Arquivo do mês: outubro 2011

Hélio de Freitas Puglielli: biopoética de Brecht

Visita ilustre: veio até o Banco da Poesia Hélio de Freitas Puglielli, correntista que há muito não comparecia. Trouxe mais depósitos, capeados por simpático recado: ” Querido Cleto, salve! Andei uns tempos fora de órbita, mas agora estou gravitando em torno do seu Banco de Poesia, que está excelente e super atualizado. Admirei, entre outros tópicos, a oportuna tradução e publicação de versos do prêmio Nobel de Literatura 2011, o que, nos velhos tempos da influência francesa, chamava-se de ‘morceaux choisies’ (trechos escolhidos). Também vi que, em 30 de setembro, você rendeu homenagem a Brecht, a quem admiro imensamente. Tanto que havia escrito, tempos atrás, uma espécie de ‘mini-biografia poetizada’. Sei que a sua ‘carteira de depósitos’ está sobrecarregada, mas, se houver espaço e apesar da greve, meu texto aí está.”

E seu texto, sempre bem-vindo, aqui vai.

Olhando Bert Brecht

Em 1927 você foi fotografado por Konrad Ressler.
Era jovem de menos de 30 anos,
mas já tinha três filhos com três mulheres
e estava legalizando a separação com Marianne Zoff
(a primeira com que casou, a segunda que fez mãe).
Disso nada falam o nariz reto,
um pouco arrebitado,
e o olhar sereno e altivo.
O pai de Frank, Hanne e Stefan
sorri levemente,
apesar da tensão dos lábios em torno do charuto.
Veste sobretudo de couro negro, abotoado até o pescoço,
como pressentindo que logo ficaria de luto pela Alemanha
e por si mesmo.
Na aparência olha para frente,
mas as pupilas infletem minimamente para baixo,
o suficiente para dar a impressão de que sua visão defronta-se com a História.
E os ventos da História em seguida te arrastaram pela Europa,
Dinamarca, Finlândia, Suíça, Áustria, Checoslováquia,
até atravessar a URSS e chegar ao porto de Vladivostok,
onde, singrando o Pacífico, o navio te levou aos EUA.
E agora te reencontro, na foto de Gerda Goedhartd,
um homem de 55 anos,
que do jovem só conserva a testa e as espessas sobrancelhas.
O nariz como que se abateu sobre si mesmo,
marcado pelas bochechas fofas e as asas gordas das narinas.
Há um charuto nos lábios,
mas tornou-se necessário o indicador em anzol para também sustentá-lo.
A fisionomia triste fala das vicissitudes em Hollywood,
das entrevistas com os inquisidores à cata de comunistas nacionais e estrangeiros.
Mas o olhar acabrunhado deve refletir a morte do filho Frank,
um dos tantos que tombaram nos campos gelados da Europa Oriental.
Hitler conseguiu matar seu filho, um entre tantos milhões de jovens alemães
amortalhados nos campos de batalha.
Bert Brecht, que sempre lutou pela paz e a justiça,
suga amargamente o indefectível charuto.
Houve certamente a alegria de voltar a Berlim e montar suas peças.
Elas foram encenadas e premiadas também na Europa Ocidental e nos EUA.
Essa alegria você teve em vida,
talvez como compensação ao dissabor de ver que a RDA não era bem a dos teus sonhos.
Mas Brecht, que se preocupava demais com a humanidade e o futuro,
está triste e pensativo na foto de 1953.
Três anos mais tarde estaria livre de todas preocupações
e a nós compete fazer com que seus textos, sim, não morram,
pois sempre haverá alguém assim para defender a dignidade de todos os homens.

Helio de Freitas Puglielli

Ilustração: montagem de C. de A. sobre fotos de Konrad Ressler e Gerda Goedhartd

E o Nobel de Literatura de 2011 vai para… Poesia!

Poeta sueco ganha o Nobel de Literatura

Foto: Sophie Bassouls

Tomas Tranströmer nasceu em Estocolmo, Suécia, em 15 de abril de 1931. Frequentou a Universidade de Estocolmo, onde estudou psicologia e poesia. Considerado um dos poetas mais importantes da Suécia, Tranströmer já vendeu milhares de volumes em seu país natal e sua obra foi traduzida para mais de cinquenta línguas. Seus livros de poesia em Inglês incluem The Sorrow Gondola (Green Integer, 2010); New Collected Poems (Livros Bloodaxe, 2011); The Great Enigma; New Collected Poems (New Directions, 2003); The Half-Finished Sky (2001); New Collected Poems (1997); For the Living and the Dead (1995); Baltics (1974); Paths (1973); Windows and Stones (1972, e Seventeen Poems (1954).

Seu trabalho mudou gradualmente da tradicional e ambiciosa poesia sobre a natureza, escrita em seus primeiros vinte anos, em direção de um verso mais obscuro, pessoal e mais aberto. Seus poemas se dirigem para o vazio, no esforço de entender e lidar com o desconhecido, em busca de transcendência.
“Eu sou o lugar / onde a criação trabalha por si mesma”, declara em seu poema The Outpost, sobre a qual escreveu “Esse tipo de idéia religiosa recorre aqui e ali, em meus últimos poemas, no que eu vejo uma espécie de significado em estar presente, no uso da realidade, em experimentá-la, em fazer algo dela. ”

Tranströmer é o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura de 2011. Suas outras honrarias e prêmios incluem o Prêmio Literário Aftonbladets, o Prêmio de Poesia Bonnier, o Prêmio Neustadt International de Literatura, o Prêmio Oevralids, o Prêmio Petrach, na Alemanha, e o Prémio da Suécia do Fórum Internacional de Poesia.

Lecionou em muitas universidades norte-americanas, muitas vezes com o poeta e amigo Robert Bly. Tranströmer é um respeitado psicólogo e já trabalhou em uma prisão juvenil, com viciados em drogas. Ele vive com sua esposa Monica em Vasteras, a oeste de Estocolmo. Tranströmer sofreu um acidente cérebro-vascular em 1990 que o deixou parcialmente paralisado e incapaz de falar. No entanto, continuou a escrever e a publicar seus trabalhos até os primeiros anos deste Século. Seu último trabalho original, The Great Enigma, foi publicado em 2004. Desde então, deixou de escrever. Mas não abandonou a arte: também pianista, ainda consegue tocar, embora com apenas uma das mãos.
Tranströmer não tem, até agora, sua obra publicada no Brasil. Com a notícia do prêmio, a Biblioteca Nacional publicou hoje, em seu site (http://www.bn.br/portal/) notícia que a sua coleção Poesia Sempre, de nº 25, publicou hai-kais de autoria do poeta sueco, com tradução de Marta Magalhães de Andrade.
Abaixo, três das onze estrofes publicadas, conforme divulgação da BN,

Os fios elétricos
estendidos por onde o frio reina
Ao norte de toda música

O sol branco
treina correndo solitário para
a montanha azul da morte

Temos que viver
com a relva pequena
e o riso dos porões

Para não deixar de apresentar o novo Nobel de Literatura aos leitores do Banco da Poesia, ousei recolher alguns poemas publicados em Espanhol e os traduzi para nossa língua. Espero que essas versões, em razão da triangulação idiomática, não tenham se distanciado em excesso da poesia de seu autor. Os três poemas pertencem a seu livro Sorgegondolen, Ed. Bonniers, Estocolmo, 1996 ( traduzido para o Espanhol como Góndola Fúnebre).

Amor e silêncio

A primavera jaz deserta.
A vala, escura como veludo
se arrasta junto a mim
sem espelhismos.

Somente irradiam
as flores amarelas.

Sou levado em minha sombra
como um violino
em sua caixa negra.

O único que quero dizer
reluz fora de alcance
como a prataria
na casa de penhores.

 O reino da inseguridade


A chefe do escritório se inclina e traça uma cruz
e oscilam seus brincos como espadas de Dâmocles.

Assim como a frágil borboleta se faz invisível no solo
conflui o demônio com o diário aberto.

Um capacete que  ninguém conduz tomou o poder.
A tartaruga-mãe foge voando sob a água.

Folha de livro noturno

Em uma noite de maio aterrizei
em um frio luar
em que a erva e as flores eram grises
mas seu aroma, verde.

Resvalei costas acima
na noite daltônica
enquanto as pedras brancas
assinalavam a lua.

Um espaçotempo
de alguns minutos
cinquenta e oito anos de largura.

E atrás de mim
além das águas reluzentes qual chumbo
estavam a outra costa
e os poderosos.

Gentes com futuro
em vez de rosto.

Ilustrações: c. de assis

Morre o homem que mudou a história das últimas gerações

Sem a sua criatividade e sua persistência, talvez não estivéssemos aqui, reunindo-nos na nuvem internética sempre que desejamos. Ou talvez estivéssemos nos comunicando em diferentes formas. Há quinze anos ele afirmou: “Picasso tinha um ditado: ‘ bons artistas copiam, grandes artistas roubam’. Sempre tivemos vergonha sobre roubar grandes idéias… Acho que parte do que tornou grande o Macintosh é que as pessoas que trabalham nele são músicos, poetas, artistas, zoólogos e historiadores, que também passaram a ser os melhores cientistas de computação do mundo .” O certo é que Steve Jobs soube perceber que o mundo eletrônico é rapidíssimo e apressou esses encontros imediatos com suas criações geniais. Do Apple I ao iPad foram apenas 30 anos. Tivesse a vida lhe reservado mais vinte ou trinta, aonde chegaria? (C. de. A.)

Ser o homem mais rico do cemitério não me importa … Ir para a cama à noite, dizendo que fizemos algo maravilhoso… é isso que importa para mim. “

Steve Jobs

Mais um Pessoa português

Um poeta português de hoje, a mim aprsentado por meu amigo João Defreitas: Joaquim Pessoa. Ele nasceu em Barreiro (na foz do Tejo, em frente a Lisboa) em 1948. Iniciou a sua carreira no Suplemento Literário Juvenil do Diário de Lisboa. Seu primeiro livro foi editado em 1975 e, até hoje, publicou mais de vinte obras incluindo duas antologias. Foram lhe atribuídos os prêmios literários da Associação Portuguesa de Escritores e da Secretaria de Estado da Cultura (Prêmio de Poesia de 1981), o Prêmio de Literatura António Nobre e o Prêmio Cidade de Almada. Poeta, publicitário e pintor, é uma das vozes mais destacadas da poesia portuguesa do pós 25 de Abril, sendo considerado um “renovador” nesta área. O amor e a denúncia social são uma constante nas suas obras e, segundo David Mourão Ferreira, é um dos atuais poetas progressistas naturalmente de capazes de comunicar com um grande público.Para os leitores do Banco da Poesia, três poemas do novo Pessoa português.

O Cão da Tristeza

O cão da tristeza está aqui.
Aqui, sem alma, ferrado no meu espanto.
Puxando as verdes charruas do meu pranto
lavrando a dor cinzenta do meu povo.

O cão da tristeza está aqui.
No giz do meu lume, na fogueira acesa
que queima a minha casa, destrói a minha mesa
e magoa o meu sangue e a minha voz.

o cão da tristeza está aqui.
No açaime do medo que nos cala
na sombra do punhal, no frio da bala
apontada ao coração da nossa esperança.

Canção de estar em terra

Da sede meu amor farei um barco.
Uma vela no porto. E ao vê-la perto
eu direi meu amor que por ti parto
e fico e firo e faço e sigo e ardo.

Direi a rosa o cravo o trevo o cardo.
Darei o corpo, amor. Direi um astro.
Ai flor de quem está farto farto farto
de rimar contra a maré em pinho incerto.

Que mais direi amor? Eu que maldigo
eu que mal amo as coisas conquistadas
que mais direi? Anéis corais espadas?
Já mal me há-de bastar o que eu não digo.

É aqui, de bruços sobre a espuma
que o mar nos causa a dor de estar em terra.
E as palavras nos doem uma a uma.
E os homens em Lisboa fazem guerra.

Palavras

Vi trigo            vi fome
vi ferros           vi feras
vi ruas              vi nomes
vi grades          vi esperas

vi armas           vi muros
vi lutas             vi mortes
vi surdos          vi mudos
vi fracos           vi fortes

vi mares           vi terras
vi negros          vi servos
vi fardas           vi guerras
vi balas             vi nervos

vi corpos           vi cardos
vi fama             vi glória
vi punhos         vi cravos
vitória               vitória

vi abril              vi povo
vi rosto             vi espanto
vi nosso            vi novo
vi pouco           vi tanto

tão cedo           tão cedro
tão certo           tão perto
tão raiva           tão medo
tão mar            tão deserto

tão lua              tão leve
tão pobre         tão pouco
tão fúria           tão febre
tão longe          tão louco

tão alto             tão erva
tão raso            tão resto
conversa           conserva
tão lento           tão lesto

tão urze            tão hoje
tão zero            tão tojo
tão fica             tão foge
tão ontem        tão nojo

tão mata          tão morra
tão égua           tão água
tão pinho         tão porra
tão merda        tão mágoa

Ilustrações: c. de assis