À memória de Fernando Pessoa
xxxxxxxxxxAntónio Botto
Se eu pudesse fazer com que viesses
Todos os dias, como antigamente,
Falar-me nessa lúcida visão –
Estranha, sensualíssima, mordente;
Se eu pudesse contar-te e tu me ouvisses,
Meu pobre e grande e genial artista,
O que tem sido a vida – esta boêmia
Coberta de farrapos e de estrelas,
Tristíssima, pedante, e contrafeita,
Desde que estes meus olhos numa névoa
De lágrimas te viram num caixão;
Se eu pudesse, Fernando, e tu me ouvisses,
Voltávamos à mesma: Tu, lá onde
Os astros e as divinas madrugadas
Noivam na luz eterna de um sorriso;
E eu, por aqui, vadio de descrença
Tirando o meu chapéu aos homens de juízo…
Isto por cá vai indo como dantes;
O mesmo arremelgado idiotismo
Nuns senhores que tu já conhecias
– Autênticos patifes bem falantes…
E a mesma intriga: as horas, os minutos,
As noites sempre iguais, os mesmos dias,
Tudo igual! Acordando e adormecendo
Na mesma cor, do mesmo lado, sempre
O mesmo ar e em tudo a mesma posição
De condenados, hirtos, a viver –
Sem estímulo, sem fé, sem convicção…
Poetas, escutai-me. Transformemos
A nossa natural angústia de pensar –
Num cântico de sonho!, e junto dele,
Do camarada raro que lembramos,
Fiquemos uns momentos a cantar!
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António Tomás Botto (Concavada, Abrantes, 17 de Agosto de 1897 — Rio de Janeiro, 16 de Março de 1959) foi um poeta português.
A sua obra mais conhecida, e também a mais polêmica, é o livro de poesia Canções que, pelo seu caráter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época. Foi amigo pessoal de Fernando Pessoa, que traduziu em 1930 as suas Canções para inglês, e com quem colaborou numa Antologia de Poemas Portugueses Modernos. Homossexual assumido (apesar de ser casado com Carminda Silva), a sua obra reflete muito da sua orientação sexual e no seu conjunto será, provavelmente, o mais distinto conjunto de poesia homoerótica de língua portuguesa. Morreu atropelado em 1959 no Brasil, para onde se tinha exilado
para fugir às perseguições homófobas de que foi vítima, na mais dolorosa miséria. Os seus restos mortais foram trasladados para o cemitério do Alto de São João, em Lisboa, em 1966. (Wikipédia)