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Os dois Mários utópicos

Em linha reta, menos de mil quilômetros os separavam. Um em Montevidéu, outro em Porto Alegre. Em linhas poéticas, nenhuma separação, a não ser de idéias individualizadas. Ambos buscavam a palavra simples, mas de enorme carga emocional. Ambos Mário. Um Benedetti, o outro Quintana. Ambos poetas que já se foram. Ambos menestréis do amor e da paz que ficarão entre nós eternamente.

Este post é dedicado a Manoel de Andrade, em regozijo à sua pronta recuperação.

Utopía

Mário Benedetti

Cómo voy a creer / dijo el fulano
que el mundo se quedó sin utopías

cómo voy a creer / dijo el fulano
que el universo es una ruina
aunque lo sea
o que la muerte es el silencio
aunque lo sea

cómo voy a creer
que el horizonte es la frontera
que el mar es nadie
que la noche es nada

cómo voy a creer / dijo el fulano
que tu cuerpo / mengana
no es algo más de lo que palpo
o que tu amor

ese remoto amor que me destinas
no es el desnudo de tus ojos
la parsimonia de tus manos

cómo voy a creer / mengana austral
que sos tan sólo lo que miro
acaricio o penetro
cómo voy a creer / dijo el fulano
que la utopía ya no existe
si vos  / mengana dulce
osada / eterna
si vos / sos mi utopía.

Utopia

Como vou crer / disse o fulano
que o mundo ficou sem utopias

como vou crer / disse o fulano
que o universo é uma ruína
ainda que o seja
ou que a morte é o silencio
ainda que o seja

como vou crer
que o horizonte é a fronteira
que o mar é ninguém
que a noite é nada

como vou crer / disse o fulano
que teu corpo / sicrana
não é algo mais do que apalpo
ou que teu amor

esse remoto amor que me destinas
não é o despir-se de teus olhos
a moderação de tuas mãos

como vou crer / sicrana austral
que és tão somente o que vejo
acaricio ou penetro
como vou crer / disse o fulano
que a utopia já não existe
se tu / sicrana doce
ousada/ eterna
se tu / és minha utopia

Versão: C. de A.

Ilustração: Cleto de Assis

Das Utopias

Mário Quintana

Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos se não fora
A mágica presença das estrelas!

de:  Espelho Mágico

Domingos Pellegrini lança novo livro em Curitiba

A história da mãe do escritor Domingos Pellegrini

Jaime Cimenti

O consagrado e premiado escritor Domingos Pellegrini estreou na literatura em 1977, com o livro de contos O Homem Vermelho, premiado com o Prêmio Jabuti. Com o romance O Caso da Chácara Chão, de 2001, recebeu outro Jabuti. Com outros romances e livros de poesia, recebeu mais quatro Prêmios Jabuti. Há quinze anos o autor vive de literatura, depois de ter se mudado para uma chácara na cidade onde nasceu, Londrina. Herança de Maria é uma alentada narrativa de 416 páginas que retrata a vida da mãe do escritor, uma mulher forte, que nasceu menina humilde no interior do Paraná, tornou-se dona de pensão, engravidou sem saber direito o que era um parto, desafiou um soldado da ditadura com tapa na cara para proteger o filho e viveu separada do marido na época em que isso era uma vergonha. Era mulher com resposta para tudo. As primeiras páginas do romance iniciam com Maria, aos 80 anos, em coma. As mãos fortes, que no passado bateram o pilão, estão, agora, imóveis, repousando sobre seu peito. Este romance é a estreia de Pellegrini na Editora LeYa Brasil. A narrativa é intensa, comovente e envolve lembranças, cartas antigas encontradas em caixas de sapato, memórias e conversas com quem conheceu Maria ao longo da vida. Descrevendo a trajetória de Maria, o protagonista e alterego do autor fica ao seu lado no quarto, observando-a e acabando por reconstruir  momentos da vida de nosso Brasil destas últimas décadas, através de suas ideologias e mudanças. O filho não sabe se Maria, com o corpo inerte, vai durar dias, meses ou anos. A decisão sobre o final da vida da mãe cabe a Deus, mas a ele também. Que morte deveria ter aquela Maria especial? O que poderia ser feito depois de tantas décadas de luta? Como lembrar dos caminhos de  tantos homens, mulheres, civis, militares, jovens e crianças, envoltos num período marcante da História do Brasil? O protagonista lembra, relembra, imagina e vai construindo o possível. Ele decide que aquela mulher extraordinária, forte, íntegra, corajosa, capaz de operar verdadeiros “milagres”, merece algo mais grandioso do que simplesmente viver na inércia de um vegetal.  Editora LeYa, 416 páginas, R$ 44,90, www.leya.com.br.

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Conheci Maria, a real, apenas de raspão. Mais precisamente, ao atender dois telefonemas que ela fez à redação do Novo Jornal, em Londrina  – lá pelos idos de 1970 – cujo redator-chefe era o jovem e talentoso jornalista Domingos Pellegrini,  seu filho. Mãe zelosa, reclamava do fato de o “menino” estar trabalhando até altas horas, quando deveria estar em casa. Anos mais tarde, quando conversamos, em um de nossos reencontros, ele descreveu a tragédia de ver sua mãe padecer, à beira da morte. Era, talvez, um rápido trailer do livro que agora expõe ao público, numa primorosa edição da LeYa, de editores portugueses que, novamente, estão descobrindo o Brasil, sem muito alarde, mas com um catálogo já bem fornido. Obras como Uma Patada com Carinho, da cartunista Fabiane Bento Langona (Chiquinha);A Bossa do Lobo, na qual Denilson Monteiro conta a vida de Ronaldo Bôscoli; Historietas assombradas, de Victor-Hugo Borges; O fim da guerra, de Denis Russo Burgierman, e Escritos em verbal de aves, do poeta Manoel de Barros.

A editora LeYa também investe, agora, na reedição do livro do curitibano Leandro Narloch, o Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil, um best-seller que já vendeu 200 mil exemplares, desde seu lançamento, em 2009.  Desta vez ele será vendido em uma caixa, associado ao Guia Politicamente Incorreto da América Latina, que Narloch escreveu em parceria com seu colega de Veja, Duda Teixeira. Anuncia-se que a tiragem da dupla será de 70 mil exemplares, um número realmente expressivo no mercado editorial do Brasil.

Pellegrini lançou seu novo livro em Curitiba no último dia 25 de novembro, no bar Quintana. Como sempre, reuniu amigos e admiradores de sua literatura, mostrando mais uma história bem contada, que pode ser a história de milhões de brasileiros que vivem simplesmente em pacatas cidades do interior, com raízes na roça. Uma história de amor filial e amor materno, sem ser melodramática. Uma história como essas que a gente guarda na memória da criança que todos fomos e que muitos esquecem. A intimidade familiar e a onipresença de Maria, a simples, a batalhadora, a sofredora, mais heroína do que o próprio filho que queria ser herói para salvar o Brasil de todas as suas desgraças. Pelo menos até onde já fui, na leitura de A Herança de Maria, deu para perceber que Domingos Pellegrini alia as suas qualidades de excelente narrador, poeta e historiador da simplicidade ao sentimento de gratidão pelo que recebeu de sua mãe, nas contínuas heranças de dedicação. Seu livro é uma grande herança ao revés, que dela não recebeu, mas que entrega carinhosamente após sua morte.

Este novo reencontro com Domingos Pellegrini também me deu a oportunidade para rever velhos amigos londrinenses, como os que aparecem na foto. Faltou Nilson Monteiro, também amigo e colaborador do Novo Jornal, que já havia saído na hora do “instantâneo”. Obrigado, Dinho, por mais esta jóia literária. Cleto de Assis

Claret de Rezende, Cleto de Assis, Ricardo Sampaio e Domingos Pellegrini, colegas nos tempos áureos da Folha de Londrina. Embeleza a foto Dalva, esposa de Pellegrini

Eudes Moraes: Multiverso ou um olhar realista do cotidiano

A Editora InVerso, de Curitiba, promove o lançamento, no próximo dia 22 de novembro (terça-feira) do livro Multiverso, do paulista-paranaense Eudes Moraes, com poemas que o autor define como feitos com “temas extraídos do cotidiano, colhidos de uma particular observação do comportamento humano”. São 80 poemas, nos quais Eudes busca, nas palavras, “cores e aromas, transitando por memórias e desejos”.

Paulista de nascimento, Eudes Moraes morou em Londrina por 16 anos, em Brasília por seis anos e reside em Curitiba há 32 anos. Graduado em Psicologia, Teologia, Filosofia e Direito, define-se também como escritor e poeta, com participações em vários livros. Publica artigos em jornais e revistas e gosta de exercitar, no Facebook, sua tendência polemista e de incitador à reflexão. Como empresário (atualmente CEO da empresa Kazatec), foi Diretor no Grupo empresarial INEPAR S/A, por 25 anos, e diretor-geral da Rádio CBN, em Curitiba. É membro do Círculo de Estados Bandeirantes, entidade hoje abrigada pela PUC/PR, fundada em 1929 por um grupo de jovens idealistas, muitos dos quais se tornaram figuras importantes da cultura paranaense, como Bento Munhoz daRocha Neto, José Farani Mansur Guérios, Benedicto Nicolau dos Santos e José Loureiro Fernandes, entre outros.

Para completar sua biografia, publicamos um poema seu, que soa como um libelo em versos diretos,  sem metáforas, no qual ele demonstra seu poder de observação crítica da vida que se (es)vai por aí.

Desejamos sucesso a Eudes, nessa sua empreitada pouco comum de empresário-poeta.

A morte dos mitos  

Eu despontava para a vida e ao longe vislumbrava
nomes de pessoas e figuras ilustres na sociedade,
que pareciam distantes e intocáveis como mitos.
Tinha a sensação de que com elas jamais teria afinidade.

Cresci. Comecei a ler e ver fotografias nos jornais,
vi autoridades, vultos da política e eclesiásticos.
Pessoas no poder e muitas delas endinheiradas,
pareciam ser muito especiais. Eram respeitadas.
Elas representavam os poderes constituídos,
de longe, pareciam probas e de caráter ilibado,
líderes sérios, competentes, incorruptos e eruditos.

Da distância em que eu estava, esses eram os meus mitos.
Da minha humildade, eu os via como modelo.
Via-os liderando, discursando, sendo entrevistados,
Suas opiniões eram regras a seguir, insidioso apelo,
Falavam palavras bonitas com gestuais combinados.

Passei pelas escolas e espaços fui conquistando,
fui me aproximando dos mitos e descobrindo
que eles não eram o que de longe aparentavam,
e muitos desses heróis por mim foram passando.
De família modesta, foi rápida a minha ascensão.
Não tendo posses, só pelo intelecto podia vencer.

De casa saí com quinze anos, num internato estudei.
A universidade da vida é difícil, uma escola do saber.
A vida não me foi fácil e desafios tive que romper,
imaginava que os melhores habitavam nas capitais.

Em Curitiba, via mitos no poder político e empresarial,
a partidos políticos me filiei — casas de vestais.
Jogo sórdido existe em entidades de classes,
fiz política, não tive estômago para tanta podridão!
Fiz futebol, não gostei do que vi, ouvi e como agem,
presenciei hipocrisia e jogo de poder na religião.

De deputados e governadores me tornei amigo,
fiz secretários, indiquei servidores para cargos.
À medida que me aproximava e com eles convivia,
mais desencantos e decepções eu reunia.

Morei em Brasília e mais perto do poder fiquei,
convivi naquela corte com autoridades da República,
fiz amizades nas embaixadas e pelas festas desfilei.

Vi o despreparo humano e fragilidades presenciei.
Os incompetentes são fracos, traidores e covardes,
foi aí que me dei conta do desvalor conceitual,
como se o conceito de um mito se desgastasse,
perdesse o brilho e o encanto se desmanchasse.

Poucos deixaram boas marcas em minha vida,
poucos os que, tendo defeitos, se agigantaram,
pelo caráter, probidade, distinção, pudor, honradez,
e o meu respeito, por seus princípios, conquistaram.

Mito é pessoa comum quando fica lado a lado,
mito é um incompetente que se escala para o poder.
O mito pode ser frágil, antiético, injusto e desumano,
na medida em que se aproxima ele vai nos enojando.

Com a convivência, as pessoas vão se revelando,
mostram seu lado podre e se corrompem na ganância,
são egoístas, desonestas e se perdem na vaidade,
tornam-se chatas, exibidas, cansativas, causam ânsia.

As pessoas se deterioram diante dos nossos olhos,
quando gostam do poder e na ostentação fazem ritos.
Se insuportáveis, fúteis, metidas e cometem delitos,
quebram o encanto, morrem como todos os mitos.

Carícias e palavras acariciantes de Alfonsina

Um mês após a morte de Alfonsina Storni (Argentina,  1892 – 1938), intencionalmente buscada em uma praia de Mar del Plata, um senador seu compatriota a homenageou com estas palavras: «Nosso progresso material assombra a nós e a estranhos. Construímos urbes imensas. Centenas de milhões de cabeças de gado pastam na imensurável planície argentina, a mais fecunda da terra; mas frequentemente subordinamos os valores do espírito aos valores utilitários e não conseguimos, com toda nossa riqueza, criar una atmosfera propícia onde pode prosperar essa planta delicada que é um poeta».

Não serão, certamente, as palavras momentaneamente sábias de um político que farão prosperar o jardim da poesia. As flores sempiternas são os poemas que se produzem e se reproduzem sem cansar ou corromper ouvidos e corações. Alfonsina se foi muito cedo, afogada em água e amor transbordante. E deixou-nos suas belas palavras, suas plantas delicadas, flores, muitas flores.

Para ver mais de Alfonsina, no Banco da Poesia, clique aqui e aqui.

Alfonsina y la mar Banco da Poesia

Ilustração de C. de A. sobre uma foto de Pilar Azaña (Espanha)

La caricia perdida

Se me va de los dedos la caricia sin causa,
se me va de los dedos… En el viento, al pasar,
la caricia que vaga sin destino ni objeto,
la caricia perdida ¿quién la recogerá?

Pude amar esta noche con piedad infinita,
pude amar al primero que acertara a llegar.
Nadie llega. Están solos los floridos senderos.
La caricia perdida, rodará… rodará…

Si en los ojos te besan esta noche, viajero,
si estremece las ramas un dulce suspirar,
si te oprime los dedos una mano pequeña
que te toma y te deja, que te logra y se va.

Si no ves esa mano, ni esa boca que besa,
si es el aire quien teje la ilusión de besar,
oh, viajero, que tienes como el cielo los ojos,
en el viento fundida, ¿me reconocerás?

A carícia perdida

Vai-se de meus dedos a carícia sem causa,
vai-se dos dedos… No vento, ao passar,
a carícia que vaga sem destino nem objeto,
a carícia perdida, quem a recolherá?

Pude amar esta noite com piedade infinita,
pude amar o primeiro que acertasse em chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, rodará… rodará…

Se nos olhos te beijam esta noite, viajante,
se estremece os ramos u. doce suspirar,
se te oprime os dedos uma pequena mão
que te toma e te deixa, que te alcança e se vai.

Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
oh, viajante, que tens como o céu os olhos,
no vento fundida, me reconhecerás?

Dos palabras

Esta noche al oído me has dicho dos palabras
comunes. Dos palabras cansadas
de ser dichas. Palabras
que de viejas son nuevas.

Dos palabras tan dulces que la luna que andaba
filtrando entre las ramas
se detuvo en mi boca. Tan dulces dos palabras
que una hormiga pasea por mi cuello y no intento
moverme para echarla.

Tan dulces dos palabras
?Que digo sin quererlo? ¡oh, qué bella, la vida!?
Tan dulces y tan mansas
que aceites olorosos sobre el cuerpo derraman.

Tan dulces y tan bellas
que nerviosos, mis dedos,
se mueven hacia el cielo imitando tijeras.
Oh, mis dedos quisieran
cortar estrellas.

Duas palavras

Esta noite ao ouvido me disseste duas palavras
comuns. Duas palavras cansadas
de ser ditas. Palavras
que de tão velhas são novas.

Duas palavras tão doces que a lua que andava
filtrando-se entre a ramagem
se deteve em minha boca. Tão doces duas palavras
que uma formiga passeia por meu pescoço e não tento
mover-me para expulsá-la.

Tão doces duas palavras
que digo sem querer: oh, que bela, a vida!
Tão doces e tão mansas
que óleos aromáticos sobre o corpo derramam.

Tão doces e tão belas
que, nervosos, meus dedos,
Se movem em direção ao céu, a imita tesouras.
Oh, meus dedos quiseram
cortar estrelas.

(Versões de C. de A.)

Frederico Füllgraf & Lili Marleen, a repercussão

O escritor, tradutor e roteirista Frederico Füllgraf, que felizmente habita entre nós, fez longa pesquisa sobre o mito de Lili Marleen, mais conhecida entre nós, na segunda guerra Mundial, como Lili Marlene, título de uma canção nazista que contagiou os soldados de todas as nações – amigas e inimigas – envolvidas naquele conflito, inclusive os brasileiros. Seu trabalho foi ricamente comentado pelo também nosso amigo Manoel de Andrade, merecidamente reproduzido no blog do jornalista Luiz Nassif. Vamos igualmente reproduzir a análise de Manoel, na qual ele realça a grande ironia criada por aquela canção: descobriu-se, mais tarde, que a musa que a inspirou era judia… Se você gostar do aperitivo de Manoel de Andrade, beba a água na fonte: acesse o Fulfrafianas e leia o trabalho de Frederico, dividido em três partes – (1-3), (2-3) e (3-3). Vale a pena. E após degiustar o apweritivo e o prato principal, veja e ecute, como sobremesa, as versões de Lili Marleen, em Alemão e Inglês, cantadas por Marlene Dietrich.

Sobre a Lilli Marleen de Frederico

Por Manoel de Andrade, poeta e ensaísta

Eu já tinha ouvido “Lilli Marleen” na voz de Marlene Dietrich, mas não imaginava que aquele poema, transformado em música, tivesse uma trajetória tão fantástica e nem que Hans Leip tivesse sido um escritor tão fecundo. Quantos vultos famosos da história europeia estiveram, direta ou indiretamente, relacionados com essa célebre canção!!! A  interculturalidade com que o texto é escrito leva-nos a caminhar pelos fronts históricos e geográficos da Segunda Grande Guerra, bem como pelos seus bastidores,  chocando-nos com o terror da censura nazista sobre a cultura. Era a ironia da própria guerra trazendo, depois do bombardeiro alemão de Belgrado, o som radiofônico de uma canção ouvida e apreciada, a despeito da proibição de Goebbels, pelo prestígio do General  Rommel e seus soldados nas areias da África. Como um rastilho de pólvora a parceria poético-musical Leip&Shultze começa correndo acesa, no idioma de Goethe, pelas trincheiras nazistas e aliadas, mas seu encantamento vai explodir também nos ouvidos dos soldados russos.

O rigor intelectual com que Frederico Füllgraf vasculhou e constatou, pela crítica documental de suas fontes, a autenticidade dos fatos, conduz o leitor pelos estranhos atalhos desse fantástico fenômeno musical, para nos apresentar uma admirável pesquisa sobre quase um século de vida do tão discutido poema-musical alemão. Seu ensaio envolve-nos com a história do um jovem soldado, saudoso da namorada, que lhe inspira, no campo de batalha, seus primeiros versos. Esse romântico enredo de guerra lembra o grande poema “Espera-me” que o poeta e dramaturgo russo Konstantin Simonov, escreveu, em 1941, no front de guerra contra os alemães à sua querida Valentina Serova. Traduzido para muitos idiomas, e para o português, com incomparável beleza lírica, por Hélio do  Soveral, Espera-me  ou Espera por mim é um dos mais conhecidos poemas da Rússia. A sensibilidade de Cleto de Assis escreveu a essência comovente dessa história no seu site Banco da Poesia:

https://cdeassis.wordpress.com/2009/06/19/poema-de-amor-e-guerra/

Abro aqui um parêntesis, fugindo do estrito significado musical do texto, para considerar as grandes motivações que o fenômeno da guerra tem trazido à criação poética e musical, propiciando produções ou veiculando versos de infinita beleza. Por certo a Ilíada e a Odisseia não existiriam sem a Guerra de Troia, nem a Itália teria seu grande poema épico se o início das Cruzadas não inspirasse Torquato Tasso a escrever Jerusalém Libertada. A Chanson d’Automne, de Paul  Verlaine, não seria tão conhecida se não fosse  enviada também por rádio, como uma senha, à Resistência Francesa anunciando o desembarque aliado na  Normandia e determinando o fim do Terceiro Reich, que pretendia durar mil anos. Que honra maior poderia ter um poema, abrindo com o lirismo e o suave encanto dos seus versos, as portas da liberdade do continente europeu dominado pelo nazismo?  E neste contexto as comparações se derivam para as canções que inspiraram a resistência revolucionária nas guerras civis que abalaram o mundo e se celebrizaram com o nome Marselhesa, na França revolucionária e como  Le chant des Partisans, entoado pela Resistência, na França invadida pelos exército alemão. Com o mesmo ardor  se cantava Se me quieres escribir e Viva la Quinta Brigada, na Guerra Civil Espanhola. E assim foi, ao som da Bandiera  Rossa e Bella Ciao na Itália,  Nicaragua Nicaraguita, cantada pelos sandinista, Venceremos, no Chile socialista, onde Viva Chile Mierda, de Fernando Alegria, foi o poema mais declamado durante o governo de Salvador Allende.  Aqui, no Brasil, a canção Caminhando, de Geraldo Vandré, foi o hino revolucionário com que a nação inteira  protestou, cantando, contra a ditadura militar.

Voltando à história sentimental do soldado Hans Leip e seu poema, e considerando a amplitude do texto, creio ser interessante repicar, neste comentário, alguns aspectos marcantes no longo artigo de Frederico Füllgraf.  Primeiramente o encanto musical das emissões diárias da “canção de um jovem sentinela” pela rádio de Belgrado, polarizando a longínqua atenção dos soldados alemães no norte da África. A transmissão, captada também na região pelos soldados britânicos, levou o orgulho militar inglês, sob o comando de Montgomery,  a criar uma sarcástica versão política de “Lilli Marleen” ironizando Hitler  e o partido nazista. O autor nos fala da canção na voz radiofônica da BBC e de meio milhão de discos vendidos, em 1944, na Inglaterra e sua versão adaptada para 50 idiomas. Detalha a biografia conturbada e trágica de Lale Andersen e depois sua turnê pela Coréia e Indochina.  A segunda grande intérprete da canção é Lucie Mannnheim, chegando enfim a Marlene Dietrich, que foi a mascote musical dos aliados correndo os Estados Unidos e a Europa com “Lilli Marleen” nos lábios e as grandes platéias aos seus pés. Os intérpretes da famosa canção se sucedem, no incrível caleidoscópio de informações – que transpiram normalmente por todos os neurônios do Frederico que conhecemos, – passando por Edith Piaf e Bing Crosby, e por interpretações contemporâneas  na voz da cantora francesa   Patrícia Kaas, comemorando, em 2005, os 60 anos do Dia “D”.

O texto, entre outras tantas revelações e curiosidades, traz uma passagem pitoresca envolvendo Winston Churchill e seu pesadelo com o General Rommel, em torno da sua preferência pela canção. Refere-se também a uma misteriosa versão judaica feita por Stefan Zweig. O ponto alto do texto é a referência a uma edição de 2006 do livro em que a autora, Lilly Freud Marlé,  sobrinha de Freud, revela ser a pessoa que inspirou Hans Leip a escrever o poema que gerou a composição musical “Lilli Marleen”, versão reiterada por outros descendentes de Freud.

Finalmente é surpreendente constatar que as sementes lançadas há noventa e cinco anos por um simples poema que se tornou canção, tenha se aberto em tantas flores musicais pelos idiomas do mundo inteiro, inclusive uma versão judaica de nome Lili, em homenagem à pára-quedista  Hannah Senesh, morta em Budapeste pela Gestapo,  e geram ainda, ano a ano, tantos frutos “saborosos” para a viúva de Leip e mantenham repletos os celeiros amoedados do compositor Norbert Schultze.

Parabenizando o autor pela dimensão crítica e historiográfica do seu trabalho,  ressalto as duas ironias genialmente bem colocadas: a primeira que “Lilli Marleen” foi a única contribuição dos nazistas para o mundo”. E a segunda ironizando a primeira: que uma musa judia seria a inspiradora da mais célebre canção nazista.

Lil Marleen – original em Alemão

Lili Marleen – versão em Inglês

Dia Nacional do Livro

Hoje, 29 de outubro, comemora-se o aniversário da Biblioteca Nacional, fundada por D. João VI em 1810, dois anos depois de haver chegado ao Brasil e fundado a Imprensa Régia. Nada mais justo, portanto, que o mesmo dia tenha sido consagrado ao Livro, apesar de nossa história não o ter adotado como elemento fundamental para o nosso desenvolvimento cultural. O Rei de Portugal, do Brasil e Algarves manteve severa censura à imprensa. Sob o selo da Imprensa Régia foi editado o primeiro livro no Brasil, “Marília de Dirceu”, de Tomás Antônio Gonzaga. É também fato a comemorar, pois o primogênito da imprensa brasileira foi um livro de poesia! Mas, além das publicações oficiais – inclusive um jornal denominado Gazeta do Rio de Janeiro – nada mais podia ser impresso sem autorização governamental. Mas havia dissidências: um exilado brasileiro, residente na Inglaterra, Hipólito José da Costa, lançou, em Londres, no dia 1 de junho de 1808, o Correio Braziliense, o primeiro jornal brasileiro, clandestino em sua chegada ao nosso país – apenas em outubro do mesmo ano, já que os correios e os transportes não eram tão eficientes. Uma curiosidade: seu editor proclama que o jornal fora criado para combater “os defeitos da administração do Brasil”, o que não é novidade para os brasileiros, passados mais de duzentos anos desse registro editorial. Não deixa de ser lamentável, também, o fato do Brasil só ter sentido o gosto da imprensa no início do Séc. XIX, enquanto outros países da América já a estavam desenvolvendo desde o Séc. XVI. Portanto, e o Livro e o Brasil? Castro Alves deveria ter escrito um poema com esse título, com o mesmo entusiasmo com que comemorou o nascimento da América e sua parceria histórica com o livro. Ou talvez não tenha encontrado razões para se entusiasmar, pois até um presidente que atravessou o portal do Séc. XXI já declarou, pelo menos em duas ocasiões, que não gosta de ler, porque a leitura lhe dá sono.

O certo é que o Livro, esse objeto ainda confeccionado em papel impresso, mas que já tem sucedâneos eletrônicos a pedir passagem, merece ser comemorado todos os dias, como o grande repositório do conhecimento e ferramenta indispensável n o progresso cultural.

Fazemos de Castro Alves o arauto dessa festa, na beleza de seus versos.

O Livro e a América

O Livro e a América - ilustração de Cleto de Assis

Talhado para as grandezas,
pra crescer, criar, subir,
p Novo Mundo nos músculos
sente a seiva do porvir.
— Estatuário de colossos —
cansado doutros esboços
disse um dia Jeová:
“Vai, Colombo, abre a cortina
da minha eterna oficina…
Tira a América de lá”.

Molhado inda do dilúvio,
qual Tritão descomunal,
o continente desperta
no concerto universal.
Dos oceanos em tropa
um — traz-lhe as artes da Europa,
outro — as bagas de Ceilão…
E os Andes petrificados,
como braços levantados,
lhe apontam para a amplidão.

Olhando em torno então brada:
“Tudo marcha!… Ó grande Deus!
As cataratas — pra terra,
as estrelas — para os céus.
Lá, do pólo sobre as plagas,
o seu rebanho de vagas
vai o mar apascentar…
Eu quero marchar com os ventos,
corn os mundos… co’os
firmamentos!!!”
E Deus responde — “Marchar!”

Marchar! … Mas como?…  Da Grécia
nos dóricos Partenons
a mil deuses levantando
mil marmóreos Panteons?…
Marchar co’a espada de Roma
— leoa de ruiva coma
de presa enorme no chão,
saciando o ódio profundo. . .
— Com as garras nas mãos do mundo,

— Com os dentes no coração?…
“Marchar!… Mas como a Alemanha
na tirania feudal,
levantando uma montanha
em cada uma catedral?…
Não!… Nem templos feitos de ossos,
nem gládios a cavar fossos
são degraus do progredir…
Lá brada César morrendo:
“No pugilato tremendo
quem sempre vence é o porvir!”

Filhos do sec’lo das luzes!
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes,
tereis um livro na mão:
O livro — esse audaz guerreiro
que conquista o mundo inteiro
sem nunca ter Waterloo…
Eólo de pensamentos,
que abrira a gruta dos ventos
donde a Igualdade vooul…

Por uma fatalidade
dessas que descem de além,
o sec’lo, que viu Colombo,
viu Guttenberg também.
Quando no tosco estaleiro
da Alemanha o velho obreiro
a ave da imprensa gerou…
O Genovês salta os mares…
Busca um ninho entre os palmares
e a pátria da imprensa achou…

Por isso na impaciência
desta sede de saber,
como as aves do deserto
as almas buscam beber…
Oh! Bendito o que semeia
livros… livros à mão cheia…
E manda o povo pensar!
O livro, caindo n’alma
é germe — que faz a palma,
é chuva — que faz o mar.

Vós, que o templo das idéias
largo — abris às multidões,
pra o batismo luminoso
das grandes revoluções,
agora que o trem de ferro
acorda o tigre no cerro
e espanta os caboclos nus,
fazei desse “rei dos ventos”
— Ginete dos pensamentos,
— Arauto da grande luz! …

Bravo! a quem salva o futuro
fecundando a multidão! …
Num poema amortalhada
nunca morre uma nação.
Como Goethe moribundo
brada “Luz!” o Novo Mundo
num brado de Briaréu…
Luz! pois, no vale e na serra…
que, se a luz rola na terra,
Deus colhe gênios no céu!…

Castro Alves  – 1847-1871

O que é Poesia? (1)

O nosso poeta Manoel de Andrade deixou momentaneamente a poesia em hibernação e mergulhou na prosa. Há vários meses se concentra em reunir memórias de sua peregrinação pelo Brasil e pela América Latina, quando assumiu um auto-exílio, na época do governo militar. Inconformado pela perda de um diário, em um dos últimos percursos de sua caminhada pelo continente, no qual registrava a memória daqueles dias de cavaleiro andante, Maneco (como o chamamos os amigos) tenta recuperar a riquíssima experiência em um livro de memórias com o título provisório de “O Bardo Errante”.
Recentemente, um blog de Portugal – Livres Pensantes, do Algarve –  descobriu seus poemas e passou a publicá-los, assim como artigos seus também publicados na rede. Feita a aproximação, M.A. cedeu um fragmento do livro ainda inédito, que pode ser lido aqui.

De certa maneira, podemos ver em Manoel de Andrade um lampejo de Telêmaco, filho de Ulisses, descrito por Homero também como alguém que andou “errante por muitas terras, viu as cidades de numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes; e, por sobre o mar, sofreu no seu coração aflições sem conta, no intento de” projetar sua voz em direção à liberdade e à solidariedade humana.

Cumprimentando-o por mais essa conquista de sua odisséia poética, fazemos uma homenagem com a publicação de um poema seu, ainda inédito na nuvem internética. Como numa sequencia ao post anterior, ele procura respostas para a eterna pergunta: o que é Poesia?

O que é a poesia…, meu irmão?

a Maria da Graça Andrade

A poesia, Gracinha
não é somente teu sonho
tua paixão de menina…
é a respiração suspensa
por tudo que desatina
é tua voz de criança
o abc que te ensina
a soletrar esperança
é a região proibida
para os que não sabem ver
é onde me despojo e morro
pra me sentir renascer.

A poesia, Gracinha
é cada grão que germina
é o corpo do camponês
inclinado sobre a terra
semeando a própria dor
são os ombros do proletário
suportando no salário
o peso imenso da vida.

A poesia, Gracinha
é o nosso maior pecado
é a flor que o homem pisa
neste mundo devastado
é tudo que agoniza
pelo nosso esquecimento
é nossa vida vivida
além deste eterno momento
é a fome de cada dia
protelada sempre em vão
é a própria sede da terra
sem a chuva de verão.

A poesia, Gracinha
está na raiz do amor
em toda coisa criada
e no ato do Criador
está no macho sobre a fêmea
no pólen gerando a flor
na jornada das abelhas
na flor transformada em mel
está no salto incontido
do filhote em busca do céu
no vôo da mariposa
latente numa crisálida.
Por traz da humana  crueza
a poesia, Gracinha
é o amor parindo a vida
no ventre da natureza.

A poesia, Gracinha
são teus olhos debruçados
numa aurora de verão
é o vulto da minha dor
boiando na solidão
é minha infância num tempo
que o rio escorreu pro mar
é o amor feito  lenha
ardendo no teu olhar
é a rubra flor do teu corpo
desabrochando o desejo
a inocência transformada
numa árvore de beijos
é o lirismo que assoma
no rosto da minha amada
quando meu canto ilumina
os passos da madrugada
é o nosso olhar batendo
nos olhos de quem se amou
a vida buscando a gente
no que a saudade deixou.

A poesia, Gracinha
é minha forma de morrer
quando tenho que cantar
toda dor que me transtorna
é a angústia de te dar
meu canto desfigurado
pelo áspero fardo de dor
que amarga meu sorriso
ao sentir que desfaleço
quando contemplo meu povo
com suas mãos algemadas
caminhando para o abismo
nesta pátria engatilhada
é este jeito de sentir
minha dor multiplicada
pela fé que não me mude
quando o asfalto se mancha
com o sangue da juventude.

A poesia, Gracinha
é o delírio de ver
o homem ensaiar tão alto
a dimensão do seu salto
e a tristeza de saber
que embaixo tanto lhe falta
tornando assim prematura
a vertigem  do astronauta.

A poesia, Gracinha
é uma canção operária
trabalhando solitária
na reconstrução do homem.
É a palavra feita canto
o canto feito esperança
de todo pão repartido
no gesto amplo e fraterno
de um tempo enfim ressurgido.

A poesia, Gracinha
se a mim cabe definir…
é o clarim que anuncia
ao homem que ainda um dia
cansado dos seus enganos
despertará comovido
garimpando atrás dos anos
a fala imensa do amor.

A poesia, eu te digo,
é o gesto dilatado
de toda mão estendida
é o doce sabor dos frutos
a face amarga do mundo
a eterna canção da vida.

Curitiba, outubro de 1968
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Iustração: C. de A.

Novamente, o Nobel de Literatura de 2011

O Banco da Poesia já publicou a notícia da premiação do Nobel de Literatura de 2001 (veja aqui), destinada ao poeta sueco Tomas Traströmer. A repersussão do prêmio, no Brasil, foi mínima, embora seja importante destacar que foi um porta a mercê-lo, entre tantos escritores de renome na literatura universal contemporânea.

Vamos dar um repeteco, com um artigo publicado na Espanha, onde seus versos são mais conhecidos, pois já existem algumas traduções feita no idioma de Cervantes.

Primeiro poeta sueco em receber um Nobel de Literatura

Entre os nominados ao premio se encontrava Murakami*, um autor que, mesmo com muitos admiradores, tem vários inimigos entre os críticos, que crêem que o único que lhe favoreceu como autor foi haver nascido em uma época propensa, mas que deixa muito a desejar, no sentido literário.
Além dessa – e realmente uma das nominações mais surpreendentes – foi a de Bob Dylan**, um cantor norte-americano de muito prestígio, mas cuja lírica não pode, nem de começo, competir com a de Trastömer e de tantos outros poetas contemporâneos.

Tomas Traströmer nasceu em15 de abril de 1931 na cidade de Estocolmo, a capital da Suécia. Desde muito jovem se vinculou com as letras, chegando a converter-se em um importante poeta em sua terra.

Em 1990 sofreu um acidente vascular que lhe tirou grande parte de sua motricidade e afetou  consideravelmente sua capacidade de falar. O poeta assegurou, em reiteradas entrevistas, que graças à poesia e à música pode superar esse momento crucial e doloroso em sua existência.

Metáforas para entender a realidade

A poesia de Trastömer se caracteriza por apresentar a realidade de uma forma metafórica, porém sumamente acessível. O faz de uma maneira tão clara e espontânea que permite uma leitura amena, mas não pouco profunda. Em poucas palavras, sua obra ajuda a entender o mundo através de imagens, cores e, sobretudo, sons.

Na obra de Trastömer se pode apreciar un compromisso comparável com qualquer poeta ou escritor europeu de seu tempo: uma necessidade que chega a converter-se em obsessão por conseguir reconstruir uma realidade feita em pedaços, com as consequências da Segunda Guerra Mundial.

Em sua obra “Los recuerdos me miran” (As recordações me olham), Trastömer deixa que as páginas se impregnem de memória, de inventadas histórias que habitam em seu interior, de seres que preencheram sua existência e agora já não estão, de fantasmas…

Numa manhã de junho é muito cedo
para despertar, mas tarde para dormir de novo.
Devo ir à relva que está cheia
de recordações, que me seguem com o olhar.
Não se veem, misturam-se completamente
com o fundo, camaleões perfeitos.
Tão perto que os escuto respirar
apesar do estridente canto dos pássaros.

O artista que há em Trastömer

De qualquer maneira,  estamos não somente frente a um grande poeta e escritor, mas também diante de um artista em corpo e alma, que sabe tocar o piano e tem uma conexão muito forte com a música em geral.

Por outro lado, ele colaborou, como psicólogo, em uma instituição de internação de menores em Roxtuna, colaborando com a reaproximação desses jovens à realidade, em uma tentativa de entregar-lhes formas novas de encarar e ver a vida e de entender as relações que os seres humanos estabelecemos com a própria realidade.

Em razão de provir de um país cuja língua  não é de todo universal, a poesia de Tranströmer não é muito conhecida. Entretanto, ele foi galardoado com o Nobel, pois seu trabalho não poderia passar despercebido.

Este poeta é um verdadeiro apaixonado pela arte da escritura e a prova clara disto é que, em seguida a seu acidente, no qual perdeu a fala e muitas de suas faculdades motoras, Trastömer aprendeu a escrever com a mão esquerda, para não cessar seu trabalho, para não abandonar aquilo que amava, uma das razões que lhe permitia existir.

Dissidências sobre a entrega do Nobel

A concessão do Nobel de Literatura a Tomas deu muito o que falar. Muitos meios de comunicação se colocaram totalmente contra a entregado prêmio, posto que ele não é, na verdade, um poeta conhecido internacionalmente. No entanto, muitos opinam que foi uma premiação acertada.

De vez em quando é bom que a Academia Sueca atenda nomes de bonss escritores e poetas, mesmo que não sejam mediáticos, pois por experiencia sabemos que não necessariamente os mais lidos são os melhores.

Além disso, oreconhecimento de Trastörmer põe em evidencia que existem muitos nomres, alguns como o seu, pouco conhecidos forra de seu país, e outros no mais absoluto anonimato, que têm algo para oferecer e que merecem nosso reconhecimento. (Por Téxil Gardey, redatora do site Poemas del Alma, Espanha)

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* Haruki Murakami (12 de janeiro de 1949), escritor e tradutor japonês.
** Bob Dylan ( 24 de maio de 1941), músico, cantor, compositor, poeta e pintor norte-americano. (notas do Banco da Poesia)

Hélio de Freitas Puglielli: biopoética de Brecht

Visita ilustre: veio até o Banco da Poesia Hélio de Freitas Puglielli, correntista que há muito não comparecia. Trouxe mais depósitos, capeados por simpático recado: ” Querido Cleto, salve! Andei uns tempos fora de órbita, mas agora estou gravitando em torno do seu Banco de Poesia, que está excelente e super atualizado. Admirei, entre outros tópicos, a oportuna tradução e publicação de versos do prêmio Nobel de Literatura 2011, o que, nos velhos tempos da influência francesa, chamava-se de ‘morceaux choisies’ (trechos escolhidos). Também vi que, em 30 de setembro, você rendeu homenagem a Brecht, a quem admiro imensamente. Tanto que havia escrito, tempos atrás, uma espécie de ‘mini-biografia poetizada’. Sei que a sua ‘carteira de depósitos’ está sobrecarregada, mas, se houver espaço e apesar da greve, meu texto aí está.”

E seu texto, sempre bem-vindo, aqui vai.

Olhando Bert Brecht

Em 1927 você foi fotografado por Konrad Ressler.
Era jovem de menos de 30 anos,
mas já tinha três filhos com três mulheres
e estava legalizando a separação com Marianne Zoff
(a primeira com que casou, a segunda que fez mãe).
Disso nada falam o nariz reto,
um pouco arrebitado,
e o olhar sereno e altivo.
O pai de Frank, Hanne e Stefan
sorri levemente,
apesar da tensão dos lábios em torno do charuto.
Veste sobretudo de couro negro, abotoado até o pescoço,
como pressentindo que logo ficaria de luto pela Alemanha
e por si mesmo.
Na aparência olha para frente,
mas as pupilas infletem minimamente para baixo,
o suficiente para dar a impressão de que sua visão defronta-se com a História.
E os ventos da História em seguida te arrastaram pela Europa,
Dinamarca, Finlândia, Suíça, Áustria, Checoslováquia,
até atravessar a URSS e chegar ao porto de Vladivostok,
onde, singrando o Pacífico, o navio te levou aos EUA.
E agora te reencontro, na foto de Gerda Goedhartd,
um homem de 55 anos,
que do jovem só conserva a testa e as espessas sobrancelhas.
O nariz como que se abateu sobre si mesmo,
marcado pelas bochechas fofas e as asas gordas das narinas.
Há um charuto nos lábios,
mas tornou-se necessário o indicador em anzol para também sustentá-lo.
A fisionomia triste fala das vicissitudes em Hollywood,
das entrevistas com os inquisidores à cata de comunistas nacionais e estrangeiros.
Mas o olhar acabrunhado deve refletir a morte do filho Frank,
um dos tantos que tombaram nos campos gelados da Europa Oriental.
Hitler conseguiu matar seu filho, um entre tantos milhões de jovens alemães
amortalhados nos campos de batalha.
Bert Brecht, que sempre lutou pela paz e a justiça,
suga amargamente o indefectível charuto.
Houve certamente a alegria de voltar a Berlim e montar suas peças.
Elas foram encenadas e premiadas também na Europa Ocidental e nos EUA.
Essa alegria você teve em vida,
talvez como compensação ao dissabor de ver que a RDA não era bem a dos teus sonhos.
Mas Brecht, que se preocupava demais com a humanidade e o futuro,
está triste e pensativo na foto de 1953.
Três anos mais tarde estaria livre de todas preocupações
e a nós compete fazer com que seus textos, sim, não morram,
pois sempre haverá alguém assim para defender a dignidade de todos os homens.

Helio de Freitas Puglielli

Ilustração: montagem de C. de A. sobre fotos de Konrad Ressler e Gerda Goedhartd

E o Nobel de Literatura de 2011 vai para… Poesia!

Poeta sueco ganha o Nobel de Literatura

Foto: Sophie Bassouls

Tomas Tranströmer nasceu em Estocolmo, Suécia, em 15 de abril de 1931. Frequentou a Universidade de Estocolmo, onde estudou psicologia e poesia. Considerado um dos poetas mais importantes da Suécia, Tranströmer já vendeu milhares de volumes em seu país natal e sua obra foi traduzida para mais de cinquenta línguas. Seus livros de poesia em Inglês incluem The Sorrow Gondola (Green Integer, 2010); New Collected Poems (Livros Bloodaxe, 2011); The Great Enigma; New Collected Poems (New Directions, 2003); The Half-Finished Sky (2001); New Collected Poems (1997); For the Living and the Dead (1995); Baltics (1974); Paths (1973); Windows and Stones (1972, e Seventeen Poems (1954).

Seu trabalho mudou gradualmente da tradicional e ambiciosa poesia sobre a natureza, escrita em seus primeiros vinte anos, em direção de um verso mais obscuro, pessoal e mais aberto. Seus poemas se dirigem para o vazio, no esforço de entender e lidar com o desconhecido, em busca de transcendência.
“Eu sou o lugar / onde a criação trabalha por si mesma”, declara em seu poema The Outpost, sobre a qual escreveu “Esse tipo de idéia religiosa recorre aqui e ali, em meus últimos poemas, no que eu vejo uma espécie de significado em estar presente, no uso da realidade, em experimentá-la, em fazer algo dela. ”

Tranströmer é o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2011. Suas outras honrarias e prêmios incluem o Prêmio Literário Aftonbladets, o Prêmio de Poesia Bonnier, o Prêmio Neustadt International de Literatura, o Prêmio Oevralids, o Prêmio Petrach, na Alemanha, e o Prémio da Suécia do Fórum Internacional de Poesia.

Lecionou em muitas universidades norte-americanas, muitas vezes com o poeta e amigo Robert Bly. Tranströmer é um respeitado psicólogo e já trabalhou em uma prisão juvenil, com viciados em drogas. Ele vive com sua esposa Monica em Vasteras, a oeste de Estocolmo. Tranströmer sofreu um acidente cérebro-vascular em 1990 que o deixou parcialmente paralisado e incapaz de falar. No entanto, continuou a escrever e a publicar seus trabalhos até os primeiros anos deste Século. Seu último trabalho original, The Great Enigma, foi publicado em 2004. Desde então, deixou de escrever. Mas não abandonou a arte: também pianista, ainda consegue tocar, embora com apenas uma das mãos.
Tranströmer não tem, até agora, sua obra publicada no Brasil. Com a notícia do prêmio, a Biblioteca Nacional publicou hoje, em seu site (http://www.bn.br/portal/) notícia que a sua coleção Poesia Sempre, de nº 25, publicou hai-kais de autoria do poeta sueco, com tradução de Marta Magalhães de Andrade.
Abaixo, três das onze estrofes publicadas, conforme divulgação da BN,

Os fios elétricos
estendidos por onde o frio reina
Ao norte de toda música

O sol branco
treina correndo solitário para
a montanha azul da morte

Temos que viver
com a relva pequena
e o riso dos porões

Para não deixar de apresentar o novo Nobel de Literatura aos leitores do Banco da Poesia, ousei recolher alguns poemas publicados em Espanhol e os traduzi para nossa língua. Espero que essas versões, em razão da triangulação idiomática, não tenham se distanciado em excesso da poesia de seu autor. Os três poemas pertencem a seu livro Sorgegondolen, Ed. Bonniers, Estocolmo, 1996 ( traduzido para o Espanhol como Góndola Fúnebre).

Amor e silêncio

A primavera jaz deserta.
A vala, escura como veludo
se arrasta junto a mim
sem espelhismos.

Somente irradiam
as flores amarelas.

Sou levado em minha sombra
como um violino
em sua caixa negra.

O único que quero dizer
reluz fora de alcance
como a prataria
na casa de penhores.

 O reino da inseguridade


A chefe do escritório se inclina e traça uma cruz
e oscilam seus brincos como espadas de Dâmocles.

Assim como a frágil borboleta se faz invisível no solo
conflui o demônio com o diário aberto.

Um capacete que  ninguém conduz tomou o poder.
A tartaruga-mãe foge voando sob a água.

Folha de livro noturno

Em uma noite de maio aterrizei
em um frio luar
em que a erva e as flores eram grises
mas seu aroma, verde.

Resvalei costas acima
na noite daltônica
enquanto as pedras brancas
assinalavam a lua.

Um espaçotempo
de alguns minutos
cinquenta e oito anos de largura.

E atrás de mim
além das águas reluzentes qual chumbo
estavam a outra costa
e os poderosos.

Gentes com futuro
em vez de rosto.

Ilustrações: c. de assis