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Vera Lúcia traça nova rota

Mendigo

Vera Lúcia Kalahari, Portugal/Angola

Um dia, a miséria
Esfarrapada, amargurada,
Veio bater-me à porta.
Vinha de longe
Em trajes de mendigo.
Nos seus trapos,
No seu alforge,
No seu bordão,
Trazia o traço da fome
E da desdita.
Veio de manso,
Humildemente,
Como um cão escorraçado
Pedir-me esmola.
Não lhe dei nada…
Nesse dia,
Um desses dias pesados,
Atarefados,
Não tinha mãos.
Estava tão ocupada…
Mais tarde, senti vergonha
Daqueles olhos cansados,
Atormentados.
Um dia,
Esta porta que se fechou
À miséria faminta,
Fechar-se-á também para mim.
Já sem vestes de senhora,
Sem trabalhos nem canseiras,
Não estarei enfadada, preocupada.
Terei também o meu bordão
E o meu traje de miséria.
Procurarei esse mendigo
E iremos então os dois
Por todas as ruas,
Batendo em cada porta,
Com o sol ardente a aquecer-nos
Pedindo que cada um
Nos abra o seu coração.

Metáforas em busca de atento escutar

Certa vez, ao ilustrar  poema de um bardo amigo, coloquei nas mãos da figura pensativa, à beira do mar, um simples bastão. A idéia era mostrar um observador, que sonhava, na praia, em navegar nas velas do barco ao alcance de seu olhar. Naquele momento de descanso da caminhada e imerso na paz de seu velho sonho marinheiro,  apoiava-se no seu pequeno cajado. Mas nem sempre o que imaginamos é o que os outros sentem. E meu amigo poeta reclamou, pois o bordão, mesmo simbólico, lhe parecia bengala de arrimo a vetusto e cansado espectador das marés.

Ora, direis, tira-lhe o báculo e devolva-lhe a vitalidade dos mais jovens. Mas lhes responderei, ainda usurpando de Bilac a frase: por certo perdestes também a visão correta! Jamais lhe daria um bastão de apoio à velhice (a não ser que fosse necessário), mas quis simbolizar na pequena haste o apoio a seu espírito de peregrino. Talvez me explique melhor no poema abaixo. (C. de A.)

Ode ao bom pastor

Montagem sobre gravura de Albrecht Dürer

Dizem que Hermes, filho de Zeus e da ninfa Maia
e irmão de Apolo,
antes de se tornar deus do comércio,
amava a música e enriqueceu-a com a lira.
Apolo, embevecido com o novo instrumento,
permutou-o por um bastão mágico
que dava a seu possuidor conduta reta e prudência moral,
além de poder, diligência, sabedoria e superiores pensamentos.
Mas Hermes continuava a amar a música e criou a flauta
(cochicham as ninfas que muito antes de seu romano filho Pã),
e em troca recebeu do irmão o dom da sabedoria.
E para dotar o mundo de equilíbrio e justiça,
teria criado a balança,
na qual Têmis passou a sopesar as ações dos homens.

A Hermes seu pai proveu-o de asas nos pés
e ele se tornou o deus dos viajantes,
inspirador dos peregrinos,
condutor dos viandantes sem rumo,
iluminante das beiras dos caminhos
e protetor de todos os que se apóiam em bastões seguros
para tornar menos árduas as caminhadas.

Poeta, tu que partiste em busca da paz e da justiça,
e empunhaste outrora o símbolo equivocado da lança fratricida,
bendito seja o teu retorno às asas da pomba peregrina
que carrega o ramo da oliveira para anunciar bom tempo
e a paz dos mares, e o perfume dos ares,
e a fartura da terra que concede saudável alimento para o corpo
e a ternura da palavra que consagra fraterno alimento para a alma
e a transformação da haste mortal em firme bastão de ajuda.

Vagaste por rotas erradias, muitas vezes sem saber que destinos alcançar
mas guardavas dentro de ti a certeza do encontro seguro contigo mesmo
e de reencontros com os que deixaste para trás
quando seguiste por sendas que só teu canto iluminava,
sempre guardado pelo vigia das veredas desconhecidas.

Por certo andaste por trilhas distantes das caminhadas por Hermes,
sem ouvir liras de cascos de tartaruga
e afinadas flautas de bambu gregas ou romanas.
Mas criaste tua própria Arcádia nos zênites andinos
ao som de zamponhas  e charangos,
engendrados em frágeis taquaras e cascos de tatu
e harmonizados por Apu Kun Tiqsi Wiraqutra,  Senhor e Maestro do mundo.

Bendito sejas tu, porque garimpaste a paz na rudeza das palavras primevas
e  hoje fazes de tua voz conselho e bálsamo para os aflitos
e alcançaste a verdadeira liberdade nos teus sequentes cantares,
onde toda utopia está a teu alcance, porque construída em bondade.

Se o cajado que te dei
foi de súbito confundido com o apagar da juventude
assegura-te que ele é símbolo da sabedoria, da ajuda fraterna
e da medicina da alma, sem o peso de serpentes conflitantes.
Apóia-te nele e segue em tua faina de pastor nos campos da poesia
e continua a lavrar e levar paz e alimento a teu rebanho de palavras.

Cleto de Assis – fevereiro 2010