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22 de março, Dia da Água

Depois do Dia Mundial da Poesia, vem o Dia da Água, outra substância indispensável para a sobrevivência humana. Produto da união de dois gases – um altamente inflamável e outro acelerador da combustão – a água tem a paradoxal capacidade de apagar o fogo e, em estado sólido, reduz drasticamente as temperaturas. Como imaginamos que esta sagrada siubstância jamais acabará, não somos exatamente os melhores guardiões da água, por este mundo afora. Desperdiçamos água, contaminamos e secamos nascentes, poluimos os mares e as grandes reservas de água potável. Daqui a 15 anos, segundo a ONU, mais da metade da população mundial,  ou seja, perto de 3 bilhões de pessoas,  sofrerá escassez de água. A organização também informa que hoje, a cada ano, morrem cerca de 1 milhão e 600 mil pessoas por dificuldades de acesso a água e falta de saneamento básico.

Como afirmou o escritor João Guimarães Rosa:

A água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade:
só tem valor quando acaba.


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Água não é poesia, mas pode ser fonte inesgotável de inspiração poética. Por isso fomos pedir água a alguns poetas para comemorar o seu dia. E, no final do post, anexamos dois pequenos filmes que nos mostram o mundo maravilhoso da água, em sua origem e como fonte permanente de vida. Afinal, sempre é bom recordar que somos formados primordialmente de água: chegamos a conter até 80% do precioso líquido (até os dois anos de idade). Depois essa proporção decresce, com o passar dos anos. O que significa que, ao envelhecermos, simplesmente desidratamos. E, em um belo (ou feio) dia, vaporizamos literalmente.

Enquanto isso não ocorre, louvemos a água, nossa inseparável companheira. C. de A.

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É uma lei da natureza: os homens se congregam onde as águas convergem.

Jacques Yves Cousteau (1914-1997) naturalista francês

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Nossa sabedoria

Carlos Nejar


Nossa sabedoria é a dos rios.
Não temos outra.
Persistir. Ir com os rios,
onda a onda.
Os peixes cruzarão nossos rostos vazios.
Intactos passaremos sob a correnteza
feita por nós e o nosso desespero.
Passaremos límpidos.
E nos moveremos,
rio dentro do rio,
corpo dentro do corpo,
como antigos veleiros.

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Luís Carlos Verzoni Nejar,  (Porto Alegre, 11 de janeiro de 1939), é um poeta, ficcionista, tradutor e crítico brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras.

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Trucidaram o rio

Manuel Bandeira


Prendei o rio
Maltratai o rio
Trucidai o rio
A água não morre
A água que é feita
de gotas inermes
Que um dia serão
Maiores que o rio
Grandes como o oceano
Fortes como os gelos
Os gelos polares
Que tudo arrebentam.

De Estrela da Manhã

Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho, poeta brasileiro (Recife, 19 de abril de 1886 – Rio de Janeiro, 13 de outubro de 1968)

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Água

Francisco Joaquim Bingre


O líquido delgado e transparente
Com que o barro amassou o Autor sob’rano,
Da insigne construção do corpo humano,
Que temperas do home o fogo ardente!

Quando a chama se ateia em continente
Tu corres a sustar o nosso dano:
Tu desabafo és do mal tirano,
Que ataca o coração, soltando a enchente.

Quando tu pelos poros és filtrada,
Água que o fogo aquece, a calma fica
Da máquina acendida, refrescada.

Porém, quando o suor gela na bica,
Quando o frio te torna condensada,
Nossa queda final se verifica.

De Sonetos

Francisco Joaquim Bingre, poeta arcádico e pré-romântico português (9 de Julho de 1763 – 26 de Março de 1865).

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Lição sobre a Água

António Gedeão


Este líquido é água.
Quando pura
é inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
sob tensão e a alta temperatura,
move os êmbolos das máquinas que, por isso,
se denominam máquinas de vapor.

É um bom dissolvente.
Embora com excepções mas de um modo geral,
dissolve tudo bem, ácidos, base e sais.
Congela a zero graus centesimais
e ferve a 100, quando à pressão normal.

Foi neste líquido que numa noite cálida de Verão,
sob um luar gomoso e branco de camélia,
apareceu a boiar o cadáver de Ofélia
com um nenúfar na mão.

De Poesiascompletas

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António Gedeão, pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho (Lisboa, 24 de Novembro de 1906 – 19 de Fevereiro de 1997), foi um afamado poeta, professor e historiador da ciência portuguesa.

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Água

André Carneiro


Água, feita de volubilidade
mãe das nuvens e do barro.
posso senti-la discreta
transparente inevitável.

Prisioneira gelada
dos refrigeradores,
vago itinerário dos peixes,
húmido túmulo dos detritos
que os homens repudiaram.

Feita de angústia,
saíste dos olhos
para a estrada áspera
das rugas.

Ergues tua bandeira vermelha
no peito dos apunhalados.

Água,
hei-de beber-te comovido
na inodora volúpia
da tua acomodada transparência.
Embebes de esquecimento
os suicidas.

Tuas mãos rudes
agarram os continentes,
dissolvem os náufragos,
projectam no céu
os velames e as quilhas.
Bojo surdo e verde
cofre de algas e flibusteiros,
bactérias e diamantes.

Quero-te agora
inerte de presságios,
mera adolescente
nascida na terra,
filha perdida do azul.

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André Carneiro (Atibaia, 9 de maio de 1922) é um poeta, escritor, cineasta e artista plástico brasileiro.

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No alto mar

Sophia de Mello Breyner Andresen


No alto mar
A luz escorre
Lisa sobre a água.
Planície infinita
Que ninguém habita.

O Sol brilha enorme
Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.

Livre e verde a água ondula
Graça que não modula
O sonho de ninguém.

São claros e vastos os espaços
Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abre neles os seus braços.

De Poesia (1944)

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Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004) foi uma das mais importantes poetas portuguesas do século XX.

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O rio

Gilberto Mendes Teles

O que me agrada no rio,
o que melhor me convém
nas suas águas de cio
e de tristeza também

é a cantiga de quem
viaja por desfastio,
sem saber que o mar além
seja distante ou vazio.

O rio não perde o fio
de tempo que vai e vem
entre a nascente e o ciicio
da foz qeu sempre contém

o que se quer como um bem
que, sendo embora tardio,
é sombra de peixe e tem
seu melhor tempo no rio.

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Gilberto Mendonça Teles (Bela Vista de Goiás, 30 de junho de 1931) é escritor, professor e poeta brasileiro. Visite sua página no Banco da Poesia.

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A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta. Vai carregar água na peneira a vida toda.

Manoel Wenceslau Leite de Barros, poeta matogrossense, (Cuiabá, MT, 19 de dezembro de 1916). Atualmente mora em Campo Grande, MS.


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