Arquivo do dia: 22 de março de 2012

A água inerte de Gabriela

Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga, nascida em Vicuña, Chile, a 7 de abril de 1889, escolheu um nome mais curto para assinar seu belo trabalho poético. Gabriela Mistral foi o nome que se notabilizou e alcançou o prêmio Nobel de Literatura de 1945, antes mesmo de seu patrício e colega Pablo Neruda, que o ganhou em 1971. E Mistral por quê? É o nome de um vento típico do sul da França, também chamado de vento de Outono, que transporta ar de alta densidade pelas colinas abaixo. Um vento catabático (do grego katabatikos, descendo colinas). Gabriela soube domá-lo e com ele cavalgar pelo reino da Poesia, ora a fazer emergir o amor, outras vezes a extrair emoções da memória, cheias de dor e mágoa. Mas Gabirela Mistral também cantou os elementos vitais e a própria água. Neste Dia Internacional da Água, lembramos um de seus belos poemas, em que observa a chuva, “este fino pranto amargo” que verte sobre a terra.

LA LLUVIA LENTA

Esta agua medrosa y triste,
como un niño que padece,
antes de tocar la tierra
……….desfallece.

Quieto el árbol, quiero el viento,
¡y en el silencio estupendo,
este fino llanto amargo
……….cayendo!

El cielo es como un inmenso
corazón que se abre, amargo.
No llueve: es un sangrar lento
……….y largo.

Dentro del hogar, los hombres
ni sienten esta amargura,
este envío de agua triste
……….de la altura.

Este largo y fatigante
descender de agua vencida.
hacia la Terra yacente
……….y transida.

Bajando el agua inerte,
callada como un ensueño,
como las criaturas leves
……….de los sueños.

Llueve… y como chacal lento
La noche acecha en la tierra.
¿Qué va a surgir, en la sombra,
……….de la Tierra?

¿Dormiréis, mientras afuera
cae, sufriendo, esta agua inerte,
esta agua letal, hermana
……….de la Muerte?

A CHUVA LENTA

Trad. de Ruth Sylvia de Miranda Salles

Esta água medrosa e triste,
como criança que padece,
antes de tocar a tierra,
……….desfalece.

Quietos a árvore e o vento,
e no silêncio estupendo,
este fino pranto amargo,
……….vertendo!

Todo o céu é um coração
aberto em agro tormento.
Não chove: é um sangrar longo
……….e lento.

Dentro das casas, os homens
não sentem esta amargura,
este envio de água triste
……….da altura;

este longo e fatigante
descer de água vencida,
por sobre a terra que jaz
……….transida.

Em baixando a água inerte,
calada como eu suponho
que sejam os vultos leves
……….de um sonho.

Chove… e como chacal lento
a noite espreita na serra.
Que irá surgir na sombra
……….da Terra?

Dormireis, quando lá foram
sofrendo, esta água inerte
e letal, irmã da Morte
……….se verte?

Dia Internacional da Síndrome de Down

Um Príncipe sonhador

Hoje também se faz homenagem aos portadores da síndrome de Down, desde 2006, após proposta da Down Syndrome International, uma organização filantrópica inglesa. Em suas vidas de permanente superação, embora limitados por sua condições congeniais, essas encantadoras criaturas, as quais sempre associo com o afeto natural e a permanente alegria, nasceram para nos dar lições. Seus grandes esforços e sensibilidade têm revelado dotes artísticos que podem ser invejados por muitos daqueles que se consideram “normais”. Como o poeta escolhido pelo Banco da Poesia, aluno de uma APAE, que percebe o que é a linguagem poética e com ela se expressa no singelo poema aqui publicado. O autor tem, hoje, mais de 30 anos, embora seu desenvolvimento mental, segundo seus professores, seja comparável ao de uma pessoa de 15 anos. E não é fantástico e invejável ter sempre 15 anos?

Ilusões do Amanhã

Por que eu vivo procurando um motivo de viver,
Se a vida às vezes parece de mim esquecer?
Procuro em todas, mas todas não são você.
Eu quero apenas viver, se não for para mim que seja pra você.
Mas às vezes você parece me ignorar, sem nem ao menos me olhar,
Me machucando pra valer.
Atrás dos meus sonhos eu vou correr.
Eu vou me achar, pra mais tarde em você me perder.
Se a vida dá presente pra cada um,
o meu, cadê?
Será que esse mundo tem jeito?
Esse mundo cheio de preconceito.
Quando estou só, preso na minha solidão,
Juntando pedaços de mim que caíam ao chão,
Juro que às vezes nem ao menos sei, quem sou.
Talvez eu seja um tolo,
Que acredita num sonho.
Na procura de te esquecer,
Eu fiz brotar a flor.
Para carregar junto ao peito,
E crer que esse mundo ainda tem jeito.
E como príncipe sonhador…
Sou um tolo que acredita, ainda, no amor.

Príncipe Poeta (Alexandre Lemos – APAE)

Dia Mundial da Poesia

A sempiterna Poesia

Hoje se comemora o Dia Mundial da Poesia, instituído pela Unesco em 16 de Novembro de 1999. O Banco da Poesia também se une às comemorações com excertos de um texto primevo, considerado a mais antiga obra literária da humanidade, a Epopeia de Gilgamesh, igualmente conhecida como Poema de Gilgamesh. Supõem-se que ela tenha sido escrita há mais de 2.500 anos a.C., embora a forma que nos chegou esteja registrada no Séc. VII a.C.  São inúmeras tablitas de barro, com escrita cuneiforme, boa parte das quais foram conservadas e possibilitaram a divulgação do texto nas linguagens ocidentais. Existe uma versão em Português, ainda inédita, feita pelo professor Emanuel Bouzon (1933-2006). Muitos trabalhos já foram escritos no Brasil sobre a obra de Gilgamesh, baseadas em versões editadas em outros idiomas.

Gilgamesh foi um rei sumério, cuja vida é semi-lendária, que se tornou conhecido por ser o protagonista da sua Epopeia. Ele teria sido o quinto rei da primeira dinastia de Uruk, que existiu cerca de 2750 a.C. Seu reinado teria durado 126 anos e as lendas que se criaram em torno dele levaram-no a ser considerado uma divindade, cujos feitos influenciaram as sucessivas religiões da região mesopotâmica, inclusive o judaísmo.

Segundo artigo publicado na Wikipédia, existem especulações dos estudiosos sobre a influência da Epopeia de Gilgamesh “sobre textos mais difundidos e conhecidos pela humanidade, como os poemas épicos gregos Ilíada e Odisséia de Homero, escritos entre VIII e VII a.C.  A polêmica é ainda maior” quando comparada “às narrativas do Pentateuco, a parte mais antiga do Velho Testamento, datadas do Primeiro Milênio a.C.” Com relação à Bíblia judaica, “além de semelhanças impressionantes,” há clara afinidade com “o próprio contexto histórico e geográfico”, pois não se desconhece “que a origem dos hebreus e das grandes civilizações semitas” é mesclada “com a própria história do povo sumério. Históricos períodos de cativeiro, onde a aculturação era, além de inevitável pelas circunstâncias de sobrevivência, uma forma de dominação ideológica”.

Em seu final, a Epopeia centra-se na dor de Gilgamesh pela morte de Enkidu, um dos personagens principais da obra. Essa emoção o faz seguir um busca compulsiva pela imortalidade. Gilgamesh quer descobrir o segredo da vida eterna e consulta Utnapishtim, o herói imortal do dilúvio. Mas o sábio responde às suas indagações com uma afirmação que até hoje preocupa a humanidade: “A vida que você procura nunca encontrará. Quando os deuses criaram o homem, reservaram-lhe a morte, porém mantiveram a vida para sua própria posse.”

Fragmentos da Epopeia de Gilgamesh

“A deusa então concebeu em sua mente uma imagem cuja essência era a mesma de Anu, o deus do firmamento. Ela mergulhou as mãos na água e tomou um pedaço de barro; ela o deixou cair na selva, e assim foi criado o nobre Enkidu.”

•••••••••••••••••

“Ele era inocente a respeito do homem e nada conhecia do cultivo da terra. Enkidu comia grama nas colinas junto com as gazelas e rondava os poços de água com os animais da floresta; junto com os rebanhos de animais de caça, ele se alegrava com a água.”

•••••••••••••••••

“Enkidu perdera sua força pois agora tinha o conhecimento dentro de si, e os pensamentos do homem ocupavam seu coração.”

•••••••••••••••••

“… tu, um mercenário, que depende do trabalho para obter teu pão!”

•••••••••••••••••

“Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: ‘O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.’ Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana.”

•••••••••••••••••

“Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra, e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração”.

•••••••••••••••••

… põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar. Põe abaixo tua casa, eu te digo, e constrói um barco. Eis as medidas da embarcação que deverás construir: que a boca extrema da nave tenha o mesmo tamanho que seu comprimento, que seu convés seja coberto, tal como a abóbada celeste cobre o abismo; leva então para o barco a semente de todas as criaturas vivas. (…) Eu carreguei o interior da nave com tudo o que eu tinha de ouro e de coisas vivas: minha família, meus parentes, os animais do campo – os domesticados e os selvagens – e todos os artesãos.”

•••••••••••••••••

São claras as semelhanças entres textos sumérios e as narrativas da Gênese bíblica, principalmente quando se referem ao dilúvio universal, a indicar que, muitas vezes, a poesia, sempre repleta de sonhos humanos, é mais consistente que a própria história, ou, em outras palavras, a História sempre se aferrará à materialidade dos fatos, enquanto a Poesia tem o poder de, sem perder sua magia, tornar-se registro factual para muitas culturas. (C. de A.)