Perda, busca e achamento em seis tempos

Amarras do Tempo

Cleto de Assis, Curitiba


Tempo I

Da surpresa


Entre os sabores de mar e uva
e palavras jorradas
como a compensar tantos anos de silêncio mútuo:
será a insinuante menina
ou a grave senhora que conta causos
e esconjura trevas
com a mesma afinação de voz do tempo anterior?
Convencionam-se distâncias medidas
com toques suaves de receio e apreensão
em busca de espelhos tardios – quem os perceberá?
Remembranças de morte, conchegos de vida,
juventudes distraídas, sonhos entrecortados,
futuros desconstruídos.
Presente: quem o sabe?

Tempo II

Da reflexão


Destinos não exigem rotas precisas
e súbitos ventos causam desvios,
naufrágios, descobertas inesperadas,
encontro de ilhas remotas e desabitadas.
Quem saberá a distância
entre o benquerer e o sem querer?
Quem poderá medir o certo e o errado
nas escolhas e  nos escolhos?
Quem, afinal, determina
esta estranha geometria
traçada sem esquadros ou compassos
a preencher com maestria
todos os tempos e espaços?

Será a memória um mata-borrão da vida
sem direito a correções, a novas direções?
E as dimensões da mancha impressa,
que limites terão elas?
Abrirão novas janelas ou fecharão esta porta?
Ou a incerteza está certa, ou a certeza está morta.

Eis lá no fundo o passado
que não passa. Tudo é vivo.
O tempo ressuscitado
já não é tempo afetivo.
Beijos, abraços, carinhos,
se perderam co’a esperança
de eternizar a lembrança
daqueles belos caminhos.
O soturno Saturno noturno
soube desviar as rotas
e criar novas veredas labirínticas
para o homem taciturno.

Tempo III

Da súbita rebeldia


Ah! À distância rimas e ritmos
e métricas e metáforas!
Não há qualquer simbolismo
neste funil que se estreita
à medida que nos aproximamos do finito.

Mas somos melhores, diz a voz,
do que no tempo em que tudo era infinito.
Temos, então, direito a novas auroras
Nesta hora crepuscular?

Terá o sonho solução?
Será o devaneio adolescente desmensurável plano
no tempo mínimo de nossa juventude?
O sonho é apenas um corte fugidio do presente
que não acumula certezas
e vive de ouro de tolo garimpado no passado.
Um dia, quando menos esperamos,
ou dolorosamente aguardamos,
damos de cara com o futuro
vestido em andrajos de Filho da Noite
a cuidar da porta que leva a parte nenhuma.
Apenas nos será permitido olhar mais vez para trás
sem direito a lamentações sonoras
ou pedidos de reconsideração.
Somente mais um último olhar no vazio do que passou
e de todos os presentes perdidos:
eis o Homem diante de seu Futuro.

Tempo IV

Da constatação


Pois há muito esquecemos
que um sorriso não tem devir,
ele existe para aquele momento em que se abre
e eterniza sentimentos.
Nem a flor, em sua efemeridade,
anuncia tempos vindouros
mas doura apenas os dias em que vive
e terá em suas irmãs e filhas
o contínuo refazer de presentes coloridos e perfumados.
Mais transitória ainda,
a borboleta, intensa flor flutuante,
não faz de seus passados de lagarta e crisálida
prisões de lamentações.
Só voa em suas visitas de flor em flor
a enfeitar preciosos e rápidos presentes.
E nisto está o mistério da vida, como queria Pessoa:
não haver nela qualquer mistério, só transitoriedade.
Somente nós, os reis da natureza,
queremos que ela pareça eterna
para celebrar o enganoso reinado perene
que impera sobre tudo o que é apenas passageiro,
a começar pela própria vida.
Aí inventamos a vaidade, a prepotência
e todas as demais formas de violência
que nada têm a ver com a lei maior da efêmera sobrevivência.
E insistimos em não ver o que é transitório
porque gostamos de alargar a sensação do infindo
imaginando tempos cósmicos de quinze mil anos solares
que criam um deus à nossa imagem e semelhança.
Não conseguimos aceitar que, no pórtico do silêncio vital,
há avisos claros sobre o que não deveríamos ter feito.

Não fale e siga,
diga e não diga
até a próxima curva
que não existe.
Depois prossiga
direto ao limite
do próximo passo.
Pare, olhe, escute:
se ouvir o silvo
ou o apito
esconda o grito
recolha o espanto.
Escolha o canto,
engula o pranto,
negue o infinito.

É dos segundos, minutos e horas que perdemos a pensar,
esperançosos,
na felicidade que ainda não veio
que formamos nossos futuros vazios,
sem perceber que a distância entre nós e as estrelas
é a ligação de muitos pontinhos sem luz bem próximos um do outro.
Basta olhar ao céu para consignar essa verdade.

Tempo V

Da remissão dos pecados


Eu, pecador, confesso:
deixei de colher pequenas vitórias passageiras
porque busquei glórias definitivas.
Abandonei faces que cativei e me cativaram
em troca de ilusórias paixões imorredouras.
Fui sempre infiel à vida
porque não a percebi nem a recebi
em sua infinda misericórdia e compaixão,
mas me acreditei superior à ela,
e contra ela blasfemei ao criar um deus, deuses e santos
para livrar-me da condenação eterna
por meio de breves arrependimentos
e esconsas meae culpae.
Deixei a balançar mãos solitárias
porque  me neguei a estender as minhas,
pretensamente  solidárias.
Fundei religiões que me impediram
de ver em mim e diante de mim a maravilha da criação
e imaginei paraísos e nirvanas distantes
que turvaram a visão da verdadeira vida.
Por não saber ter olhos para ver,
me reinventei em visionário,
pensando em luzes e cores
muito além de meu já mágico poder de visão.

Tempo VI

Dos encontros, desencontros e reencontros


E eis-me a abraçar a grande curva do universo
que gera encontros e desencontros e novos encontros
todos em seu momento exato, porque escritos na vontade.
Não a vontade da esperança
mas a decisão de ver e estar dinamicamente atento
a tudo que nos rodeia, sem juízos premonitórios.
E eis-me aqui disposto a entender a teia do tempo
que nos torna diferentes a todo momento
e preserva a memória que constrói todos os novos momentos.
Eis-me aqui porque talvez ainda haja mãos estendidas.
Eis-me aqui porque minhas mãos ainda podem operar milagres.
Eis-me aqui porque nego a fuga à retaguarda ou à vanguarda
e sou soldado de meu momento,
de meus momentos encadeados,
perfeitos elos de minha história sagrada e única.
Recolho nos ainda intatos escaninhos da memória
as horas consagradas
e trago-as ao presente, pois presentes estão
e têm o poder de fazer ressurgir o agora
e fazem o milagre da multiplicação de todos os agoras.

Subitamente, sem marcar encontro com o fado,
a voz sussurrou palavras meigas
capazes de cicatrizar feridas ainda abertas.
Uma suave carícia sobre os cabelos já a encanecer
completou a fórmula balsâmica
ontem e nesta nova hora.
E foram mais alguns anos solares à frente
a anunciar o quase esquecimento.
Novas curvas, novas retas
a insinuar-me geômetra para domá-las.
E eu, apenas um mero compositor de linhas toscas
em perigo iminente de fazer enorme maçaroca
de memória e tempo em helicoidais tropeços,
devo tentar recompô-las em devida trajetória
porque não há finais, só recomeços
e cada recomeço uma nova história.

Curitiba, junho de 2010.

_______________

Ilustrações: C. de A.

5 Respostas para “Perda, busca e achamento em seis tempos

  1. Manoel de Andrade

    Este poema não só mostra o grande poeta mas também o admirável pensador. “Recompor nossas linhas na devida trajetória, porque não há finais, só recomeços e cada recomeço uma nova história.” Um gran finale, uma dialética da esperança. Mas também creio que os três ultimos versos, desses quatro momentos mágicos, deveriam antecipar o teu poema porque me parecem o enunciado de todo o seu enredo poético-filosófico, onde você anda de mãos dadas com Nietzsche e com Pessoa.

    Creio que para caminhar pela geometria do universo, o que precisamos é disciplinar o pensamento e potencialisarmos nossas frequências mentais porque, embora ainda cegos para essa realidade, vivemos em mundos paralelos, onde não existe geografia para o espaço, e sequer a finitude, porque a juventude é plena conciência da imortalidade.

  2. ”Eu pecadora me confesso,” de só agora ter tido a oportunidade de me maravilhar com estas palavras magníficas.
    Que poeta maravilhoso, que poesia transcendente…
    Voei por todos os cantos do universo,poisei em todas as estrelas e quando desci à terra, sem palavras, mas com o coração pleno de admiração por você, apenas tive pena de não poder comungar, com um abraço, a plenitude que esta poesia me proporcionou.
    Parabéns.
    Mil beijos ainda plenos de encantamento.
    Vera Lucia

  3. Que bonito desfiar a linha do tempo onde nada se rompe apenas formam meadas, desafiando as Parcas.
    Belíssimas e profundas palavras!

  4. Mauricio Ferreira

    Que bom ler este poema durante a noite silenciosa.
    Ah, Cleto…
    Vc que abre em cruz os poemas da gente
    Também se abre em cruz em suas palavras.
    Acho que a gente está em débito com nosso banqueiro.
    Ele será pago com os juros do diálogo poético,
    ainda que tardio…
    Abraços…
    Mauricio

  5. Uma seleta de poemas de alto nível! Poemas de alto teor filosófico! É de ler e reler para ir adentrando cada vez mais fundo nesse labirinto! Abraços, meu camarada!

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