No final de semana que passou, conversei com muita gente que nunca ouviu falar de Wilson Martins (3 de março de 1921 — Curitiba, 30 de janeiro de 2010). Jovens com diplomas universitários não sabem que ele foi um crítico literário respeitadíssimo no Brasil e no exterior, notadamente nos Estados Unidos, onde viveu por quase trinta anos, como professor visitante da Universidade Kansas (1962), professor associado na Universidade de Wisconsin-Madison (1963/1964), e professor titular de Literatura Brasileira na New York University (1965/1991). Voltou ao Brasil e recolheu-se imediatamente em sua cidade adotiva, Curitiba (ele era paulistano de nascimento), para exercer o trabalho no qual era mestre. Bacharel em Direito e Doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná, mesmo no exílio acadêmico jamais deixou de pensar em sua terra e em sua gente.
Daquele período pertencem as obras Teatro Brasileiro Contemporâneo (1966); O Modernismo (1967); História da Inteligência Brasileira (1976-1978); A Crítica Literária no Brasil (1952 e 1984) e Um Brasil Diferente (1989). Anteriormente já havia publicado Introdução ao Estudo do Simbolismo (1953); Poesia e Prosa. Distinção (1954); Um Brasil Diferente (1955); A Palavra Escrita (1957) e A Poesia de Saint-John Perse (1961). Depois de sua volta, publicou ainda Pontos de Vista (coletânea de artigos elaborados entre 1991 e1997) e Literatura Paranaense (1999).
Sempre ligado ao Paraná, fez sua grande homenagem ao estado com a obra Um Brasil Diferente, na qual analisou o processo de aculturação paranaense. São suas palavras: “Esse livro teve, em certo sentido, a desventura de contrariar pontos de vista estabelecidos no Brasil. Todos estão convencidos de que o homem brasileiro é um produto do negro, do português e do indígena. Contrario essa idéia porque, aqui no Paraná, não houve escravidão como sistema econômico de produção. Houve escravos, o que é diferente. Historicamente, o Paraná teve tipos de cultura econômica que não exigiam grande número de trabalhadores: a pecuária, o mate, a madeira. Essa situação, ligada ao fato de que o Estado apareceu na história ligado à imigração estrangeira, impediu que a escravidão fosse necessária aqui. Tudo isso deu ao Paraná uma fisionomia diferente. Essas idéias contrariavam os lugares-comuns aceitos e o livro foi recebido em silêncio. […] Tanto que não tive críticas desfavoráveis – nem favoráveis. E espero até hoje”*.
Notem a leveza da queixa final. O Paraná, esse “Brasil diferente” elogiado por Wilson Martins, também não soube reconhecer devidamente o seu imenso trabalho. Em 1985, Aramis Millarch registrava a visita do escritor a Curitiba, onde ele proferiu uma palestra a estudantes de Comunicação, graças ao esforço quase solitário de Cassiana Lícia de Lacerda, então professora de Literatura e ex-diretora do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPR. Diz Aramis, em outro ponto da notícia: “Anualmente, Wilson Martins vem a Curitiba, por conta própria, rever familiares e amigos. Embora jamais tenha deixado de manter as raízes paranaenses, Wilson Martins fez carreira universitária nos Estados Unidos e está entre os críticos literários cuja palavra é do maior prestígio. Durante anos, no suplemento literário de O Estado de São Paulo, atualmente no Jornal do Brasil, seu trabalho não fica apenas na contribuição avulsa. Autor de uma obra fundamental (a partir do básico Um Brasil Diferente), o grande estudo sociológico-crítico da formação do Paraná – a História da Inteligência Brasileira, os livros de Wilson abrangem vários campos, sempre com a maior competência”. E mais:”Há alguns anos, foi proposta a reedição de Um Brasil Diferente através da editora da Universidade Federal do Paraná, a famosa ‘Conceição’, que publica livros que ninguém sabe, ninguém vê. O projeto, naturalmente, foi recusado, assim como anteriormente as propostas de coedição de A História da Inteligência Brasileira e Crítica Literária no Brasil, também da Cultrix e da Francisco Alves, respectivamente”.
É verdade que a Imprensa Oficial do Paraná editou e reeditou, mais tarde, livros de Wilson Martins, mas a nossa universidade falhou estrondosamente. No mínimo, ele deveria ter sido agraciado com o galardão de Professor Emérito da instituição que o formou.
De fato, Wilson Martins exerceu seu trabalho de crítico literário com uma elegância sem par. Sabia levantar as fraquezas das escrituras literárias sem ofender os autores e, muitas vezes, ressalvando pontos positivos. Também não se cingia apenas aos iluminados, mas sabia incentivar os quase desconhecidos, jovens aprendizes da literatura em que reconhecesse valores e promessas. Mas a estes determinava, com severidade: “Não há exemplo de grande escritor, em qualquer lugar do mundo, que tivesse dependido de incentivo externo para se expressar. Quem tem algo para fazer, faz. Se a pessoa tem algo para escrever, não precisa estimular. O iniciante precisa de obstáculos e desafios”.
A Academia Brasileira de Letras não o acolheu, embora tenha deixado a monumental obra (12 volumes) História da Inteligência Brasileira, coroa da extensa obra que deveria ter sido reconhecida como passaporte para seu ingresso no reino da imortalidade acadêmica. Preferiu dar a ele, em 2002, um prêmio pelo “conjunto da obra”. Por coincidência, no mesmo ano em que admitiu Paulo Coelho em seu sagrado seio. Aliás, Wilson Martins dedicou ao popular, famoso, dono de polpuda conta bancária e místico escrevinhador dois artigos de extrema sutileza crítica, nos quais usa palavras do próprio Coelho para identificar os seus pragmáticos objetivos literários.
E lá se vai um dos monstros sagrados da crítica literária. Aquela que edifica, torna mais nobre as belas letras e antepõe a cultura a qualquer outro sentido humano de construção do mundo.
Seu único erro, no final da vida: ter viajado para a imortalidade em um fim de semana, quando boa parte da população brasileira estava concentrada na configuração de um novo paredão do Big Brother. Mas ele devia saber que isso também faz parte da história da inteligência nacional.
O Banco da Poesia homenageia Wilson Martins com a transcrição de um de seus ricos artigos, exatamente um em que analisa o papel da crítica. (C. de A.)
* Entrevista à Gazeta do Povo
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Sobre a crítica
Wilson Martins

"Quem é Wilson Martins? Intelectual no sentido largo, crítico literário no sentido restrito. Leitor profissional. Como professor de literatura, fui, creio eu, um crítico que desejava despertar nos estudantes o espírito crítico e o amor à leitura. Wilson Martins" (foto e legenda da Gazeta do Povo)
Os críticos são guardiães de cemitério, dizia Jean-Paul Sartre com ironia bem gaulesa – mas seria preciso acrescentar que são também zelosos curadores da Galeria da Fama, onde bustos e retratos testemunham das glórias que passaram. Chamando-se a si mesmos de imortais desde a fundação da Academia Francesa e acreditando realmente sê-lo, os escritores franceses dos séculos 17/18, que eram então os grandes escritores do mundo, foram reunidos por Voltaire no Templo do Gosto (1733), onde se veneravam as regras do bom gosto e da correção linguística, de forma que o assunto tem mais importância e seriedade do que pareceria à primeira vista.
Contudo, não eram regras arbitrárias fixadas pelo bizantinismo de gramáticos ociosos: o critério da correção lingüística, ensinava Vaugelas, mestre supremo, era o uso das pessoas educadas de Paris. É desses cânones, de perto ou de longe, que deriva o código da crítica literária no Brasil, configurada a partir do século 19 pela doutrina e pela prática dos grandes críticos, Sílvio Romero e José Veríssimo, sucedidos, no seguinte, por Alceu Amoroso Lima e Álvaro Lins, cada um deles refletindo, como era inevitável, a marcha das idéias libertárias. Na verdade, Sílvio Romero, com seu inquietante instinto de matador em série, jamais praticou a crítica regular e sistemática: era mais um homem do livro que do jornal, no que se distinguia de José Veríssimo, homem de jornal que chegou ao livro por derivação. Sílvio Romero não servia para guardião do cemitério nem para curador da Galeria da Fama, tendo antes a tendência de não deixar os mortos em paz – nem os vivos, é preciso reconhecê-lo. Desnecessário acrescentar que só aceitava a Galeria da Fama se rearranjada ao seu gosto ou ao gosto das novidades científicas que se multiplicavam e jamais foram tão abundantes quanto no seu tempo.
O soturno José Veríssimo, de temperamento monástico, entrou para a literatura como se consagrasse numa ordem religiosa – e das mais rigorosas. Se lhe sobravam equilíbrio intelectual e desassombro de julgamento, indiferente, como era, às vaidades fáceis e às verdades aceitas, faltava-lhe o calor humano e a vitalidade animal de Sílvio Romero. De qualquer modo, são esses os patronos da corporação entre nós, um com o fascínio da cientificidade (seu ideal confessado era fazer crítica “naturalista”, ou seja, na linha dos sistemas científicos em voga), o outro em busca do velocino de ouro literário, encontrando-o afinal na obra de Machado de Assis.
A crítica literária tem compromisso com a atualidade e a ambição da permanência: é por isso que os críticos reúnem periodicamente em volume os seus trabalhos, como capítulos virtuais da futura história da literatura, para o qual, em linguagem de ourivesaria, serviam de contraste, isto é, como índice de avaliação. Sainte-Beuve, santo protetor da irmandade, reuniu em 16 volumes as Causeries du Lundi que, com o passar do tempo, transfiguraram-se em história literária; José Veríssimo deixou os Estudos de literatura brasileira em seis volumes, a que se acrescentou o sétimo postumamente; os Estudos de Tristão de Athayde, referentes ao seu período de crítico militante, compõem cinco volumes, enquanto os sete do Jornal da Crítica, de Álvaro Lins, foram posteriormente reformulado e republicados com títulos diferentes, sem esquecer os dez volumes de Sérgio Milliet no Diário Crítico. A tradição continua: podemos acrescentar-lhes os Ensaios escolhidos, de Ivan Junqueira (I: De poesia e poetas; II: Da prosa de ficção, do ensaísmo e da crítica literária. São Paulo: A Girafa, 2005). De minha parte, os 15 volumes dos Pontos de Vista (São Paulo: T.A. Queiroz, 1991/2004) reúnem parte do que escrevi n’O Estado de S.Paulo durante 20 anos a partir de 1954, e n’O Globo, de 1995 a 2005, além de outros periódicos. Retomo no Jornal do Brasil as funções de crítico titular, onde as exerci entre 1978 e 1995. A editora Topbooks programou uma nova série que, com o título de O ano literário, compreenderá a matéria de 2005 em diante. Nesse contexto, cabe, talvez, repetir que sempre entendi a crítica como um diálogo, ou, antes, um “triálogo”, no qual se ouvem as vozes do Autor, com a obra, do Crítico, com a análise, e do Leitor, com o julgamento final, instituído a partir das perspectivas abertas pelos dois primeiros. Assim, é na verdade, o leitor que estabelece o circuito literário, é ele que faz “passar a corrente”. Claro, Autor, Crítico e Leitor são entidades nominalistas, não pessoas reais: trata-se de personae complementares, nas quais a literatura simultaneamente se hipostasia. Entre parênteses, bem sei que a raiz da palavra diálogo é dia, significando “através”, e não di, significando “dois”, inocente trocadilho que servirá para veicular a idéia.
Lembremos, ainda, que a opinião crítica não é imposta por nenhum crítico individualmente considerado, mas pelo contraste das diversas reações que a obra provoca: o autor é a fonte da idéia criadora; o leitor é o mundo coletivo em que o texto vai atuar. Não há, pois, autor, crítico e leitor, mas autores, críticos e leitores. O “triálogo” se resolve, afinal, num colóquio, num ágape, mais socrático, isto é, crítico e irônico do que platoniano, isto é, doutrinário e docente. Todo o processo é de natureza dialética, não um desenvolvimento linear que irá do autor ao leitor, passando pela “estação de recalque” representada pelo crítico.
Nesse quadro, a Nova Crítica norte-americana, aliás simples decalque da prática pedagógica aplicada pelos franceses no ensino médio, inoculou na análise literária o vírus mortal responsável pela febre teorizante que se manifestou internacionalmente nas duas décadas seguintes, cada grupo mais pedante que os anteriores e todos movidos por um vocábulo absconso, próprio dos médicos de Molière. Ainda hoje há recessivos brasileiros que se referem aos “sememas” e aos “semantemas”, às “camadas imagéticas” e à “estruturação semêmica”. Espantado ao ler uma dessas exegeses de sua poesia, Carlos Drummond de Andrade escreveu a obra-prima do sarcasmo que é o poema “Exorcismo”: “Da ortolinguagem, libera nos, Domine… Da semia… Do sema, do semema, do semantema… Libera-nos, Domine […]”.
Ao que tudo indica, o exorcismo surtiu efeito.
Jornal do Brasil – 03.09.2005