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Os poetas não morrem

Mario_Benedetti_1Os poetas perseguem o sonho e a eternidade, o maior dos sonhos. A música é arte universal, cósmica e a seus autores pertencem somente os traços de estilo. As artes visuais remetem às formas e cores da natureza, de quando em quando pinceladas de um momento fixado pelo artista. O escritor também descreve fatos e fados, distanciando-se do que ele mesmo é, a não ser também por lampejos estilísticos e latejos da alma.

Já o poeta fala por si mesmo. Quando lemos um poema de Homero, em sua grandiloqüência histórica, ou os versos de Pessoa, mais introvertidos, não vemos ali apenas palavras soltas, mas reflexos da alma dos autores, que foram ao fundo de suas consciências e inconsciências para recompor o belo das letras e dos sons das palavras. Se na Ilíada ou na Odisséia seguimos Homero a contar a história de seus heróis, é Homero que nos fala, presente, altissonante.

Morreu Mario Benedetti, dizem os jornais. Cessou a respiração física de um dos maiores poetas latino-americanos. Mas o respirar poético, o pulsar do coração anímico jamais cessará. Suas palavras ecoarão com maior intensidade, mesmo que suas mãos já não possam escrever versos novos. Seus 89 anos dedicados à literatura, à poesia e, sobretudo, à ânsia pela justiça social, bem justificam uma vida bem vivida e, agora, coroada com sua ascensão à galeria dos poetas universais.

Porque cantam os poetas

Talvez para eternizar-se, como refletimos acima. Mas Benedetti buscava por razões mais sólidas. Assim como o nosso Manoel de Andrade, ao inspirar-se no poeta uruguaio para fazer a mesma reflexão, em poema homônimo de  alguns anos atrás. Em homenagem ao poeta que se despediu da vida física, publicamos os dois poemas. Em seguida, um resumo biográfico de Mário Benedetti, que, a partir de hoje, está também em nossa Biblioteca Virtual:  https://cdeassis.wordpress.com/biblioteca-virtual-de-poesia/ (C. de A.)

Por qué cantamos

Si cada hora viene con su muerte
si el tiempo es una cueva de ladrones
los aires ya no son los buenos aires
la vida es nada más que un blanco móvil

Usted preguntará por qué cantamos

Si nuestros bravos quedan sin abrazo
la patria se nos muere de tristeza
y el corazón del hombre se hace añicos
antes aún que explote la vergüenza

Usted preguntará por qué cantamos

Si estamos lejos como un horizonte
si allá  quedaron árbores y cielo
Si cada noche es siempre alguna ausencia
y cada despertar un desencuentro

Usted preguntará por qué cantamos

Cantamos porque el río está sonando
y cuando suena el río / suena el río
cantamos porque el cruel no tiene nombre
y en cambio tiene nombre su destino

Cantamos por el niño y porque todo
y porque algún futuro y porque el pueblo
cantamos porque los sobrevivientes
y nuestros muertos quieren que cantemos

Cantamos porque el grito no es bastante
y no es bastante el llanto ni la bronca
cantamos porque creemos en la gente
y porque venceremos la derrota

Cantamos porque el sol nos reconoce
y porque el campo huele a primavera
y porque en este tallo en aquel fruto
cada pregunta tiene su respuesta

Cantamos porque llueve sobre el surco
y somos militantes de la vida
y porque no podemos ni queremos
dejar que la canción se haga ceniza.

(De Retratos y Canciones)
PorQueCantamos

Por que cantamos

(versão em Português – tradutor não localizado)

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

Você perguntará por que cantamos

Se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

Você perguntará por que cantamos

Se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

Você perguntará por que cantamos

Cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

Cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

Cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

Cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

Cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.

“Por que cantamos”

de Manoel Andrade

para Mario Benedetti(*)

manoel-de-andrade-foto-dele-img_7355Se tantas balas perdidas cruzam nosso espaço
e já são tantos os  caídos nesta guerra…
Se há uma possível emboscada em cada esquina
e  temos que caminhar num chão minado…

“você perguntará  por que  cantamos”

Se a violência sitia os nossos atos
e a corrupção gargalha da justiça…
Se respiramos esse ar abominável
impotentes diante do deboche…

“você perguntará por que cantamos”

Se o medo  está  tatuado em nossa agenda
e a perplexidade estampada em nosso olhar…
Se há um mantra entoado no silêncio
e as lágrimas repetem: até quando, até quando, até quando…

“você perguntará  por que cantamos”

Cantamos porque uma lei maior sustenta a vida
e porque um olhar ampara os nossos passos.
Cantamos porque há uma partícula de luz no túnel da maldade
e porque nesse embate só o amor é invencível.

Cantamos porque é imprescindível dar as mãos
e recompor, em cada dia, a condição humana.
Cantamos porque a paz é uma bandeira solitária
a espera de um punho inumerável.

Cantamos porque o pânico não retardará a primavera
e porque em cada amanhecer as sombras batem em retirada.
Cantamos porque a luz se redesenha em cada aurora
e porque as estrelas e porque as rosas.

Cantamos porque nos riachos e lá na fonte as águas cantam
e porque toda essa dor desaguará um dia.
Cantamos porque no trigal o grão amadurece
e porque a seiva cumprirá o seu destino.

Cantamos porque os pássaros estão piando
e ninguém poderá silenciar seu canto.
Cantamos para saudar o Criador e a criatura
e porque alguém está parindo neste instante.

Pelo encanto de cantar e pela esperança nós cantamos
e porque a utopia persiste a despeito da descrença.
Cantamos porque nessa trincheira global, nessa ribalta
nossa canção viverá para dizer por que cantamos.

Cantamos porque somos os trovadores desse impasse
e porque a poesia tem um pacto com a beleza.
E porque nesse verso ou nalgum lugar deste universo
o nosso sonho floresce deslumbrante.

Curitiba, maio de 2003
(*)  Escrevi  estes  versos motivado pelo belíssimo  poema  “Por qué cantamos”,  do poeta uruguaio Mario Benedetti. Num tempo em que todos caminhamos sobre o “fio da navalha”, me senti, como poeta,  implicitamente convocado a  também  testemunhar  por que cantamos. (Manoel de Andrade)

Súmula biográfica


don-mario-benedettiMario Benedetti nasceu em Paso de los Toros (Tacuarembó, Uruguay) no dia 14 de setembro de 1920. Educou-se no Colégio Alemão de Montevidéu e no Liceu Miranda, e trabalhou como vendedor, taquígrafo, contabilista, funcionário público e jornalista. Entre 1938 e 1941 residiu quase continuadamente em Buenos Aires e, em 1945, de regresso a Montevidéu, se integrou na redação do célebre semanário Marcha.  Ali se forma como jornalista, junto a Caros Quijano, e fez parte de sua equipe até 1974, com o encerramento da publicação. Naquele mesmo ano de1945, publica seu primeiro livro de poemas, La víspera indeleble, que não foi reeditado.

Depois do lançamento de sua primeira obra ensaística, Peripecia y novela, (1948) siguiu, em 1949, seu primeiro livro de contos, Esta mañana, e, um ano mais tarde, os poemas de Sólo mientras tanto. Em 1953, aparece Quién de nosotros, sua primeira novela, mas é o volume de contos Montevideanos (1959) – nos quais tomam forma as principais características da narrativa de Benedetti – o que supôs sua consagração como escritor. Com sua seguinte novela, La tregua (1960), Benedetti adquire projeção internacional: a obra teve mais de uma centena de edições, foi traduzida em dezenove idiomas e levada ao cinema, ao teatro, à rádio e à televisão.

Por razões políticas, teve que abandonar seu país em 1973, iniciando, assim, um longo exílio de doze anos, que o levou a residir na Argentina, no Peru, em Cuba e na Espanha, e que deu lugar também a esse processo por ele batizado como desexílio: uma experiência com marcas tão profundas tanto no vital como no literário.

Sua ampla produção literária abarca todos os gêneros, inclusive famosas letras de canções, e soma mais de setenta obras.  Entre elas se destacam suas recopilações poéticas Inventario e Inventario Dos, o ensaio El escritor latinoamericano y la revolución posible (1974), os contos de La muerte y otras sorpresas (1968), Con y sin nostalgia (1977) e Geografías (1984), as novelas Gracias por el fuego (1965) e Primavera con una esquina rota, que, em 1987, recebeu o Prêmio Chama de Ouro, da Anistia Internacional, assim como a extraordinária novela em verso El cumpleaños de Juan Ángel.

Seus livros mais recentes são Despistes y franquezas (1990), Las soledades de Babel (1991), La borra del café (1992), Perplejidades de fin de siglo (1993) e sua mais recente novela Andamios (1996). Sua obra poética completa foi recolhida en Inventario Uno (1950-1985) e Inventario Dos (1986-1991), e seus contos em Cuentos completos (1947-1994). Existe uma biografía de Benedetti escrita por Mario Paoletti, que se intitula Mario Benedetti, el aguafiestas.

Mais uma lembrancinha do nascimento do Brasil

descoboscarpereiradasilva

E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas – os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

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Da Carta de Achamento de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, D. Manuel, na qual anuncia a descoberta da nova terra. Voltaremos ao assunto no dia 1º de maio, data em que a carta foi assinada.
Ilustração: Desembarque da esquadra de Cabral, no dia 22 de abril de 1500 – Pintura de Oscar Pereira da Silva – acervo do Museu Paulista (Museu do Ipiranga), São Paulo, SP

Nova conta: Marilda Confortin

Recolhi no site www.palavreiros.org uma definição do poeta baiano Goulart Gomes sobre a sua proposta literária Poetrix, hoje um movimento ao qual aderiram muitos poetas. O poetrix deriva do hai-kai, (também grafado haiku ou haiko), composição poética japonesa, popularizada no Brasil,de certa forma, por Millôr Fernandes, que a utiliza de quando em quando, sempre com seu humor inteligente. No Paraná, pelo três poetas expressivos marcaram suas obras com hai-kais: Helena Kolody, Paulo Leminski e Alice Ruiz .

Explica Goulart Gomes: “Foi Aníbal Beça, um dos maiores pesquisadores brasileiros de Hai-Kai, quem gentilmente me falou: ‘Goulart, pode chamar seus inventivos tercetos do que quiser, menos de Hai-Kais’. E ele estava absolutamente certo. Não podemos dizer que suco de uva
é vinho sem álcool. O Hai-Kai (ou Haiko) é uma milenar arte oriental, que vem aprimorando-se com o passar dos séculos. Mexer na essência das coisas significa criar uma coisa nova, diferente da anterior”.

“Assim, necessariamente, o Hai-Kai deve possuir 17 sílabas, divididas em 3 versos de 5, 7 e 5 sílabas; conter alguma referência à Natureza; referir-se a um evento particular e ater-se ao Presente.”

“O que apresento … – e que também é feito por muitos outros poetas – é o que agora proponho se chame POETRIX (poe, de poesia, poema; trix, de três, terceto), ou seja, a poesia em três versos, o terzetto, originalmente chamado na Itália.”

Com,o exemplo, um poetrix de Goulart:

poetrixtregua1

Em Curitiba, também temos uma poetrixta. Marilda Confortin adeiru com toda força (e muita sensibilidade) ao movimento e foi signatária do segundo manifesto Poetrix, abaixo reproduzido. Segundo a própria poeta, “esse tipo de terceto me caiu do céu. Despencou de uma nuvem de informação chamada internet, empurrado por um diabinho baiano chamado Goulart Gomes, no momento em que eu não escrevia nem lia mais poesia, exatamente por acreditar que era algo inútil”.

marilda11Estivemos juntos na última sexta-feira, na véspera do lançamentro do livro de Dante Mendonça (ver abaixo), com alguns amigos, numa plantação de abobrinhas  com lambaris fritos e  filé mignon no palito. Brincamos de poetas, falamos do humor rápido de Manuel Maria Barbosa du Bocage e Emilio de Menezes. Ela, sempre preocupada com seu trabalho na Prefeitura Municpal, com o qual colabora signficativamente na divulgação da cultura, princpalmente junto à população escolar, prometeu abrir sua conta no Banco da Poesia. Hoje, no final de domingo, quando cheguei em minha casa, após rever Rio Negro e Mafra (minha terra natal) e comer deliciosos pirogues elaborados por D. Leonarda França (que, além de excelente gourmetrice, é professora de literatura), encontrei um comentário de Marilda Confortin no relato de Manoel de Andrade sobre a revista FORMA. Em razão do carinho com o qual foi composto, reproduzo aqui o recado de Marilda e o seu primeiro depósito em forma de poetrix, com minha intromissão gráfica.

Queridos Manoel e Cleto,
sinto uma baita inveja por não ter participado dessa história. Mas, sinto-me privilegiada por ter a oportunidade de conhecê-los, lê-los, ouvi-los e dividir uma mesa de um bar, um lançamento de livro, um cofre nesse banco de poesias ou uma página virtual.
Permitam-me traduzir essa convivência pacífica entre passado, presente e futuro com um Poetrix de minha autoria (o poetrix é o mais recente estilo/jeito/fenômeno/movimento poético internacional, com milhares de adeptos, com coordenação e oficinas virtuais e encontros presenciais)
.

poetrixaldente1

Grande abraço

Marilda

SEGUNDO MANIFESTO POETRIX

Dos males, o menor!

Toda vanguarda será retaguarda: se não podemos ser eternos, sejamos pós-modernos; se não somos pós-doutores, sejamos pós-autores. Todas as ideologias estão mortas, todos os sujeitos fora de lugar.

Viva o Minimalismo e vamos flanar! O poetrixta desfolha a bandeira: descerrar é melhor que dissertar.

Nada se cria, tudo se copia, concluíram Bakhtin e Chacrinha. Então, vamos hiper, intra e intertextualizar, sejamos dialéticos, digitais e dialógicos. Queremos a inter/ação, queremos o simulacro, a paródia, o pastiche, o duplix, o triplix, o multiplix, o grafitrix, o clonix, o concretrix! Viva a ciberpoesia!

Fazer poetrix não é fatiar uma frase em três partes. Viva a insubordinação gramatical, a desobediência civil! Abaixo as orações coordenadas e subordinadas!

Fora do título não há salvação.

Não mais que trinta sílabas para dizer o máximo.

E viva o canibal! Viva o caeté que comeu sardinha e viva o Cabral!

Vamos privilegiar a inteligência do leitor! Que ele morda, mastigue, engula e faça a digestão. Que se vire! Abaixo os derramamentos da poesia fast-food! Dizer muito, falando pouco. Concisão e coerência. Exploremos os significados polissêmicos das frases, a riqueza semântica
das palavras, valorizemos as metáforas.

Queremos o salto
o susto
a semântica

a leveza
a rapidez
a exatidão
a visibilidade
a multiplicidade
a consistência

Queremos o Século XXI! Vamos acordar o Novo Milênio!

O poetrix é um projétil que se aloja na alma. O poetrix é um vírus em nossa memória discursiva. É a suprasíntese.

Viva Bakhtin, Kristeva, Calvino, Oswald e Drummond!

E viva a Poesia! E viva o Poetrix!

Viva a alegria e viva um planeta chamado Bahia!

Viva eu, viva tu e viva o rabo do tatu!

Maior é Deus.

Bahia, Brasil, 28/07/2002.

Goulart Gomes
Sonia Godoy
Edison Veiga Júnior
Oswaldo Francisco Martins
Marcos Gimenes Salun
Isar Maria Silveira
Angela Bretas
Antonio Carlos Menezes
Marilda Confortin
José Nêumanne Pinto
Aila Magalhães
Jussara Midlej

Dicas de Fernando Pessoa – 02

fernandopdesA finalidade da arte não é agradar. O prazer é aqui um meio; neste caso não é um fim. A finalidade da arte é elevar.

Perante este princípio, é bem fácil de solucionar a famosa questão da arte e da moralidade. Não elevamos uma coisa fazendo-a tender para o mal.

Mas não será, então, a filosofia uma arte? O objetivo da filosofia não é também elevar? É, pois o conhecimento eleva – não pode rebaixar ninguém. A minha definição da finalidade da arte é, pois, demasiado ampla, demasiado extensa. Considerando melhor, a finalidade da arte é a ele¬vação do homem por meio da beleza. A finalidade da ciência é a elevação do homem por meio da verdade. A finalidade da religião é a elevação do homem por meio do bem.

Esta classificação permite-nos ver o motivo por que a religião tanto significa e porque é tão difícil levar os homens a abandoná-la. É que a religião é a arte prática.

Mas estou longe de pretender defender a religião. Na realidade, a minha esperança é que fundemos uma religião sem Deus – uma religião puramente do homem, cuja base sejam a benevolência e a bondade, em vez de a fé e a crença.

Por religião, note-se, não quero dizer teologia. Se alguma coisa é, a teologia é uma ciência, parte da metafísica. Sendo assim, a teologia é teórica; a religião é prática. O credo de Auguste Comte é mais religião do que teologia – é, talvez, mais ainda, pois não possui o elemento egoísta da preocupação com a salvação própria.

Como explicamos o gosto que tantos autores revelam por assuntos grosseiros, desagradáveis, repugnantes? Como poderemos explicar (…) de Zola; a Gato Preto, de Edgar Allan Poe?

Um motivo para este gosto encontramo-lo, segundo julgo, no espírito científico e analítico do autor. Outra razão consiste na originalidade do tema. Estará ela no cultivo de sensações novas?

Será tal gosto patológico ou não?

Como Baudelaire no seu Le Voyage, descerão “au fond de l’enfer pour trouver du nouveau”?
Em composições idealísticas, a símbolo tem de ser vago. Por vago, porém, não quero dizer obscuro. O seu significado deveria ser apreendido como vago nos seus limites e nos seus termos – em si próprio deve ser claro. O símbolo idealístico deve parecer-se com as nobres criações femininas de Shelley, as silhuetas, os contornos de cuja beleza inefável são incertos e indefinidos.

O símbolo satírico, por outro lado, deve ser claro, muito claro. Se for vago, deixa de produzir impacto no espírito.

(de Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Organização de Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.Lisboa: Edições Ática, s.d.)