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Frederico Füllgraf & Lili Marleen, a repercussão

O escritor, tradutor e roteirista Frederico Füllgraf, que felizmente habita entre nós, fez longa pesquisa sobre o mito de Lili Marleen, mais conhecida entre nós, na segunda guerra Mundial, como Lili Marlene, título de uma canção nazista que contagiou os soldados de todas as nações – amigas e inimigas – envolvidas naquele conflito, inclusive os brasileiros. Seu trabalho foi ricamente comentado pelo também nosso amigo Manoel de Andrade, merecidamente reproduzido no blog do jornalista Luiz Nassif. Vamos igualmente reproduzir a análise de Manoel, na qual ele realça a grande ironia criada por aquela canção: descobriu-se, mais tarde, que a musa que a inspirou era judia… Se você gostar do aperitivo de Manoel de Andrade, beba a água na fonte: acesse o Fulfrafianas e leia o trabalho de Frederico, dividido em três partes – (1-3), (2-3) e (3-3). Vale a pena. E após degiustar o apweritivo e o prato principal, veja e ecute, como sobremesa, as versões de Lili Marleen, em Alemão e Inglês, cantadas por Marlene Dietrich.

Sobre a Lilli Marleen de Frederico

Por Manoel de Andrade, poeta e ensaísta

Eu já tinha ouvido “Lilli Marleen” na voz de Marlene Dietrich, mas não imaginava que aquele poema, transformado em música, tivesse uma trajetória tão fantástica e nem que Hans Leip tivesse sido um escritor tão fecundo. Quantos vultos famosos da história europeia estiveram, direta ou indiretamente, relacionados com essa célebre canção!!! A  interculturalidade com que o texto é escrito leva-nos a caminhar pelos fronts históricos e geográficos da Segunda Grande Guerra, bem como pelos seus bastidores,  chocando-nos com o terror da censura nazista sobre a cultura. Era a ironia da própria guerra trazendo, depois do bombardeiro alemão de Belgrado, o som radiofônico de uma canção ouvida e apreciada, a despeito da proibição de Goebbels, pelo prestígio do General  Rommel e seus soldados nas areias da África. Como um rastilho de pólvora a parceria poético-musical Leip&Shultze começa correndo acesa, no idioma de Goethe, pelas trincheiras nazistas e aliadas, mas seu encantamento vai explodir também nos ouvidos dos soldados russos.

O rigor intelectual com que Frederico Füllgraf vasculhou e constatou, pela crítica documental de suas fontes, a autenticidade dos fatos, conduz o leitor pelos estranhos atalhos desse fantástico fenômeno musical, para nos apresentar uma admirável pesquisa sobre quase um século de vida do tão discutido poema-musical alemão. Seu ensaio envolve-nos com a história do um jovem soldado, saudoso da namorada, que lhe inspira, no campo de batalha, seus primeiros versos. Esse romântico enredo de guerra lembra o grande poema “Espera-me” que o poeta e dramaturgo russo Konstantin Simonov, escreveu, em 1941, no front de guerra contra os alemães à sua querida Valentina Serova. Traduzido para muitos idiomas, e para o português, com incomparável beleza lírica, por Hélio do  Soveral, Espera-me  ou Espera por mim é um dos mais conhecidos poemas da Rússia. A sensibilidade de Cleto de Assis escreveu a essência comovente dessa história no seu site Banco da Poesia:

https://cdeassis.wordpress.com/2009/06/19/poema-de-amor-e-guerra/

Abro aqui um parêntesis, fugindo do estrito significado musical do texto, para considerar as grandes motivações que o fenômeno da guerra tem trazido à criação poética e musical, propiciando produções ou veiculando versos de infinita beleza. Por certo a Ilíada e a Odisseia não existiriam sem a Guerra de Troia, nem a Itália teria seu grande poema épico se o início das Cruzadas não inspirasse Torquato Tasso a escrever Jerusalém Libertada. A Chanson d’Automne, de Paul  Verlaine, não seria tão conhecida se não fosse  enviada também por rádio, como uma senha, à Resistência Francesa anunciando o desembarque aliado na  Normandia e determinando o fim do Terceiro Reich, que pretendia durar mil anos. Que honra maior poderia ter um poema, abrindo com o lirismo e o suave encanto dos seus versos, as portas da liberdade do continente europeu dominado pelo nazismo?  E neste contexto as comparações se derivam para as canções que inspiraram a resistência revolucionária nas guerras civis que abalaram o mundo e se celebrizaram com o nome Marselhesa, na França revolucionária e como  Le chant des Partisans, entoado pela Resistência, na França invadida pelos exército alemão. Com o mesmo ardor  se cantava Se me quieres escribir e Viva la Quinta Brigada, na Guerra Civil Espanhola. E assim foi, ao som da Bandiera  Rossa e Bella Ciao na Itália,  Nicaragua Nicaraguita, cantada pelos sandinista, Venceremos, no Chile socialista, onde Viva Chile Mierda, de Fernando Alegria, foi o poema mais declamado durante o governo de Salvador Allende.  Aqui, no Brasil, a canção Caminhando, de Geraldo Vandré, foi o hino revolucionário com que a nação inteira  protestou, cantando, contra a ditadura militar.

Voltando à história sentimental do soldado Hans Leip e seu poema, e considerando a amplitude do texto, creio ser interessante repicar, neste comentário, alguns aspectos marcantes no longo artigo de Frederico Füllgraf.  Primeiramente o encanto musical das emissões diárias da “canção de um jovem sentinela” pela rádio de Belgrado, polarizando a longínqua atenção dos soldados alemães no norte da África. A transmissão, captada também na região pelos soldados britânicos, levou o orgulho militar inglês, sob o comando de Montgomery,  a criar uma sarcástica versão política de “Lilli Marleen” ironizando Hitler  e o partido nazista. O autor nos fala da canção na voz radiofônica da BBC e de meio milhão de discos vendidos, em 1944, na Inglaterra e sua versão adaptada para 50 idiomas. Detalha a biografia conturbada e trágica de Lale Andersen e depois sua turnê pela Coréia e Indochina.  A segunda grande intérprete da canção é Lucie Mannnheim, chegando enfim a Marlene Dietrich, que foi a mascote musical dos aliados correndo os Estados Unidos e a Europa com “Lilli Marleen” nos lábios e as grandes platéias aos seus pés. Os intérpretes da famosa canção se sucedem, no incrível caleidoscópio de informações – que transpiram normalmente por todos os neurônios do Frederico que conhecemos, – passando por Edith Piaf e Bing Crosby, e por interpretações contemporâneas  na voz da cantora francesa   Patrícia Kaas, comemorando, em 2005, os 60 anos do Dia “D”.

O texto, entre outras tantas revelações e curiosidades, traz uma passagem pitoresca envolvendo Winston Churchill e seu pesadelo com o General Rommel, em torno da sua preferência pela canção. Refere-se também a uma misteriosa versão judaica feita por Stefan Zweig. O ponto alto do texto é a referência a uma edição de 2006 do livro em que a autora, Lilly Freud Marlé,  sobrinha de Freud, revela ser a pessoa que inspirou Hans Leip a escrever o poema que gerou a composição musical “Lilli Marleen”, versão reiterada por outros descendentes de Freud.

Finalmente é surpreendente constatar que as sementes lançadas há noventa e cinco anos por um simples poema que se tornou canção, tenha se aberto em tantas flores musicais pelos idiomas do mundo inteiro, inclusive uma versão judaica de nome Lili, em homenagem à pára-quedista  Hannah Senesh, morta em Budapeste pela Gestapo,  e geram ainda, ano a ano, tantos frutos “saborosos” para a viúva de Leip e mantenham repletos os celeiros amoedados do compositor Norbert Schultze.

Parabenizando o autor pela dimensão crítica e historiográfica do seu trabalho,  ressalto as duas ironias genialmente bem colocadas: a primeira que “Lilli Marleen” foi a única contribuição dos nazistas para o mundo”. E a segunda ironizando a primeira: que uma musa judia seria a inspiradora da mais célebre canção nazista.

Lil Marleen – original em Alemão

Lili Marleen – versão em Inglês

Poema de amor e guerra

KSimonovKonstantin Simonov, poeta, escritor e dramaturgo russo, nasceu em novembro de 1915 na cidade de São Petersbugo (Petrogrado, de 1914 a 1924, e Leningrado, de 1924 a 1991). Em 1931 a sua família mudou-se para Moscou e  Konstantin começou a trabalhar como mecânico numa fábrica. Os primeiros poemas surgem nessa época, publicados em alguns jornais moscovitas. Entra para o Instituto Gorki de Literatura, interrompendo os estudos para cumprir serviço militar como correspondente de guerra. Escreve peças de teatro, romances, reportagens e livros de poemas inspirados na temática da guerra. Depois da guerra, ocupou alguns cargos importantes que abandonou para se dedicar por inteiro à sua obra. Morreu em Moscou no dia 28 de Agosto de 1979.

serova_1Espera por mim, de sua autoria, é um dos mais conhecidos poemas russos. Foi escrito em 1941, logo após a invasão de Hitler na Rússia. No verão daquele ano, Simonov tinha 25 anos e, apesar das suas origens aristocráticas, já era um bem sucedido poeta e dramaturgo soviético. Ele era apaixonado pela jovem atriz Valentina Serova. Quando Hitler atacou, Simonov recebeu ordens imediatas para avançar para a frente como correspondente de guerra. Valentina esteve com ele na estação.

O comboio da tropa levou-o para oeste, em direção à fronteira, como ele imaginava. Mas as tropas alemãs já haviam penetrado na Rússia e o trem nunca chegou a seu destino. Durante horas, Simonov foi exposto à brutal e caótica realidade da guerra. Simonv pensou que não iria sobreviver.

Simonov casou-se com Valentina em 1943. Mas não foram felizes, como poemas posteriores registraram. A personalidade volúvel de Valentina decepcionou Simonov e eles se separaram em 1957. Seus poemas subsequentes continuaram a história de um jovem homem exposto simultaneamente a todos os perigos da guerra, a uma paixão e, finalmente, a um infeliz caso de amor – e à súbita e dramática elevação como celebridade nacional.

O poema de Konstantin Simonov (em outras versões também intitulado Espera por mim) é aqui publicado por sugestão de nosso amigo e colaborador Manoel de Andrade.

Espera-me

xxxxxxxxxxxxxA Valentina Serova

EsperaPorMim
Espera-me. Até quando, não sei.
Um dia, voltarei.
Espera-me pelas manhãs vazias,
nas tardes longas e nas noites frias,
e, outra vez, quando o calor voltar.
Ai, nunca deixes de me esperar!
Espera-me, ainda que, aos portais,
as minhas cartas já não cheguem mais.
Ainda que o Ontem seja esquecido
e o Amanhã já não tiver sentido.
Espera-me depois que, no meu lar,
todos se cansem de me esperar.
Até que o meu cachorro e o meu jardim
não mais estejam a esperar por mim!

Espera-me. Até quando, não sei.
Um dia, voltarei.
Não dês ouvidos nunca, por favor,
àqueles que te dizem que o amor
não poderá os mortos reviver
e que é chegado o tempo de esquecer.
Espera-me, ainda que os meus pais
acreditem que eu não existo mais.
Deixa que o meu irmão e o meu amigo
lembrem que, um dia, brincaram comigo
e, sentados em frente da lareira,
suponham que acabou a brincadeira…

Deixa-os beberem seus vinhos amargos
e, magoados, sombrios, em gestos largos,
falarem de Heroísmo ou de Glória,
erguendo vivas à minha memória.
Espera-me tranquila, sem sofrer.
Não te sentes, também, para beber!

Espera-me. Até quando, não sei.
Um dia, voltarei.
Esperando-me, tu serás mais forte;
sendo esperado, eu vencerei a morte.
Sei que aqueles que não me esperaram
–  que gastaram o amor e não amaram –
suspirando, talvez digam de mim:
“Pobre soldado! Foi melhor assim!”
esses, que nada sabem esperar,
não poderão jamais imaginar
que das chamas eternas me salvaste
simplesmente porque me esperaste!

Só nós dois sabemos o sentido
de alguém poder morrer sem ter morrido!
Foi porque tu, puríssima criança,
tu me esperaste além da esperança,
para aquilo que eu fui e ainda sou,
como nunca, ninguém, me esperou!

xxxxxxxxxxxxxTradução de Hélio do Soveral

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helio do soveralHélio do Soveral Rodrigues de Oliveira Trigo, mais conhecido como Hélio do Soveral , nasceu em Setúbal, Portugal, em 1918, e faleceu a 21 de março de 2001, em Brasília.Foi radialista e escritor infanto-juvenil brasileiro. Hoje não é lembrado nem reconhecido, mas publicou dezenas de livros que se tornaram muito populares nas décadas de 1970 e 1980. É dele a tradução do poema Espera-me para o Português. Sua versão é provavelmente a melhor publicada em nossa língua.