Arquivo da categoria: Poemas

¡Bienvenido, Eduardo Masullo!

Conheci Eduardo Masullo há cerca de três anos. Ele vivia na Colômbia e veio a Curitiba cumprir uma missão educacional. Convivemos por cerca de uma semana e, já no final de sua visita, descobrimos (eta, mundo pequeno!) que tínhamos amigos comuns. Em 2010, depois de longo tempo sem notícias suas, descobri que ele estava de volta à sua terra e passamos a nos corresponder. Revelou-me outra faceta de sua criatividade,  a literatura. Enviou uma boa coleção de poemas para o Banco da Poesia, que passamos a publicar, a partir de hoje. Tive o prazer de passá-los ao Português. Junto a seus poemas, veio uma pequena descrição do autor, com a mesma concisão de seu estilo poético.

“Nasci em Buenos Aires, em Villa Devoto. Um bairro de classe média acomodada, amigável, estável, com valores às vezes firme, onde uma criança podia amadurecer como um gato: distanciando-se, a cada dia, um metro a mais de sua casa,  de forma gradual, até chegar ao mundo.”
“Estudei sociologia. Publiquei um livro de poesia (Empezar en Buenos Aires) e um romance (Quién mató a Iadira Salazar), além de uma série de poemas e contos em várias publicações. Traduzi Henry James, Melville, Gore Vidal etc. Além de livros de sociologia. Trabalhei como publicitário em Buenos Aires, Colômbia e Venezuela. Vivo em Buenos Aires e, para mais dados, meu endereço é emasullo@gmail, por meio do qual qual responderei com muito prazer.”

¡Bienvenido, hermano Eduardo!

Los Guerreros

Todo triunfo lleva a la muerte.
A los enemigos muertos
la próxima guerra los ascenderá a estatuas,
afortunadamente,

Si no hay guerra
el sol no dice nada
la amistad no existe.
Si no hay guerra
cómo vas a hacer amigos?

Un enemigo muerto
no es un enemigo,
tampoco un amigo,
es un odre de ausencia.
Hagamos de él,
ya mismo,
una estatua
para la próxima guerra
que ya vendrá.

Os Guerreiros

Todo triunfo leva à morte.
Aos inimigos mortos
a próxima guerra os ascenderá a estátuas,
afortunadamente,Se não há guerra
o sol não diz nada
a amizade não existe.
Se não há guerra
como vais fazer amigos?Um inimigo morto
não é um inimigo,
tampouco um amigo,
é um odre de ausência.
Façamos dele,
agora mesmo,
uma estátua
para a próxima guerra
que já virá.

9/7/2010

El hombre araña

Atrapado en esta red de palabras
Que es el mundo,
Me creo un poeta.

O homem aranha

Pegado a esta rede de palavras
que é o mundo,
me creio um poeta.

Tanto andar

Y nunca llego a ninguna parte.
Bajado del avión,
andando el pasillo de los aeropuertos,
miro a mis espaldas
y sé que algo no ha llegado,
algo que no perdí, que no está allí,
que sencillamente no está ya conmigo.

¿Qué es lo que dejo?
Una pierna, un brazo.
Algo que llevo doble –
¿Un testículo? ¿La mitad
De las ganas de vivir?

¿Cómo seguiré,
de ahora en adelante,
sin saber lo que he dejado?,
Lo que me ha abandonado
en estos pasillos que llevan
a todas las nadas?

¿El recuerdo de una lluvia,
la caricia de tus dedos
sobre mis dedos; de tus ojos
sobre mi mirada; de tu garúa vieja
sobre mi soledad apenas?

O será mi soledad, vieja traidora,
la que he abandonado perdida para siempre?

Ya he mirado para atrás
completamente. Y no he visto nada.
es hora de volver a andar,
viejo camarada.
Otras lluvias, otras soledades,
otras ciudades,
la pesadez mayor en las rodillas,
hay que andar, hay que andar,
preparando el gran viaje
sin saberlo, cuando ya no haya siquiera
nadie que vuelva la cabeza.

Tanto andar

E nunca chego a nenhuma parte.
Baixado do avião,
andando pelos corredores dos aeroportos,
olho em minhas costas
e sei que algo não chegou,
algo que não perdi, que não está ali,
Que simplesmente já não está comigo.

Que é o que deixo?
Uma perna, um braço.
Algo que carrego em duplo –
Um testículo? A metade
da vontade de viver?

Como seguirei,
de agora em diante,
sem saber o que deixei?
O que me abandonou
nestes corredores que levam
a todos os nadas?

A lembrança de uma chuva,
a carícia de teus dedos
sobre meus dedos; de teus olhos
sobre meu olhar; de tua garoa velha
sobre minha solidão apenas?

Ou será minha solidão, velha traidora,
a que abandonei perdida para sempre?

Já olhei para trás
completamente. E não vi nada.
É  hora de voltar a andar,
velho camarada.
Outras chuvas, outras solidões,
outras cidades,
o peso maior nos joelhos,
há que andar, há que andar,
preparando a grande viagem
sem sabê-lo, quando já não haja sequer
ninguém que volte a cabeça.

11/7/2010
Versão e ilustrações: C. de A.

Canto esperançoso de Vera Lúcia

Vera Lúcia Carmona, ou Vera Lúcia Kalahari, dona do blog Infinito, editado em Portugal, é uma das mais assíduas correntistas do Banco da Poesia. Jornalista e escritora, além de sensível poeta, ela vive ora em Portugal, ora em Angola ou em suas rotas africanas, continente no qual nasceu e por onde perambula com suas esperanças por um mundo melhor. Como sua conta corrente não foi ampliada nos últimos meses (mais por culpa do gerente do Banco), fui a seu blog e emprestei, segundo as regras bancárias, um lindo poema seu, que vai abaixo. Saudades, Vera Lúcia!

Cântico dos cânticos

Queria ter confiança na eternidade
e na terra da verdade…
Queria nunca m’esquecer
que volta sempre a primavera
qu’entre pedras faz nascer rosas…
Queria deixar de ser este mar morto
mar sem ondas e sem portos…
Queria deixar de mendigar
no silêncio das noites escuras
caminhando por ermas estradas
sem saber pra onde vou.
Queria saber quem me roubou minha coroa de rainha
quem pisou minhas ilusões desfolhadas…
Queria ser a manhã qu’apaga estrelas
e encontrar amor em todas elas…
Queria ser a perdida, a que não s’encontra
aquela que ninguém conhece,
a rutilante luz dum impossível…
Queria deixar de segurar nas mãos
o bem que nunca é meu
e encontrar no caminho o meu bordão d’estrelas…
Queria encontrar a água que procuro e de que estou sedenta…
Queria não pensar nos que andam descalços pela vida…
Nos que choram em insanas guerras…
Nos que mentiram e nos que mentem…
Não ter pena dos que em má hora nasceram…
Queria ter asas para voar e ser na fé
na agonia dum moribundo…
Queria ser tudo…e não sou nada.

Vera Lucia

Ilustração: C. de A,

Hélio de Freitas Puglielli: biopoética de Brecht

Visita ilustre: veio até o Banco da Poesia Hélio de Freitas Puglielli, correntista que há muito não comparecia. Trouxe mais depósitos, capeados por simpático recado: ” Querido Cleto, salve! Andei uns tempos fora de órbita, mas agora estou gravitando em torno do seu Banco de Poesia, que está excelente e super atualizado. Admirei, entre outros tópicos, a oportuna tradução e publicação de versos do prêmio Nobel de Literatura 2011, o que, nos velhos tempos da influência francesa, chamava-se de ‘morceaux choisies’ (trechos escolhidos). Também vi que, em 30 de setembro, você rendeu homenagem a Brecht, a quem admiro imensamente. Tanto que havia escrito, tempos atrás, uma espécie de ‘mini-biografia poetizada’. Sei que a sua ‘carteira de depósitos’ está sobrecarregada, mas, se houver espaço e apesar da greve, meu texto aí está.”

E seu texto, sempre bem-vindo, aqui vai.

Olhando Bert Brecht

Em 1927 você foi fotografado por Konrad Ressler.
Era jovem de menos de 30 anos,
mas já tinha três filhos com três mulheres
e estava legalizando a separação com Marianne Zoff
(a primeira com que casou, a segunda que fez mãe).
Disso nada falam o nariz reto,
um pouco arrebitado,
e o olhar sereno e altivo.
O pai de Frank, Hanne e Stefan
sorri levemente,
apesar da tensão dos lábios em torno do charuto.
Veste sobretudo de couro negro, abotoado até o pescoço,
como pressentindo que logo ficaria de luto pela Alemanha
e por si mesmo.
Na aparência olha para frente,
mas as pupilas infletem minimamente para baixo,
o suficiente para dar a impressão de que sua visão defronta-se com a História.
E os ventos da História em seguida te arrastaram pela Europa,
Dinamarca, Finlândia, Suíça, Áustria, Checoslováquia,
até atravessar a URSS e chegar ao porto de Vladivostok,
onde, singrando o Pacífico, o navio te levou aos EUA.
E agora te reencontro, na foto de Gerda Goedhartd,
um homem de 55 anos,
que do jovem só conserva a testa e as espessas sobrancelhas.
O nariz como que se abateu sobre si mesmo,
marcado pelas bochechas fofas e as asas gordas das narinas.
Há um charuto nos lábios,
mas tornou-se necessário o indicador em anzol para também sustentá-lo.
A fisionomia triste fala das vicissitudes em Hollywood,
das entrevistas com os inquisidores à cata de comunistas nacionais e estrangeiros.
Mas o olhar acabrunhado deve refletir a morte do filho Frank,
um dos tantos que tombaram nos campos gelados da Europa Oriental.
Hitler conseguiu matar seu filho, um entre tantos milhões de jovens alemães
amortalhados nos campos de batalha.
Bert Brecht, que sempre lutou pela paz e a justiça,
suga amargamente o indefectível charuto.
Houve certamente a alegria de voltar a Berlim e montar suas peças.
Elas foram encenadas e premiadas também na Europa Ocidental e nos EUA.
Essa alegria você teve em vida,
talvez como compensação ao dissabor de ver que a RDA não era bem a dos teus sonhos.
Mas Brecht, que se preocupava demais com a humanidade e o futuro,
está triste e pensativo na foto de 1953.
Três anos mais tarde estaria livre de todas preocupações
e a nós compete fazer com que seus textos, sim, não morram,
pois sempre haverá alguém assim para defender a dignidade de todos os homens.

Helio de Freitas Puglielli

Ilustração: montagem de C. de A. sobre fotos de Konrad Ressler e Gerda Goedhartd

E o Nobel de Literatura de 2011 vai para… Poesia!

Poeta sueco ganha o Nobel de Literatura

Foto: Sophie Bassouls

Tomas Tranströmer nasceu em Estocolmo, Suécia, em 15 de abril de 1931. Frequentou a Universidade de Estocolmo, onde estudou psicologia e poesia. Considerado um dos poetas mais importantes da Suécia, Tranströmer já vendeu milhares de volumes em seu país natal e sua obra foi traduzida para mais de cinquenta línguas. Seus livros de poesia em Inglês incluem The Sorrow Gondola (Green Integer, 2010); New Collected Poems (Livros Bloodaxe, 2011); The Great Enigma; New Collected Poems (New Directions, 2003); The Half-Finished Sky (2001); New Collected Poems (1997); For the Living and the Dead (1995); Baltics (1974); Paths (1973); Windows and Stones (1972, e Seventeen Poems (1954).

Seu trabalho mudou gradualmente da tradicional e ambiciosa poesia sobre a natureza, escrita em seus primeiros vinte anos, em direção de um verso mais obscuro, pessoal e mais aberto. Seus poemas se dirigem para o vazio, no esforço de entender e lidar com o desconhecido, em busca de transcendência.
“Eu sou o lugar / onde a criação trabalha por si mesma”, declara em seu poema The Outpost, sobre a qual escreveu “Esse tipo de idéia religiosa recorre aqui e ali, em meus últimos poemas, no que eu vejo uma espécie de significado em estar presente, no uso da realidade, em experimentá-la, em fazer algo dela. ”

Tranströmer é o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2011. Suas outras honrarias e prêmios incluem o Prêmio Literário Aftonbladets, o Prêmio de Poesia Bonnier, o Prêmio Neustadt International de Literatura, o Prêmio Oevralids, o Prêmio Petrach, na Alemanha, e o Prémio da Suécia do Fórum Internacional de Poesia.

Lecionou em muitas universidades norte-americanas, muitas vezes com o poeta e amigo Robert Bly. Tranströmer é um respeitado psicólogo e já trabalhou em uma prisão juvenil, com viciados em drogas. Ele vive com sua esposa Monica em Vasteras, a oeste de Estocolmo. Tranströmer sofreu um acidente cérebro-vascular em 1990 que o deixou parcialmente paralisado e incapaz de falar. No entanto, continuou a escrever e a publicar seus trabalhos até os primeiros anos deste Século. Seu último trabalho original, The Great Enigma, foi publicado em 2004. Desde então, deixou de escrever. Mas não abandonou a arte: também pianista, ainda consegue tocar, embora com apenas uma das mãos.
Tranströmer não tem, até agora, sua obra publicada no Brasil. Com a notícia do prêmio, a Biblioteca Nacional publicou hoje, em seu site (http://www.bn.br/portal/) notícia que a sua coleção Poesia Sempre, de nº 25, publicou hai-kais de autoria do poeta sueco, com tradução de Marta Magalhães de Andrade.
Abaixo, três das onze estrofes publicadas, conforme divulgação da BN,

Os fios elétricos
estendidos por onde o frio reina
Ao norte de toda música

O sol branco
treina correndo solitário para
a montanha azul da morte

Temos que viver
com a relva pequena
e o riso dos porões

Para não deixar de apresentar o novo Nobel de Literatura aos leitores do Banco da Poesia, ousei recolher alguns poemas publicados em Espanhol e os traduzi para nossa língua. Espero que essas versões, em razão da triangulação idiomática, não tenham se distanciado em excesso da poesia de seu autor. Os três poemas pertencem a seu livro Sorgegondolen, Ed. Bonniers, Estocolmo, 1996 ( traduzido para o Espanhol como Góndola Fúnebre).

Amor e silêncio

A primavera jaz deserta.
A vala, escura como veludo
se arrasta junto a mim
sem espelhismos.

Somente irradiam
as flores amarelas.

Sou levado em minha sombra
como um violino
em sua caixa negra.

O único que quero dizer
reluz fora de alcance
como a prataria
na casa de penhores.

 O reino da inseguridade


A chefe do escritório se inclina e traça uma cruz
e oscilam seus brincos como espadas de Dâmocles.

Assim como a frágil borboleta se faz invisível no solo
conflui o demônio com o diário aberto.

Um capacete que  ninguém conduz tomou o poder.
A tartaruga-mãe foge voando sob a água.

Folha de livro noturno

Em uma noite de maio aterrizei
em um frio luar
em que a erva e as flores eram grises
mas seu aroma, verde.

Resvalei costas acima
na noite daltônica
enquanto as pedras brancas
assinalavam a lua.

Um espaçotempo
de alguns minutos
cinquenta e oito anos de largura.

E atrás de mim
além das águas reluzentes qual chumbo
estavam a outra costa
e os poderosos.

Gentes com futuro
em vez de rosto.

Ilustrações: c. de assis

Mais um Pessoa português

Um poeta português de hoje, a mim aprsentado por meu amigo João Defreitas: Joaquim Pessoa. Ele nasceu em Barreiro (na foz do Tejo, em frente a Lisboa) em 1948. Iniciou a sua carreira no Suplemento Literário Juvenil do Diário de Lisboa. Seu primeiro livro foi editado em 1975 e, até hoje, publicou mais de vinte obras incluindo duas antologias. Foram lhe atribuídos os prêmios literários da Associação Portuguesa de Escritores e da Secretaria de Estado da Cultura (Prêmio de Poesia de 1981), o Prêmio de Literatura António Nobre e o Prêmio Cidade de Almada. Poeta, publicitário e pintor, é uma das vozes mais destacadas da poesia portuguesa do pós 25 de Abril, sendo considerado um “renovador” nesta área. O amor e a denúncia social são uma constante nas suas obras e, segundo David Mourão Ferreira, é um dos atuais poetas progressistas naturalmente de capazes de comunicar com um grande público.Para os leitores do Banco da Poesia, três poemas do novo Pessoa português.

O Cão da Tristeza

O cão da tristeza está aqui.
Aqui, sem alma, ferrado no meu espanto.
Puxando as verdes charruas do meu pranto
lavrando a dor cinzenta do meu povo.

O cão da tristeza está aqui.
No giz do meu lume, na fogueira acesa
que queima a minha casa, destrói a minha mesa
e magoa o meu sangue e a minha voz.

o cão da tristeza está aqui.
No açaime do medo que nos cala
na sombra do punhal, no frio da bala
apontada ao coração da nossa esperança.

Canção de estar em terra

Da sede meu amor farei um barco.
Uma vela no porto. E ao vê-la perto
eu direi meu amor que por ti parto
e fico e firo e faço e sigo e ardo.

Direi a rosa o cravo o trevo o cardo.
Darei o corpo, amor. Direi um astro.
Ai flor de quem está farto farto farto
de rimar contra a maré em pinho incerto.

Que mais direi amor? Eu que maldigo
eu que mal amo as coisas conquistadas
que mais direi? Anéis corais espadas?
Já mal me há-de bastar o que eu não digo.

É aqui, de bruços sobre a espuma
que o mar nos causa a dor de estar em terra.
E as palavras nos doem uma a uma.
E os homens em Lisboa fazem guerra.

Palavras

Vi trigo            vi fome
vi ferros           vi feras
vi ruas              vi nomes
vi grades          vi esperas

vi armas           vi muros
vi lutas             vi mortes
vi surdos          vi mudos
vi fracos           vi fortes

vi mares           vi terras
vi negros          vi servos
vi fardas           vi guerras
vi balas             vi nervos

vi corpos           vi cardos
vi fama             vi glória
vi punhos         vi cravos
vitória               vitória

vi abril              vi povo
vi rosto             vi espanto
vi nosso            vi novo
vi pouco           vi tanto

tão cedo           tão cedro
tão certo           tão perto
tão raiva           tão medo
tão mar            tão deserto

tão lua              tão leve
tão pobre         tão pouco
tão fúria           tão febre
tão longe          tão louco

tão alto             tão erva
tão raso            tão resto
conversa           conserva
tão lento           tão lesto

tão urze            tão hoje
tão zero            tão tojo
tão fica             tão foge
tão ontem        tão nojo

tão mata          tão morra
tão égua           tão água
tão pinho         tão porra
tão merda        tão mágoa

Ilustrações: c. de assis

Está faltando um Brecht por aqui

Eugen Berthold Friedrich Brecht nasceu em Augsburg, Alemanha, em 10 de Fevereiro de 1898 e morreu em Berlim, em 14 de Agosto de 1956. Portanto, há exatamente 55 anos ele deixou o planeta Terra, depois do tempo a ele concedido, e não mais se aborreceu com os desmandos da chamada burguesia capitalista, contra quem dedicou boa parte de suas reflexões e de sua obra. Brecht é conhecido, no Brasil, mais por seu trabalho na dramaturgia e muitas de suas peças foram por aqui encenadas. Mas foi também excelente poeta, dono de uma ironia finíssima e criador de metáforas que se celebrizaram como axiomas do Século XX, notadamente na crítica política e econômica. Sua fama internacional ganhou estatura de gigante com a encenações do Berliner Ensemble, uma companhia teatral por ele criada, durante 1954 e 1055, em Paris.

Ainda jovem, com 22 anos, Brecht se tornou marxista, porém a seu modo, e com as teorias de seu patrício comunista, pintou sua obra teatral, poética e literária,. Também sofreu influência dos experimentos teatrais de Erwin Piscator e Vsevolod Emilevitch Meyerhold, do conceito de estranhamento do formalista russo Viktor Chklovski, do teatro chinês e do teatro experimental da Rússia soviética, já a partir de 1917.

O Banco da Poesia destaca um de seus mais famosos poemas e publica três versões brasileiras: a primeira, de Manuel Bandeira; a segunda, do tradutor Paulo César de Souza e, finalmente, a do nosso amigo Frederico Fuellgraf. A propósito de Frederico, vale fazer aqui um pequeno comercial: visitem o seu blog Fuellgrafianas,  onde encontrarão muitos textos inteligentes. Além de tradutor, FF é cineasta e grande estudioso da sétima arte. Veja mais sobre ele aqui.

An die Nachgeborenen 

de Bertold Brecht

 

 

 

 

 

Wirklich, ich lebe in finsteren Zeiten!
Das arglose Wort ist töricht. Eine glatte Stirn
Deutet auf Unempfindlichkeit hin. Der Lachende
Hat die furchtbare Nachricht
Nur noch nicht empfangen.

Was sind das für Zeiten, wo
Ein Gespräch über Bäume fast ein Verbrechen ist.
Weil es ein Schweigen über so viele Untaten einschließt!
Der dort ruhig über die Straße geht
Ist wohl nicht mehr erreichbar für seine Freunde
Die in Not sind?

Es ist wahr: ich verdiene noch meinen Unterhalt
Aber glaubt mir: das ist nur ein Zufall. Nichts
Von dem, was ich tue, berechtigt mich dazu, mich sattzuessen.
Zufällig bin ich verschont. (Wenn mein Glück aussetzt, bin ich verloren.)

Sie sagen mir: iss und trink du! Sei froh, daß du hast!
Aber wie kann ich essen und trinken, wenn
Ich dem Hungernden entreiße, was ich esse, und
Mein Glas Wasser einem Verdurstenden fehlt?
Und doch esse und trinke ich.

Ich wäre gerne auch weise.
In den alten Büchern steht, was weise ist:
Sich aus dem Streit der Welt halten und die kurze Zeit
Ohne Furcht verbringen.
Auch ohne Gewalt auskommen
Böses mit Gutem vergelten
Seine Wünsche nicht erfüllen, sondern vergessen
Gilt für weise.
Alles das kann ich nicht:
Wirklich, ich lebe in finsteren Zeiten!

In die Städte kam ich zur Zeit der Unordnung
Als da Hunger herrschte.
Unter die Menschen kam ich zu der Zeit des Aufruhrs
Und ich empörte mich mit ihnen.
So verging meine Zeit
Die auf Erden mir gegeben war.

Mein Essen aß ich zwischen den Schlachten
Schlafen legte ich mich unter die Mörder
Der Liebe pflegte ich achtlos
Und die Natur sah ich ohne Geduld.
So verging meine Zeit
Die auf Erden mir gegeben war.

Die Straßen führten in den Sumpf zu meiner Zeit.
Die Sprache verriet mich dem Schlächter.
Ich vermochte nur wenig. Aber die Herrschenden
Saßen ohne mich sicherer, das hoffte ich.
So verging meine Zeit
Die auf Erden mir gegeben war.
Die Kräfte waren gering. Das Ziel
Lag in großer Ferne
Es war deutlich sichtbar, wenn auch für mich
Kaum zu erreichen.
So verging meine Zeit
Die auf Erden mir gegeben war.

Ihr, die ihr auftauchen werdet aus der Flut
In der wir untergegangen sind
Gedenkt
Wenn ihr von unseren Schwächen sprecht
Auch der finsteren Zeit
Der ihr entronnen seid.

Gingen wir doch, öfter als die Schuhe die Länder wechselnd
Durch die Kriege der Klassen, verzweifelt
Wenn da nur Unrecht war und keine Empörung.

Dabei wissen wir doch:
Auch der Haß gegen die Niedrigkeit
verzerrt die Züge.
Auch der Zorn über das Unrecht
Macht die Stimme heiser. Ach, wir
Die wir den Boden bereiten wollten für Freundlichkeit
Konnten selber nicht freundlich sein.

Ihr aber, wenn es so weit sein wird
Daß der Mensch dem Menschen ein Helfer ist
Gedenkt unserer
Mit Nachsicht.

As nossas versões

I – Aos que vierem depois de nós

(Versão de Manuel Bandeira)

Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
[(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.
Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

II – Aos que vão nascer

(Versão de Paulo César de Souza)

1
É verdade, eu vivo em tempos negros.
Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas
indica insensibilidade. Aquele que ri
apenas não recebeu ainda
a terrível notícia.
Que tempos são esses, em que
falar de árvores é quase um crime
pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Aquele que atravessa a rua tranqüilo
não está mais ao alcance de seus amigos
necessitados?

Sim, ainda ganho meu sustento
mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço
me dá direito a comer a fartar.
Por acaso fui poupado. (Se minha sorte acaba, estou perdido.)

As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem!
Mas como posso comer e beber, se
tiro o que como ao que tem fome
e meu copo d’água falta ao que tem sede?
E no entanto eu como e bebo.

Eu bem gostaria de ser sábio.
Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria:
manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve
levar sem medo
e passar sem violência
pagar o mal com o bem
não satisfazer os desejos, mas esquecê-los.
Isto é sábio.
Nada disso sei fazer:
é verdade, eu vivo em tempos negros.

2

À cidade cheguei em tempo de desordem
quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
e me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
que sobre a terra me foi dado.

A comida comi entre as batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor cuidei displicente
e impaciente contemplei a natureza.
Assim passou o tempo
que sobre a terra me foi dado.

As ruas de meu tempo conduziam ao pântano.
A linguagem denunciou-me ao carrasco.
Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima
estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
Assim passou o tempo
que sobre a terra me foi dado.

As forças eram mínimas. A meta
estava bem distante.
Era bem visível, embora para mim
quase inatingível.
Assim passou o tempo
que nesta terra me foi dado.

3

Vocês, que emergirão do dilúvio
em que afundamos
pensem
quando falarem de nossas fraquezas
também nos tempos negros
de que escaparam.
Andávamos então, trocando de países como de sandálias
através das lutas de classes, desesperados
quando havia só injustiça e nenhuma revolta.

Entretanto sabemos:
também o ódio à baixeza
deforma as feições.
Também a ira pela injustiça
torna a voz rouca. Ah, e nós
que queríamos preparar o chão para o amor
não pudemos nós mesmos ser amigos.

Mas vocês, quando chegar o momento
do homem ser parceiro do homem
pensem em nós
com simpatia.

III – Aos nascidos depois de mim

(Versão de Frederico Fuellgraf)

Realmente, eu vivo em tempos sombrios!
A palavra melindrosa é pusilânime. Uma fronte sem rugas
É a expressão da indiferença – o folgazão
Apenas não recebeu em tempo
a terrível notícia.

Que tempos são estes, quando
Uma conversa sobre abobrinhas é quase um crime.
Porque encerra o silêncio sobre indizíveis atentados!
Aquele que cruza a rua impassível
Já se tornou impiedoso para os amigos
Caídos em desgraça ?

É verdade: ainda ganho para o meu sustento
Mas acreditem: é mera coincidência. Nada
do que faço dá-me o direito de saciar-me.
Sou poupado por distração. (Se minha sorte me abandonar,
estarei perdido).

Dizem-me: come, tu, e bebe, dá graças que tens o quê!
Mas como poderei comer e beber, se
Ao faminto surrupio a comida e
Se o que faz falta ao sedento é meu copo d´água?
Apesar disso, como e bebo.

Eu também gostaria de ser  douto.
A sabedoria está descrita nos livros antigos:
“Furtar-se às contendas do mundo e desfrutar
Sem medo o tempo exíguo.”
Mais: renunciar à violência
Pagar o mal com o bem
Não satisfazer seus desejos, melhor esquecê-los
Sabedoria seria isso.
E é tudo o que não posso:
Deveras, eu vivo em tempos sombrios!

Cheguei às cidades quando lá campeava a desordem
E imperava a fome.
Juntei-me às pessoas no instante da revolta
E indignei-me com elas.
Assim passou o tempo
Que me foi dado na Terra.

Comi meu pão entre uma e outra batalha
Para dormir deitei-me entre os assassinos
Indelicado cultivei o amor
Impaciente contemplei a natureza.
Assim feneceu o tempo
Que meu foi dado na Terra.

No meu tempo as ruas conduziam ao atoleiro
E a palavra delatou-me ao verdugo.
Consegui fazer pouco. Mas sem mim
Os poderosos sentiam-se mais seguros; essa era a minha idéia.
Assim passou o tempo
Que me foi dado na Terra.

Eram poucas as forças. A causa
longe de ser conquistada.
Jazia ali com nitidez, mas para mim
Mal-e-mal à mão.
Assim passou o tempo
Que meu foi dado na Terra.

Vós, que emergireis da maré
Na qual naufragamos
Relembrai
Quando falardes de nossas fraquezas
Também os tempos sombrios
Dos quais vos livrastes.

Pois, trocando mais de países que de sapatos
Caminhávamos através das guerras das classes, angustiados
Bastava lá reinar a injustiça e nenhuma indignação.
Ora pois, sabemos muito bem que:
O ódio contra a vileza
Endurece as feições.
A ira contra a injustiça
Deixa rouca a voz. Diabos!, nós
Que queríamos semear a amabilidade
Já não conseguíamos ser amáveis.

Vós, porém, quando chegar a hora
Em que o homem for o amparo do homem
Lembrai-nos
E sede indulgentes.

José Marins: oração a Malaquias

Anjo de Quintana

Anjo Malaquias
onde andam seus pés
de acompanhar poetas,
desde que Quintana se foi?

Anjo Malaquias
nada tenho para te oferecer,
além de receios ou passos vãos,
viajo sorvido pelo sonho.

Anjo Malaquias
se puder olhar por mim,
teus olhos de poesia e luz,
vela por meus versos tão miúdos.

Anjo Malaquias
quando vier com suas asas
de transparência e luar,
traga-me da alegria e do humor
de Mário Quintana.

Um pouco que seja
de quintanares letras,
e siga-me na estrada do poeta
essa que faço na esteira dos nadas.

José Marins / jan 2011
Ilustração: cdeassis

Nascer de novo: quantas maneiras há?

Renascer

“A água
que puseste no teu vinho não pode
mais ser retirada. Porém
tudo se transforma. E recomeçar
é possível mesmo no último suspiro.”

Bertolt Brecht

Nascer, viver, morrer: eis a história natural da humanidade.
xxxxxxNascer porque alguém quis,
xxxxxxviver porque se insiste em querer,
xxxxxxmorrer porque não há alternativa.
xxxxxxxxxxxxEntre o nascer e o morrer, mil renascimentos.
Renascer a cada instante no sorvo lácteo
e no respirar aéreo, sem águas amnióticas.
Renascer para o iluminado mundo multidimensional
pouco a pouco descoberto por olhos surpresos e mãos tateantes.
Renascer para as notas bailarinas
a tecer novas magias sensoriais em forma de acalanto.
Renascer na visão miraculosa das cores,
a enfeitar flores e pássaros e paisagens infinitas.
Renascer para a beleza de todas as artes
na miríade espetacular de novas sensações.
Renascer para a palavra, que encurta a distância entre nós e o outro.
Renascer para a poesia, que encurta a distância
entre o real ilusório e o sonho irrefragável.
Renascer para o conhecimento,
que cria divergentes verdades ontológicas e metafísicas.
Renascer na leitura e na feitura dos livros,
Renascer para as conversões e para as variadas acepções e decepções religiosas.
Renascer no corajoso abandono das convenções inúteis do teatro social.
Renascer para as bonanças depois das tempestades
e para as tempestades depois das calmarias.
xxxxxxxxxxxxRenascer ante o limitadamente conhecido
xxxxxxxxxxxxe o infinitamente misterioso.
Renascer para as descobertas macrocósmicas.
e para o entendimento do infinitesimal.
Renascer em uma ameba unicelular
ou num lago extinto de Marte
onde trilhões de amebas navegaram há milhões de anos.
Renascer numa piscadela de estrela anã
e no brilho intenso de uma supernova
a biguebanguear novos universos.
Renascer na estreiteza do interstício celular
e na largueza do intermúndio celestial.
xxxxxxxxxxxxRenascer mais perto de nós do que imagináramos.
Renascer para os olhos das mulheres eleitas e fugidias
e para o coração das escolhidas.
Renascer nas almas e nos corpos dos filhos
segundo as leis da veraz reencarnação.
Renascer, depois, nos espíritos dos filhos dos filhos
em encarnações multiplicadas
e corpos multifacetados
a espraiar-se nas areias do espaço e do tempo
por todas as gerações das gerações.
Que assim seja.

CletoAssis/set.2011

Artur Novelhe surreal

Recebemos da Galícia um poema de Artur Alonso Novelhe, com o seguinte rtecado:

“Caro amigo Cleto, envio poema, por se você gosta e pode ser pendurado no Banco da Poesia.Tardei um bocadinho em enviar este poema pois, esta já pronto à sair a rua em meado de setembro, o meu terceiro livro de poemas intitulado: Filhos da Brêtema… e esteve trabalhando em ele todo este tempo.
Um grande abraço e, como sempre, parabéns pelo seu grande contributo à poesia.  Artur Alonso
Obrigado ao amigo Artur Alonso. Envie mais notícias sobre seu novop livro.

Surrealismo

O silencio chama às noites
cabeças de sereias que adornem o seu palácio
e tu não tens filhos
e eles não precisam, no teu seio, aconchegar-se

porque quando o tempo é de silencio
as fontes de pedra resultam sensatas

e no prado os corpos jazem
eternos, desnecessários e úmidos
como início, que são, da nova geração

glacial de alma

Daí que o primeiro ministro
evada orçamentos
e guarde detrás do desvão
astutos e árduos momentos
para vender, sem pudor, quilômetros de pátria
e ambientes

mas tu não precisas de uma bandeira
nem a pobreza dos fortes
aguarda dos teus remédios,
simplesmente como sujeito
da história desapareceste

tua mãe o sabe,
porque intui
qual é o preço a pagar no troco.
Gostaria poupar ânimo,
mas nunca se lhe ocorrera
como entregar teu corpo…

porque as orquídeas choram
esquecidas que o ar tudo agita
e os nomes que avisam
nunca deixam de parecer prelúdio:
olhos perdidos na grande penumbra

Os sonhos nunca aguardam um porquê
porque sempre para o regresso
têm as portas da casa abertas

como o silencio que chama as noites
como a cabeça de cisne no conto do alienado

Perda, busca e achamento em seis tempos

Amarras do Tempo

Cleto de Assis, Curitiba


Tempo I

Da surpresa


Entre os sabores de mar e uva
e palavras jorradas
como a compensar tantos anos de silêncio mútuo:
será a insinuante menina
ou a grave senhora que conta causos
e esconjura trevas
com a mesma afinação de voz do tempo anterior?
Convencionam-se distâncias medidas
com toques suaves de receio e apreensão
em busca de espelhos tardios – quem os perceberá?
Remembranças de morte, conchegos de vida,
juventudes distraídas, sonhos entrecortados,
futuros desconstruídos.
Presente: quem o sabe?

Tempo II

Da reflexão


Destinos não exigem rotas precisas
e súbitos ventos causam desvios,
naufrágios, descobertas inesperadas,
encontro de ilhas remotas e desabitadas.
Quem saberá a distância
entre o benquerer e o sem querer?
Quem poderá medir o certo e o errado
nas escolhas e  nos escolhos?
Quem, afinal, determina
esta estranha geometria
traçada sem esquadros ou compassos
a preencher com maestria
todos os tempos e espaços?

Será a memória um mata-borrão da vida
sem direito a correções, a novas direções?
E as dimensões da mancha impressa,
que limites terão elas?
Abrirão novas janelas ou fecharão esta porta?
Ou a incerteza está certa, ou a certeza está morta.

Eis lá no fundo o passado
que não passa. Tudo é vivo.
O tempo ressuscitado
já não é tempo afetivo.
Beijos, abraços, carinhos,
se perderam co’a esperança
de eternizar a lembrança
daqueles belos caminhos.
O soturno Saturno noturno
soube desviar as rotas
e criar novas veredas labirínticas
para o homem taciturno.

Tempo III

Da súbita rebeldia


Ah! À distância rimas e ritmos
e métricas e metáforas!
Não há qualquer simbolismo
neste funil que se estreita
à medida que nos aproximamos do finito.

Mas somos melhores, diz a voz,
do que no tempo em que tudo era infinito.
Temos, então, direito a novas auroras
Nesta hora crepuscular?

Terá o sonho solução?
Será o devaneio adolescente desmensurável plano
no tempo mínimo de nossa juventude?
O sonho é apenas um corte fugidio do presente
que não acumula certezas
e vive de ouro de tolo garimpado no passado.
Um dia, quando menos esperamos,
ou dolorosamente aguardamos,
damos de cara com o futuro
vestido em andrajos de Filho da Noite
a cuidar da porta que leva a parte nenhuma.
Apenas nos será permitido olhar mais vez para trás
sem direito a lamentações sonoras
ou pedidos de reconsideração.
Somente mais um último olhar no vazio do que passou
e de todos os presentes perdidos:
eis o Homem diante de seu Futuro.

Tempo IV

Da constatação


Pois há muito esquecemos
que um sorriso não tem devir,
ele existe para aquele momento em que se abre
e eterniza sentimentos.
Nem a flor, em sua efemeridade,
anuncia tempos vindouros
mas doura apenas os dias em que vive
e terá em suas irmãs e filhas
o contínuo refazer de presentes coloridos e perfumados.
Mais transitória ainda,
a borboleta, intensa flor flutuante,
não faz de seus passados de lagarta e crisálida
prisões de lamentações.
Só voa em suas visitas de flor em flor
a enfeitar preciosos e rápidos presentes.
E nisto está o mistério da vida, como queria Pessoa:
não haver nela qualquer mistério, só transitoriedade.
Somente nós, os reis da natureza,
queremos que ela pareça eterna
para celebrar o enganoso reinado perene
que impera sobre tudo o que é apenas passageiro,
a começar pela própria vida.
Aí inventamos a vaidade, a prepotência
e todas as demais formas de violência
que nada têm a ver com a lei maior da efêmera sobrevivência.
E insistimos em não ver o que é transitório
porque gostamos de alargar a sensação do infindo
imaginando tempos cósmicos de quinze mil anos solares
que criam um deus à nossa imagem e semelhança.
Não conseguimos aceitar que, no pórtico do silêncio vital,
há avisos claros sobre o que não deveríamos ter feito.

Não fale e siga,
diga e não diga
até a próxima curva
que não existe.
Depois prossiga
direto ao limite
do próximo passo.
Pare, olhe, escute:
se ouvir o silvo
ou o apito
esconda o grito
recolha o espanto.
Escolha o canto,
engula o pranto,
negue o infinito.

É dos segundos, minutos e horas que perdemos a pensar,
esperançosos,
na felicidade que ainda não veio
que formamos nossos futuros vazios,
sem perceber que a distância entre nós e as estrelas
é a ligação de muitos pontinhos sem luz bem próximos um do outro.
Basta olhar ao céu para consignar essa verdade.

Tempo V

Da remissão dos pecados


Eu, pecador, confesso:
deixei de colher pequenas vitórias passageiras
porque busquei glórias definitivas.
Abandonei faces que cativei e me cativaram
em troca de ilusórias paixões imorredouras.
Fui sempre infiel à vida
porque não a percebi nem a recebi
em sua infinda misericórdia e compaixão,
mas me acreditei superior à ela,
e contra ela blasfemei ao criar um deus, deuses e santos
para livrar-me da condenação eterna
por meio de breves arrependimentos
e esconsas meae culpae.
Deixei a balançar mãos solitárias
porque  me neguei a estender as minhas,
pretensamente  solidárias.
Fundei religiões que me impediram
de ver em mim e diante de mim a maravilha da criação
e imaginei paraísos e nirvanas distantes
que turvaram a visão da verdadeira vida.
Por não saber ter olhos para ver,
me reinventei em visionário,
pensando em luzes e cores
muito além de meu já mágico poder de visão.

Tempo VI

Dos encontros, desencontros e reencontros


E eis-me a abraçar a grande curva do universo
que gera encontros e desencontros e novos encontros
todos em seu momento exato, porque escritos na vontade.
Não a vontade da esperança
mas a decisão de ver e estar dinamicamente atento
a tudo que nos rodeia, sem juízos premonitórios.
E eis-me aqui disposto a entender a teia do tempo
que nos torna diferentes a todo momento
e preserva a memória que constrói todos os novos momentos.
Eis-me aqui porque talvez ainda haja mãos estendidas.
Eis-me aqui porque minhas mãos ainda podem operar milagres.
Eis-me aqui porque nego a fuga à retaguarda ou à vanguarda
e sou soldado de meu momento,
de meus momentos encadeados,
perfeitos elos de minha história sagrada e única.
Recolho nos ainda intatos escaninhos da memória
as horas consagradas
e trago-as ao presente, pois presentes estão
e têm o poder de fazer ressurgir o agora
e fazem o milagre da multiplicação de todos os agoras.

Subitamente, sem marcar encontro com o fado,
a voz sussurrou palavras meigas
capazes de cicatrizar feridas ainda abertas.
Uma suave carícia sobre os cabelos já a encanecer
completou a fórmula balsâmica
ontem e nesta nova hora.
E foram mais alguns anos solares à frente
a anunciar o quase esquecimento.
Novas curvas, novas retas
a insinuar-me geômetra para domá-las.
E eu, apenas um mero compositor de linhas toscas
em perigo iminente de fazer enorme maçaroca
de memória e tempo em helicoidais tropeços,
devo tentar recompô-las em devida trajetória
porque não há finais, só recomeços
e cada recomeço uma nova história.

Curitiba, junho de 2010.

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Ilustrações: C. de A.