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Uma canção de Natal, por Alberto Caeiro

Nossa mensagem de Natal

Mais alguns dias e estaremos festejando, como todos os anos, o Natal cristão, hoje mais materialista do que nunca. Todo mundo disposto a torrar parte do décimo terceiro salário em comilanças e presentes e até de arriscar o acúmulo de dívidas para que nada falte durantes as comemorações natalinas. Claro que muitos continuarão olhando pelo lado de fora das vidraças, a esperar pelo Papai Noel dos Correios ou pelo gesto de solidariedade de qualquer pessoa.

Crentes ou não no espírito religioso do Natal, podemos todos concordar que a data, próxima ao final do ano, é por demais oportuna para comemorar o término de uma etapa de vida e carregar as pilhas da esperança no ano que se seguirá. Não deixa de ser apropriada para renovarmos a solidariedade com nossos próximos e até com os distantes ao nosso imediato convívio social. É o que chamamos de espírito natalino, que faz bem para a alma.

O Banco da Poesia, em seu primeiro Natal (nascemos em março deste ano) quer registrar os votos de um Bom Natal para seus colaboradores e leitores, bem como para todo o mundo, nesta época de globalização e de comunicação instantânea.

Mas não vamos utilizar as tradicionais mensagens, que se afastam da vida real e sonham só com coisas boas. Pois a realidade é feita de coisas boas e ruins. E há crianças que serão felizes, neste e nos próximos Natais, e há meninos e meninas que sofrerão frio, medo, sede e fome neste e em Natais vindouros. E se o Natal, simbolicamente, festeja o nascimento do Menino Jesus, um símbolo de pureza e felicidade para todas as crianças da Terra, por que não pensarmos em um menino Jesus mais humano, mais parecido com nossos filhos e com todas as crianças que brincam e se divertem a olhar a natureza e a vagar por ela sem sentir o peso de responsabilidades e censuras?

Historicamente, nada foi registrado sobre a infância de Jesus, desde que seus pais fugiram com ele de Belém, afastando-o das ordens sanguinárias de Herodes. Não sabemos se ele teve uma infância considerada, à época, normal; se frequentou escolas; se teve amigos e participou de jogos e brincadeiras de crianças. Sua vida pública só foi testemunhada, segundo os livros religiosos, a partir dos 30 anos de idade e, até aí, e principalmente em seus primeiros estágios de vida, só podemos contar com nossa imaginação para tentar recriar a história daquele menino.

Os três heterônimos, na imaginação de José de Almada-Negreiros. Caeiro está à esquerda.

Alberto Caeiro (Lisboa, 1889- 1915) imaginou o seu Menino Jesus. Bem diferente do que pintam os quadros religiosos clássicos. Admite que ele era filho de Deus, mas exprime sua discordância sobre os modos em que foi gerado. E imagina o seu menino como um amigo íntimo, com quem brinca, para quem conta histórias. Tão íntimo que se confunde com sua própria alma. Foi essa história, narrada no oitavo poema de O Guardador de Rebanhos, que escolhemos para comemorar o Natal do Banco da Poesia.

Alberto Caeiro nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, e educação quase nenhuma, só instrução primária, morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Morreu tuberculoso.

Este é o resumo biográfico que Fernando Pessoa faz de uma de suas criaturas. Quase inculto, ele usa uma linguagem simples e o vocabulário limitado de um poeta camponês. pouco ilustrado. Por ser contra a metafísica ( “Há metafísica bastante em não pensar em nada”) é o poeta do realismo sensorial, o sensacionista por excelência, cuja atitude contraria as cogitações do Simbolismo.

Segundo Teresa Rita Lopes e Fabiana Santos, Caeiro “afirma que ‘pensar é estar doente dos olhos’, e quer apenas sentir a natureza. Em perfeita consonância com sua busca de simplicidade, escreve versos livres (sem métrica regular) e brancos (sem rimas). Agnóstico, escreve um poema ousado sobre o menino Jesus. Destituído de santidade, Cristo é representado como criança normal: espontânea, levada, brincalhona e alegre. Nisso está a religiosidade de Caeiro”.

Ainda: “Há dois Caeiro, o poeta e o pensador, sendo o primeiro que em teoria se desdobra no segundo. Segundo a imagem que dá dele próprio, vive de impressões, sobretudo visuais, e goza em cada impressão o seu conteúdo original. Não admite a realidade dos números e não quer saber de passado nem de futuro, pois recordar, é atraiçoar a Natureza”.

“No Poema dum Guardador de Rebanho se declara pastor por metáfora. O andar constante e sem destino, absorvido pelo espetáculo da inesgotável variedade das coisas. Os seus pensamentos não passam de sensações. Limita-se a existir, com um sorriso de existir e não de nos falar.”

“Caeiro surge, pois, como lírico espontâneo, instintivo, inculto (não foi além da instrução primária), impessoal e forte, mas muitas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo, pobre de vocabulário, consegue exprimir a infinita diversidade, as incontáveis metamorfoses do mundo.”
Mas não se pense que Fernando Pessoa assumiu tudo o que Caeiro escreveu. Ele mesmo diz ter escrito “com sobressalto e repugnância o poema oitavo do ‘Guardador de Rebanhos’, com sua blasfêmia infantil e o seu antiespiritualismo absoluto. Na minha pessoa própria, e aparentemente real, como que vivo social e objetivamente, nem uso de blasfêmia, nem sou antiespiritualista. Alberto Caeiro, porém, como eu o concebi, é assim: assim tem pois ele que escrever, quer eu queira, quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, nem era mulher, nem, que se saiba, histero-epilético, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama, é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque elas são fictícias e não porque estão num drama.”

“Parece escusado explicar uma coisa de si tão simples e intuitivamente compreensível. Sucede, porém, que a estupidez humana é grande, e a bondade humana não é notável.”

Como se nota. FP já fazia, na abertura de Ficções do Interlúdio (que abrigaO Guardador de Rebanhos) um defesa prévia aos possíveis ataques e desentendimentos que seu poema sobre o menino Jesus humano poderia provocar, após sua publicação.

E também traz, como advogado, seu outro heterônimo Ricardo Reis, este mais acostumado à linguagem clássica, que procura justificar a poesia de Caeiro dentro de uma “coerência intelectual (mais ainda que sentimental, ou emotiva)” e até “desconcertante”. Prossegue Reis: “Tudo isto, porém, é verdadeiramente o espírito pagão. Aquela ordem e disciplina que o paganismo tinha, e o cristismo nos fez perder, aquela inteligência raciocinada das coisas, que era seu apanágio e não é nosso, está ali. Porque, se falta na forma aqui está na essência. E não é forma exterior do paganismo — repito — que Caeiro veio reconstruir; é a essência que chamou de Averno, como Orfeu a Eurídice, pela magia harmônica (melódica) da sua emoção”. Ricardo Reis revela que alguns dos poemas/canções de O Guardador de Rebanhos foram escritos com Caeiro enfermo; daí as diferenças entre alguns dos poemas incluídos no livro.

E volta Pessoa a dizer que, em tais poemas, como em outros de seus heterônimos, “não há que buscar … ideias ou sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se deve ler”.

É como se ele estivesse a dizer: eu os criei, mas não fui eu quem falou…

De qualquer modo, o poema oitavo de O Guardador de Rebanhos é um dos belos escritos de Fernando Pessoa, a interpretar o menino que fugiu do céu por puro aborrecimento e veio à Terra buscar o carinho que lá lhe faltava, como filho só de mãe, com pai postiço e espiritualmente gerado por seres metafísicos e distantes dos sentimentos humanos.

Mal sabia FP que, pouco depois de sua passagem por este planeta, existiriam milhares, talvez milhões de meninos e meninas sem pai, a depender só das mães e das andanças nas ruas, onde aprendem a roubar mais do que frutas em pomares e talvez nunca cheguem a perceber aquela “verdade / que uma flor tem ao florescer / e que anda com a luz do sol / a variar os montes e os vales”.

Mas, blasfemo ou não, o poema de Fernando Pessoa/Alberto Caeiro é enorme em beleza e ternura, sentimentos que combinam com o espírito de Natal.

Poema Oitavo de O Guardador de Rebanhos

Fernando Pessoa com poucos meses, no colo de sua mãe

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Tríndade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas…
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.

Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu,
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou~se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Fernando Pessoa, um ano de idade

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estraadas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

A primeira cadeira de Fernando Pessoa

A primeira cadeira de Fernando Pessoa

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternídade a fazer meIa.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada das coisas que criou —
“Se é que ele as criou, do que duvido” —
Ele diz, por exemplo, que “os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

…………………………………………………………………………………………..

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

Fernando Pessoa aos dois anos e meio

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro.
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Fernando Pessoa com cinco anos

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

…………………………………………………………………………………………..

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

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Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

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Ilustrações: de Fernando Pessoa – Uma Fotobiografia. Organizada por Maria José de Lencastre. Lisboa:Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1981

A Criança é Pai do Homem?

 

“A infância deixa rastros em nossa memória, como sulcos num rosto ou num campo lavrado”.

A frase é do poeta inglês William Wordsworth (1770-1850), que gerou outro belo achado: “A criança é pai do homem”, registrado por muitos como de autoria de Sigmund Freud, mas que teria apenas sido por ele citado em seus trapalhos de psicologia.

Na verdade, somos o que fomos. Nada existe em nossa vida adulta – nossos sentimentos, nosso caráter, nossas aptidões, nossos medos, nosso relacionamento social – que não tenha sido estruturado nos primeiros anos de vida. É por isso que é preciso dar importância primordial à Educação, tanto na fase familiar como no prosseguimento escolar e social.

Mas quando pensamos profundamente nas crianças que fomos, para poder entender os adultos que somos?

Fernando Pessoa pensou nisso com lamentação, em uma composição de dois sonetos e uma quadra. Vale a pena ler seus versos, em homenagem ao Dia Universal da Criança, ontem comemorado.

I

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

II

Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

III

Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.

22-setembro-1933

Descartes ou Pessoa, eis a questão

Descartianas descartáveis

Cleto de Assis

Não há nada que dominemos inteiramente a não ser os nossos pensamentos. René Descartes
Sentir é criar. Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o universo não tem ideias. Fernando Pessoa

 

Descartianas

René Descartes - montagem de C. de A.

 

 

I

Penso logo. Existo?
Sentimos, logo existimos.

A sensação é caos,
O pensamento é ordem.

A sensação liberta,
O pensamento oprime.

O pensamento é linear.
A sensação é multidimensional.

A sensação é agora.
O pensamento é ontem e amanhã.

A sensação é nós.
O pensamento é eu.

A sensação expande.
O pensamento esconde.

O pensamento é inação.
A sensação é movimento.

O pensamento é humano.
A sensação é cósmica.

O pensamento prende.
A sensação transcende.

O pensamento é lógica.
A sensação é mágica.

A sensação é emoção.
O pensamento é razão.

II

Diga e não diga
atento siga
até a curva
que não existe.

Depois prossiga
vá ao limite
do passo incerto.
Pare, olhe, escute.
Se ouvir o silvo
ou o apito
esconda o grito
recolha o espanto
longe do pranto.

Não corra:
pé ante pé
percorra a rota
não decidida
na sua vida.

Não ponha em ordem
seus pensamentos
e nem logique
as sensações.
Há mil razões
pra se viver
na desrazão.

Tenha certeza
da incerteza
que tudo cerca.
Por isso, irmão,
não metodize
um céu brilhante
ou o instante
da flor singela.
A vida é bela,
não pense: exista.

António Botto a Fernando Pessoa

À memória de Fernando Pessoa

xxxxxxxxxxAntónio Botto

antonio_botto2Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão –
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida – esta boêmia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo…
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
– Autênticos patifes bem falantes…
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver –
Sem estímulo, sem fé, sem convicção…
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar –
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!

_______________________

António Tomás Botto (Concavada, Abrantes, 17 de Agosto de 1897 — Rio de Janeiro, 16 de Março de 1959) foi um poeta português.

A sua obra mais conhecida, e também a mais polêmica, é o livro de poesia Canções que, pelo seu caráter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época. Foi amigo pessoal de Fernando Pessoa, que traduziu em 1930 as suas Canções para inglês, e com quem colaborou numa Antologia de Poemas Portugueses Modernos. Homossexual assumido (apesar de ser casado com Carminda Silva), a sua obra reflete muito da sua orientação sexual e no seu conjunto será, provavelmente, o mais distinto conjunto de poesia homoerótica de língua portuguesa. Morreu atropelado em 1959 no Brasil, para onde se tinha exilado
para fugir às perseguições homófobas de que foi vítima, na mais dolorosa miséria. Os seus restos mortais foram trasladados para o cemitério do Alto de São João, em Lisboa, em 1966. (Wikipédia)

O espólio de Fernando Pessoa

Ontem, 30.07.2009, foi aprovado pelo Conselho de Ministros de Portugal o decreto de classificação do Espólio Documental de Fernando Pessoa, tornando-o  bem de interesse nacional.

Na exposição de motivos encaminhada ao Ministro da Cultura, o diretor geral da Biblioteca Nacional de Portugal, Jorge Couto, propôs a classificação do espólio como bem de interesse nacional ou Tesouro Nacional, “compreendido como a universalidade de fato composta por todos os documentos produzidos ou reunidos por Fernando Pessoa, seja na forma de manuscritos autógrafos, isolados ou integrados em documentos de terceiros, assinados ou não, de datiloscritos ou tiposcritos, com ou sem intervenção autógrafa, assinados ou não, bem como todos os documentos biográficos de Fernando Pessoa, assinados ou não, e os documentos impressos que se reconheça terem pertencido à sua biblioteca e ostentem marcas autógrafas de utilização pelo Poeta”.

O fato é importante porque, até há pouco tempo, o espólio literário de Fernando Pessoa, em sua maior parte por ele arquivado em um baú , em páginas manuscritas ou datilografadas e guardadas em envelopes sem nenhuma classificação ou ordem, estavam sob a guarda dos herdeiros de FP ou espalhado entre amigos ou estudiosos. Agora, além da guarda material, a Biblioteca nacional poderá estabelecer uma classificação mais rigorosa, apesar de ser difícil determinar datas de documentos que o poeta não datou e outros que não assinou.

A famisa arca de Fernando Pessoa. O móvel foi vendido, recentemente, em leilão, para um admirador desconhecido, por mais de 50 mil euros. Ao fundo, a estante delivros de sua biblioteca. Sobrepus as assinaturas dos princpais heterônimos, mais a dele mesmo e a de Alxader Searh, um semi=heterônimo de sua juventude.

A famosa arca de Fernando Pessoa. O móvel foi vendido, recentemente, em leilão, para um admirador desconhecido, por mais de 50 mil euros. Ao fundo, a estante de livros de sua biblioteca. Sobrepus as assinaturas dos principais heterônimos, mais a dele mesmo e a de Alexander Searh, um semi-heterônimo de sua juventude.

Dicas de Fernando Pessoa – 05

Caricatura de Gustavo Duarte  http://mangabastudios.blog.uol.com.br/

Caricatura de Gustavo Duarte http://mangabastudios.blog.uol.com.br/

Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são, contudo, sonhos de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.

A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.

Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá, contudo, que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.

Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões.Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.

O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta – estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade – um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.

Nada me satisfaz, nada me consola, tudo – quer haja sido, quer não – me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.

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Do Livro do Desassossego. Pelo semi-heterônimo Bernardo Soares. Organização de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

Dicas de Fernando Pessoa – 04

fernando.pessoaEstTEm junho de 1930, Fernando Pessoa é consultado por um jovem literato, com 23 anos incompletos, sobre um livro que este produzira. A carta do amigo foi respondida com amabilidade, em lições de mestre, com observações claras sobre o que ele interpretava como sensibilidade artística e sua aplicação na obra de arte. Dá conselhos, critica o que ainda crê imaturo e indica caminhos para o amadurecimento. O nome do amigo: Adolfo Rocha, que, mais tarde, adotaria o pseudônimo de Miguel Torga e se tornaria também um dos grandes mestres da literatura portuguesa. Transcrevo parte da carta de FP a Adolfo Rocha, o cerne de seu aconselhamento.

xxxxxxxEm substância, e expondo discursivamente, o ponto de vista que lhe expus é o seguinte:
xxxxxxx1) Toda a arte se baseia na sensibilidade, e essencialmente na sensibilidade;
xxxxxxx2) A sensibilidade é pessoal e intransmissível;
xxxxxxx3) Para se transmitir a outrem o que sentimos, e é isso que na arte buscamos fazer, temos que decompor a sensação, rejeitando nela o que é puramente pessoal, aproveitando nela o que, sem deixar de ser individual, é todavia susceptível de generalidade, portanto, compreensível, não direi já pela inteligência, mas ao menos pela sensibilidade dos outros.
xxxxxxx4) Este trabalho intelectual tem dois tempos: a) a intelectualização direta e instintiva da sensibilidade, pela qual ela se converte em transmissível (é isto que vulgarmente se chama “inspiração”, quer dizer, o encontrar por instinto as frases e os ritmos que reduzam a sensação à frase intelectual (prim. versão: tirem da sensação o que não pode ser sensível aos outros e ao mesmo tempo, para compensar, reforçam o que lhes pode ser sensível); b) a reflexão crítica sobre essa intelectualização, que sujeita o produto artístico elaborado pela “inspiração” a um processo inteiramente objetivo – construção, ou ordem lógica, ou simplesmente conceito de escola ou corrente.
xxxxxxx5) Não há arte intelectual, a não ser, é claro, a arte de raciocinar. Simplesmente, do trabalho de intelectualização, em cuja operação consiste a obra de arte como coisa, não só pensada, mas feita, resultam dois tipos de artista: a) o inspirado ou espontâneo, em quem o reflexo crítico é fraco ou nulo, o que não quer dizer nada quanto ao valor da obra; b) o reflexivo e crítico, que elabora, por necessidade orgânica, o já elaborado.

xxxxxxxDir-lhe-ei, e estou certo que concordará comigo, que nada há mais raro neste mundo que um artista espontâneo – isto é, um homem que intelectualiza a sua sensibilidade só o bastante para ela ser aceitável pela sensibilidade alheia; que não critica o que faz, que não submete o que faz a um conceito exterior de escola ou de moda, ou de “maneira”, não de ser, mas de “dever ser”.

xxxxxxx(em Páginas de Estética e de Teoria e Crítica Literárias. Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho. Edições Ática: Lisboa, 1973)

Dicas de Fernando Pessoa – 03

trifp1Toda a arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer alguma coisa. Há duas formas de dizer – falar e estar calado. As artes que não são a literatura são as projeções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou o drama. Quando se diz “poema sinfônico” fala-se exatamente, e não de um modo translato e fácil. O caso parece menos simples para as artes visuais, mas se nos prepararmos com a consideração de que linhas, planos, volumes, cores, justaposições e contraposições são fenômenos verbais dados sem palavras ou antes por hieoglifos espirituais, compreenderemos como compreender as artes visuais, e ainda que as não cheguemos a compreender ainda, teremos, ao menos, já em nosso poder o livro que contém a cifra e a alma que pode conter a decifração. Tanto basta até chegar o resto.

(De Textos de Crítica e de Intervenção.  Edições Ática, Lisboa:1980)

Fernando Pessoa & Paulo Autran

paulo-autranEncontrei no Youtube um poema de Fernando Pessoa, declamado por Paulo Autran, o grande ator que deixou os palcos da vida há um ano e meio (12 de outubro de 2007). Há outros poemas gravados por Paulo, extraídos da obra do poeta português. Mas este me chamou particularmente a atenção. Voltei a 1965, ano em que Paulo Autran mais Tereza Rachel e Jairo Arco e Flexa trouxeram a Curitiba o musical Liberdade, Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, dirigido pelo último. Foi uma temporada  brilhante no Teatro Guaíra e um pequeno grupo de gente daqui, do qual eu participava, conviveu com o elenco da peça durante a temporada curitibana. Estivemos, em passeio com Paulo e Tereza, na Ilha das Cobras, no litoral paranaense, onde Wilson Rio Apa tinha parentes. Numa noite, na pequena praia da ilha, eu conversava com Paulo sobre poesia e lhe apresentei uns tantos poemas de Fernando Pessoa, que lemos de uma edição completa da Aguilar, na época meu livro de cabeceira. O que mais impressionou o saudoso ator foi exatamente o agora encontrado, dito por ele – Poema em linha reta. Ouçam-no, em homenagem a Pessoa e Autran.