Arquivo do dia: 23 de março de 2014

Novo depósito de Iriene Borges

14 de março próximo a Curitiba · Editado

A Antagonista

Iriene Borges

Antagonista

Vi-me em sua graça, musa cheia de virtude
e mais austera do que é fecundo suportar.
Súbito meu sol nascia entre os dentes
da fera de ciclo lunar
e quando nos sentia crescentes
ela me fazia minguar.
Em instintivo reparo abandonei seu altar
enquanto estragava seu vinho
e embolorava seu pão.

Antes que eu fruísse a liberdade
surgiu Nova
incrustrada em helênica figura.
Eis que me aprova e atribui verdade
em sibilos castelhanos.
Tem a estatura mental dos sábios gregos
e é animada pelo espirito dos livros.
Imita os bons samaritanos
ao amparar meus passos trôpegos
mas sem se deixar tocar.
É joia para ser vista pelos vidros.

Alarme disparado,
fui desfazendo-me
pelas veredas mais inóspitas
dessecando em esquecimento
e quase êxito
quando um hálito tépido
umedeceu minhas costas.
Ela
crescente arremedo
a encobrir-se em parcos tecidos
nata nos cantos da boca
e a erupção de outros pruridos
a vivificar-me em ritualísticas repulsas.
E anestesia com o sorriso
a brutalidade de arrastar-me
pelas alças do intestino.
Longo caminho percorremos
‒ Ela a titerear ‒
até que reclamei meu destino
e deixei-me eviscerar.

Em desprendimento flui contente
de ser enfim a pluma e o lenimento
até ir de arrasto num sopro de gratidão.
Ela
cheia de inocência e sensualidade
na precisão que algum Fídias moderno
talhara para o pasto das mídias
a salientar o meu anonimato
com o glamour dos ícones populares.
Disparei sob uma salva de soluços
num lampejo de recato.
Até o tempo revelar-me
com alguma articulação e molejo
entre os peripatéticos.

E sem demora pôs-se a questionar
minha filosofia uma face Minguante.
Diluída em niilismo antes de adquirir
a constituição que se restaura
reivindicou-me uma aura grotesca.
Carne em brasa que se deslumbra
com a fresca, sumi na umbra.

Destino negro, transpus onze círculos
sem apologia ao heroísmo
e após a instrução do abismo
dei-me à luz.
Certa de novo confronto vigiava
crente que ela irromperia
dentre as bestas do plenilúnio
mas veio sem os auspícios da lunação.
No seu credo o infortúnio
é um indício da iniciação
e reclina-se humildemente
enaltecendo meu despojo.
Intuí nos cicios da monja
uma artífice da lisonja
corrompendo estruturas nascentes.
O asco
manifesto espasmódico da revolta
tornou-me a ameaça belicosa
removida sob escolta
em engenhosa encenação.

Refiz-me
a compleição feroz ‒ escudo ‒
foi craquelando pelo riso.
Agora o frio entra pelas trincas
quando a diviso.
Às vezes através da madeira
um pressentimento encarna em arrepio
todavia ela não entra.
É a maneira descarnada da sombra
que penetra o cristal e puxa o fio
de uma multiplicidade virtual.

O tremor que fissura de dentro
e o comichão nas falanges miúdas
esmorecem nas gretas do silêncio.
Ela sabe que a ossatura range,
estala, rodopia e não desaba
como eu sei
que uma legião de vultos
não faz uma diaba.

Dia Internacional da Água

As águas sensuais de Neruda

Água, líquido incolor, inodoro e insípido – esta a definição que aprendemos na escola sobre o precioso elemento da natureza, um dos quatro fundamentais, segundo os antigos alquimistas – junto ao fogo, o ar e a terra. Se pensarmos bem, ela é o mais importante, pois sem ela não há vida. Dela nascemos, não do pó da terra, e sem ela morreremos. Ela oxigena o ar, alimenta a terra e ai do fogo que se intrometer, pois ela é capaz de extingui-lo.

Dizem que será mais preciosa que o petróleo, que o próprio ouro. E guerras já se fazem para disputá-la (atenção aos governadores Alckmin e Cabral, que ensaiam brigas pelas águas do rio Paraíba do Sul, face à seca que acomete a região Sudeste), principalmente em regiões onde ela escasseou e desertificou imensas áreas. Diz a UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) que a cada 15 segundos uma criança morre, no mundo, de doenças relacionadas à falta de água potável, de saneamento e de condições de higiene. Mesmo o Brasil, rico em água potável, convive com a morte infantil causada por sua falta.

No dia 22 de março comemorou-se o Dia Mundial da Água, que se seguiu aos dias da Poesia e das Árvores/Florestas. Mas água também tem poesia e é indispensável para as plantas. Apesar das 24 horas de atraso, vamos lembrá-la com um belo poema de Neruda.

agua sexual

Pablo Neruda

Rodando a goterones solos,
a gotas como dientes,
a espesos goterones de mermelada y sangre,
rodando a goterones,
cae el agua,
como una espada en gotas,
como un desgarrador río de vidrio,
cae mordiendo,
golpeando el eje de la simetría, pegando en las costuras del
alma,
rompiendo cosas abandonadas, empapando lo oscuro.

Solamente es un soplo, más húmedo que el llanto,
un líquido, un sudor, un aceite sin nombre,
un movimiento agudo,
haciéndose, espesándose,
cae el agua,
a goterones lentos,
hacia su mar, hacia su seco océano,
hacia su ola sin agua.

Veo el verano extenso, y un estertor saliendo de un granero,
bodegas, cigarras,
poblaciones, estímulos,
habitaciones, niñas
durmiendo con las manos en el corazón,
soñando con bandidos, con incendios,
veo barcos,
veo árboles de médula
erizados como gatos rabiosos,
veo sangre, puñales y medias de mujer,
y pelos de hombre,
veo camas, veo corredores donde grita una virgen,
veo frazadas y órganos y hoteles.

Veo los sueños sigilosos,
admito los postreros días,
y también los orígenes, y también los recuerdos,
como un párpado atrozmente levantado a la fuerza
estoy mirando.

Y entonces hay este sonido:
un ruido rojo de huesos,
un pegarse de carne,
y piernas amarillas como espigas juntándose.
Yo escucho entre el disparo de los besos,
escucho, sacudido entre respiraciones y sollozos.

Estoy mirando, oyendo,
con la mitad del alma en el mar y la mitad del alma
en la tierra,
y con las dos mitades del alma miro al mundo.

y aunque cierre los ojos y me cubra el corazón enteramente,
veo caer un agua sorda,
a goterones sordos.
Es como un huracán de gelatina,
como una catarata de espermas y medusas.
Veo correr un arco iris turbio.
Veo pasar sus aguas a través de los huesos.

Dia Mundial da Água

ÁGUA SEXUAL

Rodando em solitárias goteiras,
em gotas como dentes,
em espessas goteiras de geleia e sangue,
rodando em goteiras,
cai a água,
como uma espada em gotas,
como um desgarrador rio de vidro,
cai mordendo,
golpeando o eixo da simetria, grudando nas costuras da alma,
rompendo coisas abandonadas, empapando o escuro.

Somente é um sopro, mais úmido que o pranto,
um líquido, um suor, um óleo sem nome,
um movimento agudo,
fazendo-se, espessando-se,
cai a água,
em goteiras lentas,
rumo a seu mar, até se seco oceano,
até sua onda sem água.

Vejo o verão extenso, e um estertor saindo de um silo,
adegas, cigarras,
populações, estímulos,
habitações, meninas
dormindo com as manos no coração,
sonhando com bandidos, com incêndios,
vejo barcos,
vejo árvores de medula
eriçados como gatos raivosos,
vejo sangue, punhais e meias de mulher,
e cabelos de homem,
vejo camas, vejo corredores onde grita uma virgem,
vejo cobertores e órgãos e hotéis.

Vejo os sonhos sigilosos,
admito os pósteros dias,
e também as origens, e também as lembranças,
como uma pálpebra atrozmente levantada a força
estou olhando.

E então há este som:
um ruído escarlate de ossos,
um grudar-se de carne,
e pernas amarelas como espigas a se juntar.
Eu escuto entre o disparo dos beijos,
escuto, sacudido entre respirações e soluços.

Estou olhando, ouvindo,
com a metade da alma no mar e a metade da alma
na terra,
e com as duas metades da alma olho o mundo.

E ainda que feche os olhos e me cubra o coração inteiramente,
vejo cair uma água surda,
em goteiras surdas.
É como um furacão de gelatina,
como uma catarata de espermas e medusas.
Vejo correr um arco íris turvo.
Vejo passar suas águas através dos ossos.

Tradução e ilustração de Cleto de Assis