Coma / j.b. vidal
nasço e inauguro em mim a trajetória da morte,
início e fim, siameses do útero à campa,
como fonte, me insurjo, resisto,
consciente de sua presença, prossigo
sepultado vivo na matéria,
com a alma esgarçada na miséria
de um momento que ela mesma desconhece,
não há passado para o início não haverá futuro para o fim,
o que será dos meus pensares?
da razão? o que ficará dos sentidos?
das agonias, dos sofreres,
dos sentimentos, penso profundos,
o que será dos meus saberes?
não me falem de exemplos,
experiências, conhecimentos,
como óbolos para quem vem a seguir,
para eles há futuro, esquecer.
não me venham com alegorias cenobitas,
relações de fé-imagem, palavras-reveladoras,
crenças obtusas oferecidas em sacras mansões, não!
digam apenas que estou louco,
que me debato em trevas,
que abreviei a trajetória,
que vivo morto por querer viver depois…
verão/2003
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Ilustração: C. de A.
Essa soberana linguagem poética. Essa simbologia escatológica. Essa maestria com as metáforas. Este é poeta João Bosco Vidal que conheço e admiro.
Parece que em sua alma de poeta a irreverência está perdendo espaço para a ciência do espírito. Neste poema ele canta o que no fundo todos sabemos: que estamos “sepultado vivos na matéria”, vivendo neste vale de lágrimas com “a alma esgarçada na miséria” de um mundo estruturado no orgulho e no egoismo, na aparência e no hedonismo.
Esta futura Ciência do Espírito, para a qual estamos caminhando, já nos comprovou que o mundo em que vivemos é o mundo ilusório e que há uma outra real dimensão da vida, cuja geografia é muito diferente dessa panacéia celestial que herdamos das religiões oficiais. É essa ciência que não agride nossa racionalidade afirmando que este é o mundo dos efeitos e que lá é o mundo das causas. Aqui somos passageiros de um veículo onde “nascemos para inaugurar a trajetória da morte” num corpo de envelhece, adoece e realmente morre, enquanto o modelo pré-existente e sobrevivente, que o organizou fisiologicamente, volta para o Mundo Maior, depois de mais um período de estudos e provas na escola planetária. Perdoem-me, este tom professoral não é meu estilo, mas é indispensável para interpretar o que há de escondido no misterioso significado das metáforas usadas pelo poeta. Seus últimos cinco versos atestam sua percepção espiritual. Sua racionalidade ante um clericalismo infantil e alienante, sua lírica e iluminada loucura debatendo-se pelos obscuros caminhos do mundo e essa ânsia de partir, de “abreviar sua trajetória”, porque “vive morto por querer viver depois”, numa dimensão de sobrevivência que não conhece mas cuja realidade intuitivamente pressente. Assim são os poetas, estes seres mágicos, tocados pelo encanto, que trazem no segredo das palavras o significado da beleza, da verdade e da imortalidade.
Meu querido amigo,
Este poema, escrito em 2003, evidencia bem o quanto, nessa altura, você ainda se debatia na procura dum outro espaço, que não esse em que se encontrava encerrado, debatendo-se unicamente com todos os mistérios da nossa matéria corpórea. O que lhe provocava decerto a expressão poética dum caso humano: sentimentos de infelicidade, de incertezas. Mas sendo você, querido Vidal, um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela inspiração, o percurso, ao longo destes anos, ajudou-o a encontrar um caminho mais curto, que o está a conduzir ao porto certo, ao porto seguro: o caminho da espiritualidade, essa valiosa intuição que o verdadeiro mundo, o nosso mundo, fica mais Além…
Esta é a leitura que faço da sua trajectória poética, do seu amadurecimento, até ao culminar dos seus mágicos ”Ofertórios” que considero quase que o expoente máximo da arte de se fazer poesia.
Gostei muito deste poema, aliás, como gosto de tantos outros de sua autoria. Parabéns.
Abraço grande
Vera Lucia