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Ainda relembrando Millôr Fernandes

Ainda surpresos com a viagem de Millôr (como alguém escreveu ontem: o Brasil ficou ainda mais sem graça), colhemos mais algumas flores que ele plantou em sua profícua vida. O gosto pela poesia e sua extrema capacidade de reduzir a algumas palavras uma quantidade enorme de pensamentos levou-o as estudar a técnica japonesa dos Hai-Kais, os pomes sintéticos que concentram ideias em apenas três versos. Sempre com as inefáveis leveza e sutileza do humor.  Em suas páginas da Internet ele deixou publicados muitos exemplos de hai-kais e um ensaio sobre essa forma poética, abaixo transcrito. (C. de A.)

Hai-Kus ou Hokkus

(pequena introdução para os não iniciados)

Millôr Fernandes

O Hai-ku aparece em geral nos nossos dicionários com a grafia de Hai-Cai por dois motivos básicos: o primeiro, a guerra que os filólogos patrícios resolveram deflagrar à linda letra K, pelo simples fato dela ter aquele ar agressivamente germânico e só andar com passo de ganso. A batalha é, evidentemente, perdida, pois a letra teima em permanecer na língua, inclusive firmando-se na imagem, hoje quase mítica, de JK, também artificialmente banido da vida política brasileira.

O segundo motivo do não uso da grafia Hai-ku é a homofonia da segunda sílaba com outra palavra da língua portuguesa, designando certa parte do corpo de múltipla importância fisiológica. Essa palavra os filólogos só usam a medo. Quando a colocam no dicionário fazem sempre questão de acrescentar (chulo). Assim, entre parênteses.

Resolvi – e não entro em detalhes para não alongar esta explicação – usar a grafia (comprometida) Hai-Kai, para as composições deste saite.

O Hai-Kai é um pequeno poema japonês composto de três versos, dois de cinco sílabas e um – o segundo – de sete. No original não tem rima, que geralmente lhe é acrescida nas traduções ocidentais. A época do aparecimento do Hai-Kai é controversa, e sua popularização deu-se no século XVII, sobretudo através da produção de Jinskikiro Matsuô Bashô, simbolista inspirado profundamente em impressões naturais (sobretudo paisagísticas) e adepto do Zen:

A nuvem atenua
O cansaço das pessoas
Olharem a lua.

Em cima da neve
O corvo esta manhã
Pousou bem de leve.

Contudo há quem afirme que Bashô foi ultrapassado, tanto em popularidade quanto em inspiração, pelo poeta do século posterior (XVIII) Yataro Kobayashi (Issa):

Vem cá passarinho
E vamos brincar nós dois
Que não temos ninho.

Bem hospitaleiro
Na entrada principal
Está o salgueiro.

Apesar de sua forma frágil, quase volátil, dependendo da imagística mais do que qualquer outra poesia, uma implosão, não uma explicitação, o Hai-Kai é, contudo, uma forma fundamentalmente popular e, inúmeras vezes, humorística, no mais metafísico sentido da palavra:

Roubaram a carteira
Do imbecil que olhava
A cerejeira.

Eu vi meu retrato
Bem no fundo do lago
Diz o olhar do pato.

Meu interesse pelo Hai-Kai como forma de expressão direta e econômica começou em 1957, quando eu escrevia uma seção de humor (Pif-Paf) na revista O Cruzeiro.

Passei a compor alguns quase semanalmente, usando, porém, apenas os três versos da forma original, não me preocupando com o número de sílabas. Os Hai-Kais deste saite foram compostos entre 1959 e 1986.

De: http://www2.uol.com.br/millor/haikai/intro/index.htm

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O veludo
Tem um perfume
Mudo.

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A imagem tua,
Amante, decai;
Como a da Lua.

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O pôr-do-sol, é certo
Já não me toca
Tão de perto.

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Nem é segredo;
Sou feito de pó, carência,
vaidade –  e muito medo.

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Não sei se mudo
A sexta-feira é um dia
Longe de tudo.

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À nossa vida
A morte alheia
Dá outra partida.

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 Cuidado, Fernando,
Os horizontes
Estão se aproximando.

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Meio-dia e as sombras somem.
Eis uma escondida
Embaixo do homem.

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Morto de ciúme
Sob a luz da lua
Vaga-lume lume.

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Esta é a verdade:
Já sou um homem
Da minha idade.

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1923-2012

Morre Millôr. Viva Millôr!

Vai-se Milton Fernandes, Millôr por acidente ortográfico

Nasceu como Milton Viola Fernandes, mas foi registrado – graças a a um traço fora da linha ascendente do T, que virou um L e o traço um acento circunflexo –  como Millôr. Aos dez anos de idade vendeu o primeiro desenho para O Jornal, do Rio de Janeiro, por dez mil réis. Em 1938 começou a trabalhar como repaginador, factótum e contínuo no semanário O Cruzeiro. No mesmo ano ganhou um concurso de contos na revista A Cigarra (sob o pseudônimo de “Notlim”). Assumiu a direção da publicação algum tempo depois, onde também publicou a seção Poste Escrito,  já assinada por Vão Gogo.

Em 1941 voltou a colaborar com a revista O Cruzeiro, continuando a assinar como Vão Gogo na coluna Pif-Paf, com desenhos de Péricles. A partir daí passou a conciliar as profissões de escritor, tradutor (autodidata) e autor de teatro.

Em 1956 dividiu a primeira colocação na Exposição Internacional do Museu da Caricatura de Buenos Aires com o desenhista norte-americano Saul Steinberg e, em 1957, ganhou uma exposição individual de suas obras no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Dispensou o pseudônimo Vão Gogo em 1962,  passando a assinar Millôr em seus textos n’O Cruzeiro. Deixou a revista no ano seguinte, por conta da polêmica causada com a publicação de A Verdadeira História do Paraíso, considerada ofensiva pela Igreja Católica.

Em 1964 passou a colaborar com o jornal português Diário Popular. Em 1968 começou a trabalhar na revista Veja e, em 1969, tornou-se um dos fundadores do jornal O Pasquim, junto com Ziraldo, Jaguar, Prósperi, Claudius e Fortuna.

Millôr também for um dos criadores do jornal “O Pif-Paf” que, apesar de ter durado apenas oito edições, é considerado o início da imprensa alternativa no Brasil. Seu site publicava páginas da antiga publicação.

Nos anos seguintes escreveu peças de teatro, textos de humor e poesia, além de voltar a expor no Museu de Arte Moderna do Rio. Traduziu, do inglês e do francês, várias obras, principalmente peças de teatro, entre estas clássicos de Sófocles, Shakespeare, Molière, Brecht e Tennessee Williams.

Depois de colaborar com os principais jornais brasileiros, retornou à Veja em setembro de 2004, de onde sairia, em 2009.

Na virada do século, lançou seu site oficial “Millôr Online”. Mesmo com a avançada idade, foi sempre ligado a internet, às redes sociais, e possuía conta no Twitter com mais de 360 mil seguidores.

Sua morte, ocorrida hoje, 28 de março de 2012, tomou o Brasil de surpresa, logo após o falecimento de outro grande humorista, Chico Anísio. Morreu como o Grande Millôr, outro da coluna dos insubstituíveis. Humoista, sim, mas também grande poeta satírico, na mesma dimensão de um Bocage ou de um Gregório de Matos. (C. de A.)

Poeminha de homenagem à preguiça universal

Que nada é impossível
não é verdade;
todo o mundo faz nada
com facilidade

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Poeminha da negação da afirmação

Sou um homem bem comum
sem nenhuma aspiração.
Não quero ser general
e muito menos sultão.
Sou moderado de gastos,
de ambição reduzida,
não sonho ser big-shot
estou contente da vida.
Nunca invejei o próximo
nem lhe cobiço a mulher,
pego o meu lugar na fila
e seja o que Deus quiser.
Não sou mau pai, nem mau esposo,
Grosseiro nem invejoso
– só um pouco mentiroso.

Poeminha sobre as reações paradoxais numa sociedade

Na conversa sofisticada
a debutante, nervosa,
tem um problema bem seu:
fingir que entende tudo
ou fingir que não entendeu

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Poeminha sobre o Tempo

O despertador desperta,
acorda com sono e medo;
por que a noite é tão curta
e fica tarde tão cedo?

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Saudação aos que vão ficar

Como será o Brasil
no ano dois mil?
As crianças de hoje,
já velhinhas então,
lembrarão com saudade
deste antigo país,
desta velha cidade?
Que emoção, que saudade,
terá a juventude,
acabada a gravidade?
Respeitarão os papais
cheios de mocidade?
Que diferença haverá
entre o avô e o neto?
Que novas relações e enganos
inventarão entre si
os seres desumanos?
Que lei impedirá,
libertada a molécula
que o homem, cheio de ardor,
atravesse paredes,
buscando seu amor?
Que lei de tráfego impedirá um inquilino
– ante o lugar que vence –
de voar para lugar distante
na casa que não lhe pertence?
Haverá mais lágrimas
ou mais sorrisos?
Mais loucura ou mais juízo?
E o que será loucura? E o que será juízo?
A propriedade, será um roubo?
O roubo, o que será?
Poderemos crescer todos bonitos?
E o belo não passará então a ser feiura?
Haverá entre os povos uma proibição
de criar pessoas com mais de um metro e oitenta?
Mas a Rússia (vá lá, os Estados Unidos)
não farão às ocultas, homens especiais
que, de repente,
possam duplicar o próprio tamanho?
Quem morará no Brasil,
no ano dois mil?
Que pensará o imbecil
no ano dois mil?
Haverá imbecis?
Militares ou civis?
Que restará a sonhar
para o ano três mil
ao ano dois mil?

Poesia Matemática

Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
“Quem és tu?”, indagou ele
em ânsia radical.
“Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa.”
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.

Millôr era um grande frasista. Resumia, em poucas palavras, grandes reflexões, como esta:

Claro, sabemos muito bem que VOCÊ, aí de cima, não tem mais como evitar o nascimento e a morte. Mas não pode, pelo menos, melhorar um pouco o intervalo?

Guardei, desde meu tempo de guri, uma outra famosa, publicada no Ministério de Perguntas Cretinas, do Pif-Paf da revista O Cruzeiro:

Por que se chama parto uma coisa que deveria se chamar chego?