima,
E meu cavalo a galopar se anima
xxxAos bafos da manhã
A alvorada se eleva do levante,
E, ao mirar na lagoa seu semblante,
xxxJulga ver sua irmã.

As estrelas fugindo aos nenúfares,
Mandam rútilas pérolas dos ares
xxxDe um desfeito colar.
No horizonte desvendam-se as colinas,
Sacode o véu de sonhos de neblinas
xxxA terra ao despertar.

Tudo é luz, tudo aroma e murmúrio.
A barba branca da cascata o rio
xxxFaz orando tremer.
No descampado o cedro curva a frente,
Folhas e prece aos pés do Onipotente
xxxManda a lufada erguer.

Terra de Santa Cruz, sublime verso
Da epopéia gigante do universo,
xxxDa imensa criação.
Com tuas matas, ciclopes de verdura,
Onde o jaguar, que passa na espessura,
xxxRoja as folhas no chão;

Como és bela, soberba, livre, ousada!
Em tuas cordilheiras assentada
xxxA liberdade está.
A púrpura da bruma, a ventania
Rasga, espedaça o cetro que s’erguia
xxxDo rijo piquiá.

Livre o tropeiro toca o lote e canta
A lânguida cantiga com que espanta
xxxA saudade, a aflição.
Solto o ponche, o cigarro fumegando
Lembra a serrana bela, que chorando
xxxDeixou lá no sertão.

Livre, como o tufão, corre o vaqueiro
Pelos morros e várzea e tabuleiro
xxxDo intrincado cipó.
Que importa’os dedos da jurema aduncos?
A anta, ao vê-los, oculta-se nos juncos,
xxxVoa a nuvem de pó.

Dentre a flor amarela das encostas
Mostra a testa luzida, as largas costas
xxxNo rio o jacaré.
Catadupas sem freios, vastas, grandes,
Sois a palavra livre desses Andes
xxxQue além surgem de pé.

Mas o que vejo? É um sonho!… A barbaria
Erguer-se neste sécl’o, à luz do dia.
xxxSem pejo se ostentar.
E a escravidão – nojento crocodilo
Da onda turva expulso lá do Nilo –
xxxVir aqui se abrigar!…

Oh! Deus! não ouves dentre a imensa orquestra
Que a natureza virgem manda em festa
xxxSoberba, senhoril,
Um grito que soluça aflito, vivo,
O retinir dos ferros do cativo,
xxxUm som discorde e vil?

Senhor, não deixes que se manche a tela
Onde traçaste a criação mais bela
xxxDe tua inspiração.
O sol de tua glória foi toldado…
Teu poema da América manchado,
xxxManchou-o a escravidão.

Prantos de sangue – vagas escarlates –
Toldam teus rios – lúbricos Eufrates –
xxxDos servos de Sião.
E as palmeiras se torcem torturadas,
Quando escutam dos morros nas quebradas
xxxO grito de aflição.

Oh! ver não posso este labéu maldito!
Quando dos livres ouvirei o grito?
xxxSim… talvez amanhã.
Galopa, meu cavalo, serra acima!
Arranca-me a este solo. Eia! te anima
xxxAos bafos da manhã!

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxRecife, 18 de julho de 1865

Maio, mês de Paul Garfunkel

AutoRetratoPG_oleo_1945_45x31cmMaio é o mês de Paul Garfunkel, querido amigo com quem convivi, na década de 60, nos bons tempos da Escola de Belas Artes e da Galeria Cocaco. O mestre Garfunkel descia quase diariamente a rua XV, nos fins de tarde, desde seu ateliê, nas imediações da Universidade Federal, e se reunia com os jovens artistas da época, numa convivência pacífica e produtiva, em que as faixas etárias eram ignoradas e todos respiravam o pouco de arte da Curitiba de então. Discreto sempre, nunca deixou de comparecer a exposições e eventos culturais, sempre acompanhado da criativa e palpitante Madame Garfunkel.

Nascido em Fontainebleau, a 60 km de Paris, França, em 9 de maio de 1900, ele veio para o Brasil em 1927, um ano após ter casado com Helène Fanny Ginvert, mais conhecida, em sua vida paranaense, como Madame Garfunkel, responsável pela dinamização da Aliança Francesa, uma referência cultural em Curitiba por várias décadas.  Em suas primeiras andanças por São Paulo (onde nasceria, em 1929, sua filha Françoise-Marie, a Franchette, omo era carinhosamente chamada por todos) , colocou à disposição sua formação de engenheiro industrial, mas acabou vindo para o Paraná, estado que o captou definitivamente como artista visual. Em meados dos anos 60, editamos, Philomena Gebran e eu, um singelo álbum de reproduções de aquarelas de animais feiotas por Paul Garfunkel, por ocasião de uma daquelas famosas feiras agropecuárias do Parque Canguiri.

Depois, já por conta de minhas caminhadas fora de Curitiba, tive nova aproxcimação com sua obra ao proteger, em Brasília, no ano de 1984, uma coleção de 30 aquarelas em poder de um esperto metido a experto em artes, que ameaçava destruir as obras do artista, só porque suas ofertas de venda do acervo a órgãos públicos e empresários não obtiveram êxito. Coincidentemente, eu ocupava interinamente a presidência do Conselho Nacional de Direito Autoral e, ao notar que a ameaça do vândalo se constituía em crime previsto em lei, decidi tomar providências para evitar a morte anunciada das aquarelas. Mas houve demora na ação preventiva, pois o CNDA teve que requerer uma medida cautelar à Justiça, cuja liminar foi concedida somente duas horas após a realização do happening destrutivo, em um hotel de Brasília. Ainda tentei, por telefone, comunicar-me com o tresloucado “colecionador”, mas ele tinha chamado a atenção da imprensa e não desistiu de seu intento. Sempre espertalhão, ele não destruiu completamente as aquarelas, mas retalhou-as cuidadosamente com uma tesoura, em quatro partes cada uma, por certo prevendo uma possível restauração. Isso facilitou nossa próxima ação, já por meio do Ministério Público Federal, para requerer à Justiça a apreensão e guarda das aquarelas mutiladas, todas encontradas, no dia seguinte, na casa do iconoclasta tupiniquim, para onde me dirigi, em companhia do oficial de justiça, para recolher os despojos.

Como, na época, eu trabalhava no Ministério da Justiça, que tinha instalado recentemente um bem aparelhado laboratório de restauração de livros e documentos, consegui o apoio do estão ministro Ibrahim Abi Ackel para que as obras fossem ali restauradas. O fim da história? Ainda não chegou. Segundo soube recentemente, a ação sobre a apreensão das obras ainda corre na Justiça de Brasília, apesar dos 15 anos decorridos. Coisas do meu Brasil brasileiro.
largo-da-ordem-paul-garfunkel-1957
Mas voltemos a Garfunkel, cuja obra já pertence à história da arte parananese e brasileira. Aliás, sua longa permanência na vida artística do Paraná, desde o pós-impressionismo (onde muitos o situam), à reação ao abstracionismo e a renovação das artes plásticas, depois de 60, o tornou partícipe de vários eventos importantes de nossa cultura.

Como registrei no início, maio é seu mês. Nasceu num 9 de maio (outra coincidência: eu também) e morreu no dia 11 de maio de 1981, exatamente há 18 anos. No livro Paul Garfunkel: um Francês no Brasil, seu genro Karlos Rischbieter conta: “Ele registrava tudo em cadernos, blocos, folhas soltas. Tudo: pessoas, animais, casas, paisagens, tudo o que lhe aparecia à frente. E era um registro de ‘repórter’, no bom e original sentido da palavra. Com traços poucos e leves, uma espécie de sumi-ê ocidental, ele captava o seu assunto como se tivesse o poder de uma máquina fotográfica que, por uma capacidade extraordinária, sé enxergava e reproduzia o essencial.”

A crítica de arte Adalice Araújo escreveu, em 1974: “O que mais nos emociona em sua vasta produção são os croquis e manchas rápidas, em que nos transmite a impressão primeira das coisas. Como os impressionistas, é sobretudo um artista de instantâneos, em cujos toques nervosos de grande vibração mágica, capta a crônica da vida cotidiana…”

Mas é dele a palavra final: “Não entendo por que se criam tantos tabus em relação à arte. Ela é em essencial tão simples! Está nas ruas, na gente que passa; é apenas uma questão de sensibilidade, de transmissão de sentimentos, de diálogo de amor“.

A Paul Garfunkel, nosso abraço saudoso. E nossa homenagem, com o vídeo seguinte, que mostra o seu assíduo comparecimento aos recitais de música, sempre anotando tudo.

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Ilustrações (de Paul Garfunkel)
Auto-retrato (1945)
Óleo s/ tela 45x31cm 

Largo da Ordem (1957)
Óleo s/ tela
demais informações não localizadas

Deus para crentes e descrentes

Li no blog espanhol de Francisco Cenamor, Asamblea de Palabras, um poema da mexicana Guadalupe Amor Schmidtlein, mais conhecida como Guadalupe Amor ou Pita Amor (Pita deve ser o diminutivo do diminutivo Guadalupita). Ele faleceu em 2000, no dia 9 de maio, há, portanto, nove anos. Mas sua vida literária foi prolífica, assim como sua participação social em direção à emancipação feminina, na sociedade das primeiras décadas do Séc. XX, que se escandalizava por qualquer coisa.

Pita Amor nasceu no dia 30 de maio de 1918 na Cidade do México. Poeta experta em décimas, sua obra também se caracteriza por cuidadosos textos, influenciados, sem dúvida, por Quevedo, Sóror Joana e Gôngora.

PitaAmorPita cantou Deus, a morte, a solidão, a angústia, o nada. Desde muito jovem, Pita conviveu com artistas e intelectuais do México, graças a sua irmã Carita, colaboradora de Carlos Chávez e fundadora da Galería de Arte Mexicana, que foi instalada no porão da casa de seu pai, por onde desfilaram Rivera, Orozco, Tamayo, Siqueiros, O’Gorman entre muitos outros. Desta época surge a amizade de Pita con Juan Soriano, Cordelia Urueta, Roberto Montenegro, Antonio Peláez. Para todos eles pousou, inclusive para Rivera, que a pintou desnuda, o que produziu grande escândalo na família Amor.

Bonita, apaixonada e polêmica, foi apadrinhada poéticamente por Alfonso Reyes, que sobre ela assim se referiu: “…e nada de comparações odiosas, aqui se trata de um caso mitológico”. Pita, porém, seguiu de escândalo em escândalo, se envolveu em romances com toureiros, pintores, artistas e escritores, mas igualmente foi precursora do que depois se chamaria liberação feminina. “Não sou como muitas mulheres mexicanas”, dizia Pita.

Entre as obras que publicou, se destacam os poemários: Yo soy mi casa (1946), dedicado a sua amiga Gabriela Mistral; Puerta obstinada (1947), Círculo de angustia (1948), Polvo (1949), Décimas a Dios (1953), Sirviéndole a Dios, de hoguera (1958), Todos los siglos del mundo (1959), Soy dueña del universo (1984). Dentro do gênero narrativo: Yo soy mi casa (1957) – seu primeiro texto em prosa, e Galería de títeres (1959).

Sua personalidade a levou a dizer que sua poesia somente podia ser equiparada à de Sóror Joana Inés de la Cruz e Octavio Paz. E em alguma ocasião também afirmou: “Oxalá que algum destes versos possa dar a quem o leia um reflexo modesto de sua angústia, de sua esperança”.

Assim se descreveu:

Sozinha estou e plena de inquietudes;
cada dia me interno mais adentro;
meus defeitos atraem as virtudes;
de um misterioso círculo sou o centro.
O cansaço que tenho é infinito;
toda a dor do mundo tenho provado;
um labirinto de ansiedade habito
e tenteando me revolvo no intricado.

Décimas

Dios, invención admirable,
hecha de ansiedad humana
y de esencia tan arcana,
que se vuelve impenetrable.
¿Por qué no eres tú palpable
para el soberbio que vio?
¿Por qué me dices que no
cuando te pido que vengas?
Dios mío, no te detengas,
o ¿quieres que vaya yo?

***

Yo siempre vivo pensando
cómo serás si es que existes;
de qué esencia te revistes
cuando te vas entregando.
¡Debo a ti llegar callando
para encontrarte en lo oscuro!
O ¿es el camino seguro
el de la fe luminosa?
¿Es la exaltación grandiosa,
o es el silencio maduro?

***

Te quiero hallar en las cosas;
te obligo a que exista el cielo,
intento violar el velo
en que invisible reposas.
Sí, con tu ausencia me acosas
y el no verte me subleva;
pero de pronto se eleva
algo extraño que hay en mí,
y me hace llegar a ti
una fe callada y nueva.

***

Hablo de Dios como el ciego
que hablase de los colores
e incurro en graves errores
cuando a definirlo llego.
De mi soberbia reniego,
porque tengo que aceptar
que no sabiendo mirar
es imposible entender.
¡Soy ciega y no puedo ver,
y quiero a Dios abarcar!…

***

Oculto, ausente, baldío,
hermético, inalterable,
asfixiante, invulnerable,
absorbente, extraño y frío;
así te siento, Dios mío,
cuando sola y angustiada
me consumo alucinada
por lograr mi plenitud,
rompiendo esta esclavitud
a la que estoy condenada.

Dios_Cocijo
Museu Nacional de Antropologia don Mexico
O deus zapoteca Cocijo (deus da chuva) de Monte Albán
(200-500 d.C.)

Versão em português

Deus, invenção admirável,
feita de ansiedade humana
e de essência tão arcana,
que se torna impenetrável.
Por que não és mais palpável
para o soberbo de cá?
Por que me dizes que não
quando te peço que venhas?
Deus meu, não te detenhas,
ou queres que eu me vá?

***

Eu sempre vivo pensando
como serás, se é que existes;
de que essência te revestes
quando te vais entregando.
Devo a ti chegar calando
para encontrar-te no escuro!
Ou é caminho seguro
este da fé luminosa?
É a exaltação grandiosa,
ou o silêncio maduro?

***

Quero encontrar-te nas coisas;
obrigo a que exista o céu,
procuro violar o véu
em que, invisível,  repousas.
Se em tua ausência me acossas
e o não ver-te me subleva;
Mas de repente se eleva
algo estranho que há em mim,
e a ti entrego, enfim,
uma fé calada e nova.

***

Falo de Deus como o cego
que imaginasse o oceano
e incorro em desengano
quando a defini-lo chego.
Minha soberba renego,
porque tenho que aceitar
que não sabendo olhar
é impossível entender.
Sou cega e não posso ver,
e quero a Deus abarcar!…

***

Oculto, baldio,ausente,
hermético, inalterável,
asfixiante, invulnerável,
frio, estranho e absorvente;
assim te sinto, a Deus crente,
se sozinha  e angustiada
me consumo alucinada
para alcançar tua mão,
rompendo esta escravidão
a que estou condenada.

(C. de A.)

Sob as ondas

A natureza é toda poesia. O fotógrafo que tem a capacidade (ou a sorte) do clique correto, também é poeta. E se ele surfa e tem o necessário equilíbrio para clicar, no momento exato, dentro da onda, em meio ao turbilhão, faz do atletismo um momento de poesia. No instante paralisado, conserva o movimento da natureza, o agitar-se da vida. E a vida – como disse Vinicius de Moraes, em O Dia da Criação –, a vida bem em ondas, como o mar.

As fotos que publicamos, verdadeiros poemas fotográficos, foram extraídas de mensagem da arquiteta, escritora e ilustradora portuguesa Margarida Botelho. Infelizmente, não cosneguimos localizar os autores. Se alguém conseguir identificá-los, por favor, nos comunique para fazermos o registro.

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Dicas de Fernando Pessoa – 03

trifp1Toda a arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer alguma coisa. Há duas formas de dizer – falar e estar calado. As artes que não são a literatura são as projeções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou o drama. Quando se diz “poema sinfônico” fala-se exatamente, e não de um modo translato e fácil. O caso parece menos simples para as artes visuais, mas se nos prepararmos com a consideração de que linhas, planos, volumes, cores, justaposições e contraposições são fenômenos verbais dados sem palavras ou antes por hieoglifos espirituais, compreenderemos como compreender as artes visuais, e ainda que as não cheguemos a compreender ainda, teremos, ao menos, já em nosso poder o livro que contém a cifra e a alma que pode conter a decifração. Tanto basta até chegar o resto.

(De Textos de Crítica e de Intervenção.  Edições Ática, Lisboa:1980)

A poesia de Chaplin

chaplin

Se vivo estivesse, Sir Charles Spencer Chaplin Jr. teria festejado seus 110 anos de idade no último dia  16 de abril. Ele nasceu na Inglaterra em 1889 e – é preciso dizer? – tornou-se conhecido como Charlie Chaplin, ou Carlito, ator, diretor, dançarino, roteirista e músico. E também poeta, pois deixou muita coisa bela e inteligente escrita, não só nas letras de suas músicas, como Limelght (Luzes da Ribalta) e Smile (Sorri – veja letra abaixo).
Recolhemos algumas frases-quase-poemas que ele espalhou pelo mundo todo, em seus filmes, em suas músicas e em um livro de memórias. Também segue um longo poema do nosso Carlos, o Drummond de Andrade, no qual ele canta ao homem do povo que se tornou um nobre da corte inglesa.

E terminamos com um poema cinematográfico de Charlie Chaplin, a cena antológica do discurso do filme “O Grande Ditador”.

Diizem alguns críticos que ele era tremendamente egocêntrico e tirano, mas sua obra apagou esses rastos de fealdade, se é que existiram.

charles_chaplin1

Não fique triste quando ninguém notar o que fez de bom. Afinal, o sol faz um enorme espetáculo ao nascer e, mesmo assim, a maioria de nós continua dormindo.

A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso cante, chore, ria e viva intensamente antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos.

Cada pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha, é porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra. Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha, e não nos deixa só, porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós. Essa é a prova de que as pessoas não se encontram por acaso.

Não devemos ter medo dos confrontos.
Até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas.

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Eu continuo a ser uma coisa só: um palhaço, o que me coloca em nível mais alto do que o de qualquer político.

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A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso. Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo. Ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria.Aí você curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara pra faculdade. Você vai pro colégio, tem várias namoradas, vira criança, não tem nenhuma responsabilidade, se torna um bebezinho de colo, volta pro útero da mãe, passa seus últimos nove meses de vida flutuando… E termina tudo com um ótimo orgasmo!!!Não seria perfeito?

charles_chaplin3

Não preciso me drogar para ser um gênio;
Não preciso ser um gênio para ser humano;
Mas preciso do seu sorriso para ser feliz.

Smile

charliechaplin_gandhi

Smile,
Tough your heart is aching,
Smile,
Even though it’s breaking,
When there are clouds in the sky, you’ll get by
If you smile.

Through your fears and sorrow, smile
And maybe tomorrow
You’ll see the sun come shining through for you.
Light up your face with gladness,
Hide every trace of sadness,
Although a tear
may be ever so near,
That’s the time you must keep on trying,
Smile,
What’s the use of crying,
You’ll find that life is still worthwhile,
If you just smile.

Sorri

Sorri
quando a dor te torturar
E a saudade atormentar
Os teus dias tristonhos vazios

Sorri
quando tudo terminar
Quando nada mais restar
Do teu sonho encantador

Sorri
Quando o sol perder a luz
E sentires uma cruz
Nos teus ombros cansados doridos

Sorri
Vai mentindo a sua dor
E ao notar que tu sorris
Todo mundo irá supor
Que és feliz.

Canto ao Homem do Povo

Charles Chaplin

Carlos Drummond Andrade
rca-19charlie-chaplin-city-lights-postersPoster de Renato Casaro

I

Era preciso que um poeta brasileiro,
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos lúcidos,

era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravatas mas todos são extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se banhe em ironia,

era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.

Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo – inclusive os pequenos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melancólicos,

vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caído na rua.

Bem sei que o discurso, acalanto burguês, não te envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.

Não é a saudação dos devotos nem dos partidários que te ofereço,
eles não existem, mas a de homens comuns, numa cidade comum,
nem faço muita questão da matéria de meu canto ora em torno de ti
como um ramo de flores absurdas mando por via postal ao inventor dos jardins.

Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgosto de tudo,
que entraram no cinema com a aflição de ratos fugindo da vida,
são duras horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens – e te descobriram e salvaram-se.

Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração,
os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os indecisos, os líricos, os cismarentos,
os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e os patéticos.

E falam as flores que tanto amas quando pisadas,
falam os tocos de vela, que comes na extrema penúria, falam a mesa, os botões,
os instrumentos do ofício e as mil coisas aparentemente fechadas,
cada troço, cada objeto do sótão, quanto mais obscuros mais falam.

II

A noite banha tua roupa.
Mal a disfarças no colete mosqueado,
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas.

És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.

Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,
o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho.

E a lua pousa
em teu rosto. Branco, de morte caiado,
que sepulcros evoca mas que hastes
submarinas e álgidas e espelhos
e lírios que o tirano decepou, e faces
amortalhadas em farinha. O bigode
negro cresce em ti como um aviso
e logo se interrompe. É negro, curto,
espesso. O rosto branco, de lunar matéria,
face cortada em lençol, risco na parede,
caderno de infância, apenas imagem
entretanto os olhos são profundos e a boca vem de longe,
sozinha, experiente, calada vem a boca
sorrir, aurora, para todos.

E já não sentimos a noite,
e a morte nos evita, e diminuímos
como se ao contato de tua bengala mágica voltássemos
ao país secreto onde dormem os meninos.
Já não é o escritório e mil fichas,
nem a garagem, a universidade, o alarme,
é realmente a rua abolida, lojas repletas,
e vamos contigo arrebentar vidraças,
e vamos jogar o guarda no chão,
e na pessoa humana vamos redescobrir
aquele lugar – cuidado! – que atrai os pontapés: sentenças
de uma justiça não oficial.

III

Cheio de sugestões alimentícias, matas a fome
dos que não foram chamados à ceia celeste
ou industrial. Há ossos, há pudins
de gelatina e cereja e chocolate e nuvens
nas dobras do teu casaco. Estão guardados
para uma criança ou um cão. Pois bem conheces
a importância da comida, o gosto da carne,
o cheiro da sopa, a maciez amarela da batata,
e sabes a arte sutil de transformar em macarrão
o humilde cordão de teus sapatos.

Mais uma vez jantaste: a vida é boa.
Cabe um cigarro: e o tiras
da lata de sardinhas.
Não há muitos jantares no mundo, já sabias,
e os mais belos frangos
são protegidos em pratos chineses por vidros espessos.

Há sempre o vidro, e não se quebra,
há o aço, o amianto, a lei,
há milícias inteiras protegendo o frango,
e há uma fome que vem do Canadá, um vento,
uma voz glacial, um sopro de inverno, uma folha
baila indecisa e pousa em teu ombro: mensagem pálida
que mal decifras
o cristal infrangível. Entre a mão e a fome,
os valos da lei, as léguas. Então te transformas
tu mesmo no grande frango assado que flutua
sobre todas as fomes, no ar; frango de ouro
e chama, comida geral, que tarda.

IV

O próprio ano novo tarda. E com ele as amadas.
No festim solitário teus dons se aguçam.
És espiritual e dançarino e fluido,
mas ninguém virá aqui saber como amas
com fervor de diamante e delicadeza de alva,
como, por tua mão a cabana se faz lua.

Mundo de neve e sal, de gramofones roucos
urrando longe o gozo de que não participas.
Mundo fechado, que aprisiona as amadas
e todo o desejo, na noite, de comunicação.

Teu palácio se esvai, lambe-te o sono,
ninguém te quis, todos possuem,
tudo buscaste dar, não te tomaram.
Então encaminhas no gelo e rondas o grito.

Mas não tens gula de festa, nem orgulho
nem ferida nem raiva nem malícia.
És o próprio ano-bom, que te deténs. A casa passa
correndo, os copos voam,
os corpos saltam rápido, as amadas
te procuram na noite… e não te vêem,
tu pequeno, tu simples, tu qualquer.

Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.

V

Uma cega te ama. Os olhos abrem-se.
Não, não te ama. Um rico, em álcool,
é teu amigo e lúcido repele
tua riqueza. A confusão é nossa, que esquecemos
o que há de água, de sopro e de inocência
no fundo de cada um de nós, terrestres. Mas, ó mitos
que cultuamos, falsos: flores pardas,
anjos desleais, cofres redondos, arquejos
poéticos acadêmicos; convenções
do branco, azul e roxo; maquinismos,
telegramas em série, e fábricas e fábricas
e fábricas de lâmpadas, proibições, auroras.
Ficaste apenas um operário
comandado pela voz colérica do megafone.
És parafuso, gesto, esgar.
Recolho teus pedaços: ainda vibram,
lagarto mutilado.

Colo teus pedaços. Unidade
estranha é a tua, em mundo assim pulverizado.
E nós, que a cada passo nos cobrimos
e nos despimos e nos mascaramos,
mal retemos em ti o mesmo homem,

aprendiz
bombeiro
caixeiro
doceiro
emigrante
forçado
maquinista
noivo
patinador
soldado
músico
peregrino
artista de circo
marquês
marinheiro
carregador de piano

apenas sempre entretanto tu mesmo,
o que não está de acordo e é meigo,
o incapaz de propriedade, o pé
errante, a estrada
fugindo, o amigo
que desejaríamos reter
na chuva, no espelho, na memória
e todavia perdemos

VI

Já não penso em ti. Penso no ofício
a que te entregas. Estranho relojoeiro
cheiras a peça desmontada: as molas unem-se,
o tempo anda. És vidraceiro.
Varres a rua. Não importa
que o desejo de partir te roa; e a esquina
faça de ti outro homem; e a lógica
te afaste de seus frios privilégios.

Há o trabalho em ti, mas caprichoso,
mas benigno,
e dele surgem artes não burguesas,
produtos de ar e lágrimas, indumentos
que nos dão asa ou pétalas, e trens
e navios sem aço, onde os amigos
fazendo roda viajam pelo tempo,
livros se animam, quadros se conversam,
e tudo libertado se resolve
numa efusão de amor sem paga, e riso, e sol.

O ofício é o ofício
que assim te põe no meio de nós todos,
vagabundo entre dois horários; mão sabida
no bater, no cortar, no fiar, no rebocar,
o pé insiste em levar-te pelo mundo,
a mão pega a ferramenta: é uma navalha,
e ao compasso de Brahms fazes a barba
neste salão desmemoriado no centro do mundo oprimido
onde ao fim de tanto silêncio e oco te recobramos.

Foi bom que te calasses.
Meditavas na sombra das chaves,
das correntes, das roupas riscadas, das cercas de arame,
juntavas palavras duras, pedras, cimento, bombas, invectivas,
anotavas com lápis secreto a morte de mil, a boca sangrenta
de mil, os braços cruzados de mil.

E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
crispação do ser humano, árvore irritada,
contra a miséria e a fúria dos ditadores,

ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.

carlito1

Discurso do Grande Ditador

(Editado por http://www.youtube.com/leomeida)

Aniversário da Carta do Achamento

carta-caminhaEm abril, no dia do Descobrimento do Brasil, eu prometi voltar ao tema da Carta do Achamento em 1º de maio, data de sua assinatura por Pero Vaz de Caminha, escrivão lotado na armada de Pedro Álvares Cabral. A data passou em branco, em razão de uma viagem minha, não tão longa, mas que afastou-me do blog por alguns dias. No final da última semana, deparei-me com outro probleminha, pois a banda larga da Internet estreitou, talvez também devido às calmarias, e não consegui postar além de dois títulos.

Portanto, pedindo desculpas à Carta e a seu escriba, como também aos leitores que eventualmente procuraram pelo post  no dia 1º, entrego à leitura alguns poemas sobre o tema, a começar pelo já conhecido Pero Vaz de Caminha, de Oswald de Andrade.

Pero Vaz de Caminha

Oswald de Andrade

oswalddeandradeA descoberta

Seguimos nosso caminho por este mar de longo
Até a oitava da Páscoa
Topamos aves
E houvemos vista de terra

Os selvagens

Mostraram-lhes uma galinha
Quase haviam medo dela
E não queriam pôr a mão
E depois a tomaram como espantados

Primeiro chá

Depois de dançarem
Diogo Dias
Fez o salto real

As meninas da gare

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis
Com cabelos mui pretos pelas espáduas
E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas
Que de nós as muito bem olharmos
Não tínhamos nenhuma vergonha

De Pau-brasil (1925)

Erro de Português

Oswald de Andrade

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio teria despido
O português

in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.
esquadra_de_cabral

Nova do Achamento (Quarta-feira, 22 de Abril)

Manuel Alegre

Sabei porém que foi um sobressalto
E tremo ainda ao pô-lo no papel.
Vimos primeiro um monte muito alto
E outras serras mais baixas ao sul dele.

Vimos depois as serras terra chã
Muito formosa e cheia de arvoredos.
Era a luz a surgir de seus segredos
E em nós embora tarde era manhã.

Nem sei dizer Senhor o espanto e os medos.

Achar Senhor é pão que mata a fome
Da ânsia de mais mundo e de mais luz.
E ao monte grande o Capitão pôs nome
De Pascoal. E à terra de Vera Cruz.

Lisboa, Publicações Europa-América, s.d.

Descobrimento

Sophia de Mello Breyner Andresen

caravelas
Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados

Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados

Brasil ou do outro lado do mar
Obra Poética III, Lisboa, Ed. Caminho

Carta de Pero Vaz de Caminha

Luís Filipe Castro Mendes

É equívoca a ternura. Demasiados gestos
Para uma só palavra.
E agora que será de nós? Ficar aqui?

Esta terra contém água em demasia.
Prefiro a inteireza da pedra. Mas que podemos nós fazer
Quando as palavras sobram
E o amor acontece?

Rio Caí

Rui Rasquilho

Encontrada a terra
Na coincidência da Páscoa
Caminha olhou da grande nau
A praia
E escreveu ao Rei

Nu
O dono da terra
Olhou o branco marítimo
Trazido pelo vento

A praia clareava a floresta
Junto do mar
Enfeitada de penas e flechas

De espadas

No vermelho branco do encontro
A surpresa não teve fingimento
Na vertigem do silêncio da palavra

O Rei
Leu a carta de Caminha
E ordenou a invenção da história
Como se nada fosse o que era

25 Poemas brasileiros e uma Saga Lusitana
Thesaurus, Brasília, 1997

Em defesa de Caminha e de nosso caráter

manueli-p

D. Manuel I, o Venturoso – Afinal, o Rei atendeu Caminha
 e fez seu genro retornar a Portugal?

Difundiu-se pelas terras descobertas por Cabral, em favor da diminuição de nosso caráter, o boato de que o nepotismo e a corrupção do País brasílico se originaram no primeiro texto escrito sobre a Ilha de Vera Cruz. O escriba da esquadra cabralina teria aproveitado a comunicação com o Rei de Portugal e pedido a ele um emprego para parente. Para apimentar ainda mais a fofoca, disseram que era para um sobrinho seu, o que caracterizaria o nepotismo (embora sua correta acepção não seja essa). Erro de quem não leu ou passou superficialmente pela carta de Caminha.

Em verdade, em verdade vos digo: Caminha tão somente aproveitou a carta (que levaria algum tempo para chegar a Portugal e, portanto, não haveria uma próxima segunda oportunidade para fazê-lo) para solicitar a Sua Alteza a vinda (provável transferência) de seu genro Jorge de Osório, por alguma razão situado, naquele momento, na Ilha de São Tomé, na costa da África, colônia portuguesa desde 1470, quando João de Santarém e Pedro Escobar a descobriram (hoje é a República de São Tomé e Príncipe, independentes desde 1975, e faz parte da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP). Imagine-se as condições de vida naquela colônia, inabitada até a data de sua descoberta pelos navegadores lusos.

É preciso que lembremos que, naquele tempo, embora Portugal fosse uma potência econômica mundial, líder no setor de navegação, era ainda um país pequeno, em relação aos dias de hoje. O Rei tinha poder discricionário e somente ele podia definir a sorte dos funcionários da corte. Além disso, Pero Vaz de Caminha era Cavaleiro da Corte, durante os reninados de D. Afonso V, D. João II e, na época do descobrimento,  D. Manuel I, por quem fora nomeado escrivão em Calecut, integrado à armada de Pedor Álavres Cabral. Tinha, portanto, intimidade com a corte e lhe era perfeitamente permitido tal aproximação com o monarca. Ora, ao pedir a transferência de seu genro daquela ilha, distante de Lisboa em cerca de 4.500 quilômmetros, Caminha não estava a utilizar nenhum favor especial. Simplesmente fazia um requerimento bastante compreensível para reunir sua família em Portugal (ao lado de um genro, sempre há uma filha). Pedido que podia ser atendido ou não. Onde estão a corrupção e o nepotismo?

Mais razões há para registrarmos o início de nossa saudável miscigenação, como observa Carlos Eduardo de Soveral, no Dicionário de Literatura, ao ver na Carta “o mais vivo testemunho relativo ao reconhecimento oficial da terra de Vera Cruz. Nela se patenteia com pitoresco inexcedível a impressão que no civilizado, saído da Idade Média, infunde o espectáculo genesíaco, e também, especialmente, o atrativo que a mulher indígena exerce na forte compleição do português”. Depois, seria a vez da mulher da africana, cujo relacionamento com “a forte compleição do português” daria origem a formosas mulatas. Pena é que, hoje, haja quem lute em favor do retrocesso, com tantas iniciativas para se implantar o neoracismo no Brasil.

Para os que desejarem ler (ou guardar) a Carta completa, vejam em http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/a_carta.htm.

Fernando Pessoa & Paulo Autran

paulo-autranEncontrei no Youtube um poema de Fernando Pessoa, declamado por Paulo Autran, o grande ator que deixou os palcos da vida há um ano e meio (12 de outubro de 2007). Há outros poemas gravados por Paulo, extraídos da obra do poeta português. Mas este me chamou particularmente a atenção. Voltei a 1965, ano em que Paulo Autran mais Tereza Rachel e Jairo Arco e Flexa trouxeram a Curitiba o musical Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, dirigido pelo último. Foi uma temporada  brilhante no Teatro Guaíra e um pequeno grupo de gente daqui, do qual eu participava, conviveu com o elenco da peça durante a temporada curitibana. Estivemos, em passeio com Paulo e Tereza, na Ilha das Cobras, no litoral paranaense, onde Wilson Rio Apa tinha parentes. Numa noite, na pequena praia da ilha, eu conversava com Paulo sobre poesia e lhe apresentei uns tantos poemas de Fernando Pessoa, que lemos de uma edição completa da Aguilar, na época meu livro de cabeceira. O que mais impressionou o saudoso ator foi exatamente o agora encontrado, dito por ele – Poema em linha reta. Ouçam-no, em homenagem a Pessoa e Autran.

Sarah Carrère, artista senegalesca

Marilda Confortin enviou mais uma contribuição. Riquíssima, por sinal, pois se trata de uma artista do Senegal, mais famosa por sua música, mas que também faz poesia. Diz-nos Marilda: “Sarah Carrère M’Bodj é do sarahcarrereSenegal. Poeta, tradutora e musicista. É a única artista feminina que levou, além das fronteiras da África, a arte de tocar Kora, um instrumento musical africano, tradicionalmente, até agora, de uso exclusivo dos homens. Eu conheci  Sarah e seu instrumento exótico na Nicarágua, durante o festival de Poesia. Ela quer muito conhecer o Brasil. Quem sabe hora dessas ela apareça por aqui e vocês tenham o prazer de conhecê-la e ouvi-la”.

Enquanto não temos o prazer de conhecê-la pessoalmente, conheçamos sua poesia, no exemplo que vai abaixo. A versão em Espanhol (o original deve ter sido escrito em Francês, que é o idioma do Senagal) recebe aqui uma versão em Português.

Testamento

baoba37

Que mi cuerpo descanse dentro de un Baobab hueco
con el olor de resina y de madera
y que retenga conmigo los secretos maravillosos
que me han confiado los « Griots », los sabios, y los reyes

Que mi cuerpo descanse dentro de un Baobab hueco
donde los hombres acudirían todos en peregrinación
ya las escuchara, pensadora y silenciosa
al rededor del árbol, crecería flores salvajes

Que mi cuerpo descanse dentro de un Baobab hueco
en la llanura mas allá, donde caminan los zebúes blancos
y se den citas los pastores enamorados
para observar el vuelo de los Cormorans

Que mi cuerpo descanse en un Baobab hueco
encima de la colina color de sombra quemada
lejos de los ruidos de los hombres
mas cerca de los rumores divinos
percibire cantos de la selva sagrada

Aquí estoy, descansando por fin en un Baobab hueco
las estrellas arriba , lucen como Cauris
el cielo es como un sudario tendido de Basin azul
La Osa Grande y Orion, complices, me sonrien…. !

Han crecido los Baobas que llegan la Castel
yo conoci Gorée con su muelle de madera
su baile de Signaras, mariposas de encajes.
En Dakar existían solamente chabolas y avenidadas arenosasas
¿Dónde están las casas de madera de la calle Rafenel ?
¿Los jardines florecidos bordeados de cocoteros ?
Donde la gente se divertía en los quioscos de músicos ?
Con concursos de tiro y carreras a pie ?

La peninsula de Cabo Verde donde esta Dakar
esmaltada de puentes sobre pilotes
rodeadas de basalto
está siempre aquí,
mojando el gran azul.

Testamento

Que meu corpo descanse dentro de um baobá oco
com o cheiro de resina e de madeira
e que retenha comigo os segredos maravilhosos
que me confiaram os griots, os sábios e os reis

Que meu corpo descanse dentro de um baobá oco
onde os homens acudiriam a todos em peregrinação
já as escutara, pensadora e silenciosa
ao redor da árvore, cresceriam flores selvagens

Que meu corpo descanse dentro de um baobá oco
Na planície distante, onde caminham os zebus brancos
e marcam encontros os pastores enamorados
para observar o voo dos cormorões

Que meu corpo descanse em um baobá oco
acima da colina cor de sombra queimada
longe dos ruídos dos homens
mas próximo aos rumores divinos
perceberei cantos da selva sagrada

Aqui estou, descansando por fim em um baobá oco
as estrelas acima luzem como cauris
o céu é como um sudário estendido da bacia azul
A Ursa Maior e Órion, cúmplices, me sorriem…. !

Cresceram os baobás que chegam a Castel
eu conheci Goré com seu molhe de madeira
seu baile de signaras, borboletas de rendas.
Em Dakar existiam somente barracos e avenidas arenosas
Onde estão as casas de madeira da rua Rafenel?
Os jardins floridos bordejados de coqueiros?
Onde a gente se divertia nos quiosques de músicos?
Com concursos de tiro e corridas a pé?

A península de Cabo Verde onde está Dakar
esmaltada de pontes sobre pilotis
rodeadas de basalto
está sempre aqui,
molhando o grande azul.

______________

Notas

baoba_recifeBaobá – grande árvore da família das bombacáceas (Adansonia digitata), encontrada nas savanas africanas, de tronco bastante espesso, rico em reservas de água, e considerado o mais grosso tronco do mundo. Foi popularizado  pelo texto de Saint Exupéry, “O Pequeno Príncipe” (“Não compreendi logo porque era tão importante que os carneiros comessem arbustos. Mas o principezinho acrescentou:
– Por conseguinte eles comem também os baobás?
Fiz notar ao principezinho que os baobás não são arbustos, mas árvores grandes como igrejas. E que mesmo que ele levasse consigo todo um rebanho de elefantes, eles não chegariam a dar cabo de um único baobá.”)
Dizem que o escritor francês inspirou-se no baobá existente na Praça da República, no Recife (foto acima), quando por ali passou.
No Brasil há poucos exemplares de baobás, trazidos da África pelos sacerdotes daquele continente, pois a árvore era utilizada nos ritos religiosos dos escravos.
Goré – ilha do Senegal, declarada como patrimônio mundial pela Unesco.
Signara – ritmo da música senegalesca; tipo feminino de Goré, que utiliza fantasias em suas danças.

Castel – ruínas de fortificações datadas de várias épocas

Griots – contadores de história; correspondem aos bardos medievais.

Cauris – caramujos usados pelos adivinhos africanos; correspondem aos búzios brasileiros.

korKora ou corá – instrumento musical tradicional do Senegal, de origem mandinga,  se constitui em ferramenta de trabalho dos griots africanos.
Feito de uma cabaça fechada com couro e ligada a um cabo por 21 cordas (atualmente são usados fios de pesca). Tocada quase na vertical, sobre os joelhos do executante sentado, que pinça as cordas com as duas mãos, com os dedos polegar e índice. As cordas são tocadas com as duas mãos – 11 com a mão esquerda e 10 com a direita.