Arquivo do dia: 12 de novembro de 2011

Carícias e palavras acariciantes de Alfonsina

Um mês após a morte de Alfonsina Storni (Argentina,  1892 – 1938), intencionalmente buscada em uma praia de Mar del Plata, um senador seu compatriota a homenageou com estas palavras: «Nosso progresso material assombra a nós e a estranhos. Construímos urbes imensas. Centenas de milhões de cabeças de gado pastam na imensurável planície argentina, a mais fecunda da terra; mas frequentemente subordinamos os valores do espírito aos valores utilitários e não conseguimos, com toda nossa riqueza, criar una atmosfera propícia onde pode prosperar essa planta delicada que é um poeta».

Não serão, certamente, as palavras momentaneamente sábias de um político que farão prosperar o jardim da poesia. As flores sempiternas são os poemas que se produzem e se reproduzem sem cansar ou corromper ouvidos e corações. Alfonsina se foi muito cedo, afogada em água e amor transbordante. E deixou-nos suas belas palavras, suas plantas delicadas, flores, muitas flores.

Para ver mais de Alfonsina, no Banco da Poesia, clique aqui e aqui.

Alfonsina y la mar Banco da Poesia

Ilustração de C. de A. sobre uma foto de Pilar Azaña (Espanha)

La caricia perdida

Se me va de los dedos la caricia sin causa,
se me va de los dedos… En el viento, al pasar,
la caricia que vaga sin destino ni objeto,
la caricia perdida ¿quién la recogerá?

Pude amar esta noche con piedad infinita,
pude amar al primero que acertara a llegar.
Nadie llega. Están solos los floridos senderos.
La caricia perdida, rodará… rodará…

Si en los ojos te besan esta noche, viajero,
si estremece las ramas un dulce suspirar,
si te oprime los dedos una mano pequeña
que te toma y te deja, que te logra y se va.

Si no ves esa mano, ni esa boca que besa,
si es el aire quien teje la ilusión de besar,
oh, viajero, que tienes como el cielo los ojos,
en el viento fundida, ¿me reconocerás?

A carícia perdida

Vai-se de meus dedos a carícia sem causa,
vai-se dos dedos… No vento, ao passar,
a carícia que vaga sem destino nem objeto,
a carícia perdida, quem a recolherá?

Pude amar esta noite com piedade infinita,
pude amar o primeiro que acertasse em chegar.
Ninguém chega. Estão sós os floridos caminhos.
A carícia perdida, rodará… rodará…

Se nos olhos te beijam esta noite, viajante,
se estremece os ramos u. doce suspirar,
se te oprime os dedos uma pequena mão
que te toma e te deixa, que te alcança e se vai.

Se não vês essa mão, nem essa boca que beija,
se é o ar quem tece a ilusão de beijar,
oh, viajante, que tens como o céu os olhos,
no vento fundida, me reconhecerás?

Dos palabras

Esta noche al oído me has dicho dos palabras
comunes. Dos palabras cansadas
de ser dichas. Palabras
que de viejas son nuevas.

Dos palabras tan dulces que la luna que andaba
filtrando entre las ramas
se detuvo en mi boca. Tan dulces dos palabras
que una hormiga pasea por mi cuello y no intento
moverme para echarla.

Tan dulces dos palabras
?Que digo sin quererlo? ¡oh, qué bella, la vida!?
Tan dulces y tan mansas
que aceites olorosos sobre el cuerpo derraman.

Tan dulces y tan bellas
que nerviosos, mis dedos,
se mueven hacia el cielo imitando tijeras.
Oh, mis dedos quisieran
cortar estrellas.

Duas palavras

Esta noite ao ouvido me disseste duas palavras
comuns. Duas palavras cansadas
de ser ditas. Palavras
que de tão velhas são novas.

Duas palavras tão doces que a lua que andava
filtrando-se entre a ramagem
se deteve em minha boca. Tão doces duas palavras
que uma formiga passeia por meu pescoço e não tento
mover-me para expulsá-la.

Tão doces duas palavras
que digo sem querer: oh, que bela, a vida!
Tão doces e tão mansas
que óleos aromáticos sobre o corpo derramam.

Tão doces e tão belas
que, nervosos, meus dedos,
Se movem em direção ao céu, a imita tesouras.
Oh, meus dedos quiseram
cortar estrelas.

(Versões de C. de A.)

Frederico Füllgraf & Lili Marleen, a repercussão

O escritor, tradutor e roteirista Frederico Füllgraf, que felizmente habita entre nós, fez longa pesquisa sobre o mito de Lili Marleen, mais conhecida entre nós, na segunda guerra Mundial, como Lili Marlene, título de uma canção nazista que contagiou os soldados de todas as nações – amigas e inimigas – envolvidas naquele conflito, inclusive os brasileiros. Seu trabalho foi ricamente comentado pelo também nosso amigo Manoel de Andrade, merecidamente reproduzido no blog do jornalista Luiz Nassif. Vamos igualmente reproduzir a análise de Manoel, na qual ele realça a grande ironia criada por aquela canção: descobriu-se, mais tarde, que a musa que a inspirou era judia… Se você gostar do aperitivo de Manoel de Andrade, beba a água na fonte: acesse o Fulfrafianas e leia o trabalho de Frederico, dividido em três partes – (1-3), (2-3) e (3-3). Vale a pena. E após degiustar o apweritivo e o prato principal, veja e ecute, como sobremesa, as versões de Lili Marleen, em Alemão e Inglês, cantadas por Marlene Dietrich.

Sobre a Lilli Marleen de Frederico

Por Manoel de Andrade, poeta e ensaísta

Eu já tinha ouvido “Lilli Marleen” na voz de Marlene Dietrich, mas não imaginava que aquele poema, transformado em música, tivesse uma trajetória tão fantástica e nem que Hans Leip tivesse sido um escritor tão fecundo. Quantos vultos famosos da história europeia estiveram, direta ou indiretamente, relacionados com essa célebre canção!!! A  interculturalidade com que o texto é escrito leva-nos a caminhar pelos fronts históricos e geográficos da Segunda Grande Guerra, bem como pelos seus bastidores,  chocando-nos com o terror da censura nazista sobre a cultura. Era a ironia da própria guerra trazendo, depois do bombardeiro alemão de Belgrado, o som radiofônico de uma canção ouvida e apreciada, a despeito da proibição de Goebbels, pelo prestígio do General  Rommel e seus soldados nas areias da África. Como um rastilho de pólvora a parceria poético-musical Leip&Shultze começa correndo acesa, no idioma de Goethe, pelas trincheiras nazistas e aliadas, mas seu encantamento vai explodir também nos ouvidos dos soldados russos.

O rigor intelectual com que Frederico Füllgraf vasculhou e constatou, pela crítica documental de suas fontes, a autenticidade dos fatos, conduz o leitor pelos estranhos atalhos desse fantástico fenômeno musical, para nos apresentar uma admirável pesquisa sobre quase um século de vida do tão discutido poema-musical alemão. Seu ensaio envolve-nos com a história do um jovem soldado, saudoso da namorada, que lhe inspira, no campo de batalha, seus primeiros versos. Esse romântico enredo de guerra lembra o grande poema “Espera-me” que o poeta e dramaturgo russo Konstantin Simonov, escreveu, em 1941, no front de guerra contra os alemães à sua querida Valentina Serova. Traduzido para muitos idiomas, e para o português, com incomparável beleza lírica, por Hélio do  Soveral, Espera-me  ou Espera por mim é um dos mais conhecidos poemas da Rússia. A sensibilidade de Cleto de Assis escreveu a essência comovente dessa história no seu site Banco da Poesia:

https://cdeassis.wordpress.com/2009/06/19/poema-de-amor-e-guerra/

Abro aqui um parêntesis, fugindo do estrito significado musical do texto, para considerar as grandes motivações que o fenômeno da guerra tem trazido à criação poética e musical, propiciando produções ou veiculando versos de infinita beleza. Por certo a Ilíada e a Odisseia não existiriam sem a Guerra de Troia, nem a Itália teria seu grande poema épico se o início das Cruzadas não inspirasse Torquato Tasso a escrever Jerusalém Libertada. A Chanson d’Automne, de Paul  Verlaine, não seria tão conhecida se não fosse  enviada também por rádio, como uma senha, à Resistência Francesa anunciando o desembarque aliado na  Normandia e determinando o fim do Terceiro Reich, que pretendia durar mil anos. Que honra maior poderia ter um poema, abrindo com o lirismo e o suave encanto dos seus versos, as portas da liberdade do continente europeu dominado pelo nazismo?  E neste contexto as comparações se derivam para as canções que inspiraram a resistência revolucionária nas guerras civis que abalaram o mundo e se celebrizaram com o nome Marselhesa, na França revolucionária e como  Le chant des Partisans, entoado pela Resistência, na França invadida pelos exército alemão. Com o mesmo ardor  se cantava Se me quieres escribir e Viva la Quinta Brigada, na Guerra Civil Espanhola. E assim foi, ao som da Bandiera  Rossa e Bella Ciao na Itália,  Nicaragua Nicaraguita, cantada pelos sandinista, Venceremos, no Chile socialista, onde Viva Chile Mierda, de Fernando Alegria, foi o poema mais declamado durante o governo de Salvador Allende.  Aqui, no Brasil, a canção Caminhando, de Geraldo Vandré, foi o hino revolucionário com que a nação inteira  protestou, cantando, contra a ditadura militar.

Voltando à história sentimental do soldado Hans Leip e seu poema, e considerando a amplitude do texto, creio ser interessante repicar, neste comentário, alguns aspectos marcantes no longo artigo de Frederico Füllgraf.  Primeiramente o encanto musical das emissões diárias da “canção de um jovem sentinela” pela rádio de Belgrado, polarizando a longínqua atenção dos soldados alemães no norte da África. A transmissão, captada também na região pelos soldados britânicos, levou o orgulho militar inglês, sob o comando de Montgomery,  a criar uma sarcástica versão política de “Lilli Marleen” ironizando Hitler  e o partido nazista. O autor nos fala da canção na voz radiofônica da BBC e de meio milhão de discos vendidos, em 1944, na Inglaterra e sua versão adaptada para 50 idiomas. Detalha a biografia conturbada e trágica de Lale Andersen e depois sua turnê pela Coréia e Indochina.  A segunda grande intérprete da canção é Lucie Mannnheim, chegando enfim a Marlene Dietrich, que foi a mascote musical dos aliados correndo os Estados Unidos e a Europa com “Lilli Marleen” nos lábios e as grandes platéias aos seus pés. Os intérpretes da famosa canção se sucedem, no incrível caleidoscópio de informações – que transpiram normalmente por todos os neurônios do Frederico que conhecemos, – passando por Edith Piaf e Bing Crosby, e por interpretações contemporâneas  na voz da cantora francesa   Patrícia Kaas, comemorando, em 2005, os 60 anos do Dia “D”.

O texto, entre outras tantas revelações e curiosidades, traz uma passagem pitoresca envolvendo Winston Churchill e seu pesadelo com o General Rommel, em torno da sua preferência pela canção. Refere-se também a uma misteriosa versão judaica feita por Stefan Zweig. O ponto alto do texto é a referência a uma edição de 2006 do livro em que a autora, Lilly Freud Marlé,  sobrinha de Freud, revela ser a pessoa que inspirou Hans Leip a escrever o poema que gerou a composição musical “Lilli Marleen”, versão reiterada por outros descendentes de Freud.

Finalmente é surpreendente constatar que as sementes lançadas há noventa e cinco anos por um simples poema que se tornou canção, tenha se aberto em tantas flores musicais pelos idiomas do mundo inteiro, inclusive uma versão judaica de nome Lili, em homenagem à pára-quedista  Hannah Senesh, morta em Budapeste pela Gestapo,  e geram ainda, ano a ano, tantos frutos “saborosos” para a viúva de Leip e mantenham repletos os celeiros amoedados do compositor Norbert Schultze.

Parabenizando o autor pela dimensão crítica e historiográfica do seu trabalho,  ressalto as duas ironias genialmente bem colocadas: a primeira que “Lilli Marleen” foi a única contribuição dos nazistas para o mundo”. E a segunda ironizando a primeira: que uma musa judia seria a inspiradora da mais célebre canção nazista.

Lil Marleen – original em Alemão

Lili Marleen – versão em Inglês