Quando a segunda revolução industrial, ocorrida na última metade do Séc. XIX, passou a incorporar a mão-de-obra feminina, principalmente nas indústrias têxteis, as condições de trabalho insalubre e extensiva carga horária ficaram mais visíveis e protestos se originaram em todo o mundo, já carregado por inflamadas polêmicas políticas sobre a nova economia. No dia 8 de março de 1857, um movimento de operárias de Nova Iorque foi duramente reprimido. As mulheres revoltosas – que exigiam redução do tempo de trabalho de 16 para dez horas diárias e correções salariais – foram mantidas presas dentro de uma fábrica a seguir incendiada. Cerca de 130 tecelãs morreram carbonizadas.
A ocorrência, lastimável sob todos os ângulos, ficou apenas como registro histórico por mais de 50 anos, quando foi proposta na Dinamarca, em 1910, o seu posicionamento como marco do Dia Internacional da Mulher, que passou a ser comemorado praticamente em todo o mundo. Segundo palavras de Leon Trótski, um dos artífices da fase inicial da revolução russa de 1917, esse dia foi o verdadeiro estopim da revolução: “ Em 23 de fevereiro (8 de março no calendário gregoriano) estavam planejadas ações revolucionárias. Pela manhã, a despeito das diretivas, as operárias têxteis deixaram o trabalho de várias fábricas e enviaram delegadas para solicitarem sustentação da greve. Todas saíram às ruas e a greve foi de massas. Mas não imaginávamos que este ‘dia das mulheres’ viria a inaugurar a revolução”.
Finalmente, em 1975 as Nações Unidas adotaram a data oficialmente, para celebrar as conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres, mas também para recordar as muitas discriminações e violências a que estão ainda sujeitas em várias partes do mundo.
Hoje o Dia Internacional da Mulher gera apenas reportagens especiais nas televisões, artigos nos jornais, discursos políticos nas tribunas, talvez sermões apropriados nos templos. As floriculturas venderão um pouco mais de flores e pronto: cumpridas as missões, esperaremos até o próximo ano para repetirmos as comemorações.
Mas estaremos realmente a refletir sobre o papel da mulher em nossa sociedade, a partir de sua função biológica mais sagrada, que é a de ser mãe de todos nós, e depois companheira de dores e alegrias, mestra das primeiras letras, objetivo quase único dos garotões adolescentes, figura complementar do homem no permanente jogo da vida?
Na sua egolatria, o homem chegou a pensar que a mulher fosse ser sem alma, criada apenas para servi-lo. E muitas mulheres, dentro dessa premissa mesquinha, foram sacrificadas, vilipendiadas, humilhadas. Com certeza, muitas vezes ainda assim são tratadas.
Por isso, neste cantinho dedicado à Poesia, fomos buscar uma rara mulher e poeta para homenagear a Mulher. Seu nome é Juana Inés de Asbaje y Ramírez de Santillana, entre tantas versões por aí existentes. Alguns a tratam apenas por Juana de Asbaje ou de Asuaje, pois há dúvidas sobre oi seu sobrenome. Popularmente, ela ficou conhecida como Sóror Juana Inés de la Cruz, após ter adotado a vida religiosa, primeiro com as rígidas Carmelitas, depois com as Jerônimas.
Parece evidente que a escolha pela vida do claustro não foi mais que uma proteção buscada em seu mundo barroco do Séc. XVII, na nascente colonização européia do México, entre os vestígios da civilização asteca e as limitações religiosas da sociedade espanhola. Juana teve a sorte de embrenhar-se, desde muito cedo, na leitura. Tinha apenas três anos quando aprendeu a ler e aos seis começou a escrever poemas. Por influxo de seu avô materno, com quem teve um intenso convívio na infância, entrou no reino do conhecimento como leitora voraz, passando a ler os clássicos gregos e romanos e a teologia daquele momento histórico. Aprendeu latim em vinte lições e praticamente sozinha dominou o idioma português, o que a tornou, mais tarde, leitora do padre Antonio Vieira e sua acérrima crítica. Conta-se que, ainda pequena, ficava escondida para ouvir as lições recebidas por sua irmã mais velha. Mas seu primeiro choque cultural foi quando descobriu que somente os homens podiam ingressar nas universidades. Ingenuamente, chegou a pedir para sua mãe que a vestisse com trajes masculinos para que pudesse continuar a estudar.
Por certo, sua adaptação cultural não foi fácil, mas ninguém conseguiu domar sua ânsia pelo saber: “Com a erudição acumulada durante anos de estudo, correspondia-se com os grandes nomes do mundo hispânico, tendo escrito até ao Papa. Sóror Juana escreveu literatura centrada na liberdade, o que era um prodígio naquela época. Em seu poema Hombres Necios ela defende o direito da mulher a ser respeitada como ser humano e critica o sexismo da sociedade do seu tempo, zombando dos homens que condenam a prostituição, ao mesmo tempo em que se aproveitam de sua existência. Além de livros religiosos como a Bíblia, que representavam certamente mais de 90 por cento dos livros que chegavam à América na época, há relatos de que ela possuía obras atípicas para um cidadão da América do século XVII, como escritos de Leibniz, dentre outros”.
“Seu confessor, o jesuíta Antonio Núñez de Miranda, recriminou-a por escrever, trabalho que acreditava ser vedado à mulher, o que, junto com o frequente contato com as mais altas personalidades da época, devido à sua grande fama intelectual, desencadeou a ira deste, diante da qual ela, sob a proteção da vice-rainha, Marquesa de Laguna, decidiu rejeitá-lo como confessor. Essa amizade com as vice-rainhas fica plasmada nos versos que, usando o código do amor cortês, levaram a uma interpretação errônea das mesmas a respeito de certas tendências homossexuais. Às duas que coincidiram temporalmente com ela escreveu poemas bastante inflamados e a uma dedicou um retrato e um anel. Foi precisamente uma das vice-rainhas a primeira a publicar poemas de Sóror Juana.”
Ela mesma chegou a confessar assexuação ou androginia, tal devia ser a confusão que os preconceitos e os sentimentos religiosos de culpa lhe causavam na alma:
“Pues no soy mujer que a alguno
de mujer pueda servirle
y solo sé que mi cuerpo ,
Sin que a uno u otro se incline
Es neutro, o abstracto, cuanto
sólo el alma deposite”.
“Pois não sou mulher que a alguém
de mulher possa servir-lhe
e só sei que meu corpo ,
sem que a um ou outro se incline
é neutro, ou abstrato, quanto
só a alma deposite”.
Apesar das exegeses literárias e psicanalíticas que se fazem, atualmente, sobre sua vida e obra, a leitura de seus poemas torna nítida uma mulher ardente, ansiosa por amar e que tem que sublimar esse amor em fantasias poéticas e, a exemplo de outras religiosas, no amor místico a Deus e a Cristo.
Não foi à toa que escolheu a liberdade para tema de suas reflexões. Uma liberdade que se contrapunha à repressão social que lhe deve ter sido dolorosamente imposta.
A liberdade que a transformou, para os pósteros, na “Fênix Mexicana”, talvez a primeira feminista das Américas.
Amou a liberdade e o amor, sem nunca ter gozado realmente nenhum desses sentimentos em sua plenitude. Mas escreveu versos corajosos e enfrentou as contradições intelectuais, deixando um exemplo de vida de uma mulher que tudo tinha para apagar-se na mediocridade e na mentalidade machista de um tempo ainda com resquícios medievais, mas que ressurgiu do pó levantado pela ignorância.
Com o abraço do Banco da Poesia a todas as mulheres do mundo, publico alguns poemas seus. Os dois sonetos foram extraídos do livro O Amor é mais que um Labirinto, organizado por Germán Dehesa V., múltiplo ativista cultural mexicano, com prólogo de Margo Glantz, professora e escritora mexicana, e publicado pela empresa de telecomunicações Impsat, em 1998 . Traz excelentes ilustrações do artista mexicano Jorge Marín, o que o insere na estante dos livro de arte, de apurado bom gosto. Os sonetos levam os números originais da publicação. Já o poema Hombres Necios foi recolhido na Internet. Como a publicação traz os poemas na língua original, tratei de atrever-me na sua versão ao português. Os organizadores da edição referida atestam que, apesar do muitos contatos que Juana Inés teve, em sua época, com Portugal e com a língua portuguesa, ainda não foi feita “uma tradução da Obra Completa da escritora”. (C. de A.)
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XXVI
¿Vesme, Alcino, que atada a la cadena
de amor, paso en sus hierros aherrojada
mísera esclavitud, desesperada
de libertad y de consuelo ajena?
¿Ves de dolor y angustia el alma llena,
de tan fieros tormentos lastimada
y entre las vivas llamas abrasada
juzgarse por indigna de su pena?
¿Vesme seguir sin alma un desatino
que yo misma condeno por extraño?
¿Vesme derramar sangre en el camino,
siguiendo los vestigios de un engaño?
¿Muy admirado estás? Pues ves, Alcino,
más merece la causa de mi daño.
Vês-me, Alcino, que atada à cadeia
de amor, vivo em seu aço aferrolhada
mísera escravidão, desesperada
de liberdade e de consolo alheia?
Vês de dor e angústia a alma plena,
de tão ferozes tormentos lastimada
e entre as vivas chamas abrasada
julgar-se por indigna de uma pena?
Vês-me seguir sem alma um desatino
que eu devo condenar por inumano?
Vês-me esparramar sangue no destino,
seguindo os vestígios de um engano?
Mui admirado estás? Pois vês, Alcino,
mais merece a causa de meu dano.
IV
Esta tarde, mi bien, cuando te hablaba,
como en tu rostro y tus acciones vía
que con palabras no te persuadía,
que el corazón me vieses deseaba.
Y amor, que mis intentos ayudaba
venció lo que imposible parecía.
pues entre el llanto que el dolor vertía
el corazón deshecho destilaba.
Baste ya de rigores, mi bien, baste:
no te atormenten más celos tiranos
ni el vil recelo tu virtud contraste
con sombras necias, con indicios vanos,
pues ya en líquido humor viste y tocaste
mi corazón deshecho entre tus manos.
Esta tarde, meu bem, quando te falava,
como em teu rosto e tuas ações eu via
que com palavras não te persuadia,
que o coração me visses desejava.
E amor, que meus intentos ajudava
venceu o que impossível parecia.
pois entre o pranto que a dor vertia
o coração desfeito destilava.
Baste já de rigores, meu bem, baste:
não te atormentem mais zelos malsãos
nem vil receio teu puro ser contraste
com sombras néscias, com indícios vãos,
pois já em líquido humor viste e tocaste
meu coração desfeito entre tuas mãos.
Hombres necios
Arguye de inconsecuentes el gusto
y la censura de los hombres que en
las mujeres acusan lo que causan
Hombres necios que acusáis
a la mujer sin razón,
sin ver que sois la ocasión
de lo mismo que culpáis:
si con ansia sin igual
solicitáis su desdén,
¿por qué queréis que obren bien
si las incitáis al mal?
Combatís su resistencia,
y luego con gravedad
decís que fue liviandad
lo que hizo la diligencia.
Queréis con presunción necia
hallar a la que buscáis,
para pretendida, Tais,
y en la posesión, Lucrecia.
¿Qué humor puede ser más raro
que el que falta de consejo,
él mismo empaña el espejo
y siente que no esté claro?
Con el favor y el desdén
tenéis condición igual,
quejándoos, si os tratan mal,
burlándoos, si os quieren bien.
Opinión ninguna gana,
pues la que más se recata,
si no os admite, es ingrata
y si os admite, es liviana.
Siempre tan necios andáis
que con desigual nivel
a una culpáis por cruel
y a otra por fácil culpáis.
¿Pues cómo ha de estar templada
la que vuestro amor pretende,
si la que es ingrata ofende
y la que es fácil enfada?
Mas entre el enfado y pena
que vuestro gusto refiere,
bien haya la que no os quiere
y quejaos enhorabuena.
Dan vuestras amantes penas
a sus libertades alas,
y después de hacerlas malas
las queréis hallar muy buenas.
¿Cuál mayor culpa ha tenido
en una pasión errada,
la que cae de rogada
o el que ruega de caído?
¿O cuál es más de culpar,
aunque cualquiera mal haga:
la que peca por la paga
o el que paga por pecar?
Pues ¿para qué os espantáis
de la culpa que tenéis?
Queredlas cual las hacéis
o hacedlas cual las buscáis.
Dejad de solicitar
y después con más razón
acusaréis la afición
de la que os fuere a rogar.
Bien con muchas armas fundo
que lidia vuestra arrogancia,
pues en promesa e instancia
juntáis diablo, carne y mundo.
Homens néscios
Argúi como inconsequentes o gosto
e a censura dos homens que
nas mulheres acusam o que causam.
Homens néscios que acusais
à mulher sem ter razão,
sem ver que sois a ocasião
do mesmo que vós culpais:
se com ânsia sem igual
solicitais seu desdém,
por que quereis que obrem bem
se as incitais sempre ao mal?
Combateis sua resistência
e logo com gravidade
dizeis que foi leviandade
o que fez a diligência.
Quereis com presunção néscia
achar a que perseguis,
para pretendida, Taís,
e para a posse, Lucrécia.
Que humor pode ser mais raro
que o que falta de conselho
o mesmo que empana o espelho
e sente que não está claro?
Com o favor e o desdém
tendes a condição igual,
queixando-vos, se vos tratam mal,
burlando-vos, se vos tratam bem.
De opinião incongruente
pois a que mais se recata
se não vos admite, é ingrata
se vos admite, é impudente.
Sempre tão néscios andais
que com balança infiel
a uma culpais por cruel
e a outra por fácil culpais.
Pois como há de ser temperada
a que vosso amor pretende
se a que é ingrata ofende
e a fácil vos enfada?
Mas entre o enfado e a pena
que vosso gosto difere
bem haja a que não vos prefere
e queixai-vos em cantilena.
Dão as amantes apenadas
asas a tais liberdades
e enchei-as de bondades
após julgá-las malvadas.
Qual maior culpa há tido
em uma paixão errada
a que cai por ser rogada
ou o que roga por caído?
Ou qual é mais a culpar
com o sinal de uma chaga:
s que peca pela paga
ou o que paga por pecar?
Pois para que vos espantais
da culpa que mereceis?
Querei-as qual as fazeis
ou fazei-as tal as buscais.
Deixai de solicitar
e depois com mais razão
acusareis a aflição
da que os fora a rogar.
Bem com muitas armas fundo
que luta vossa arrogância
pois em promessa e em instância
juntais diabo, carne e mundo.
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Resumo biográfico
1648 (presumivelmente)– Juana Inés Ramírez nasce como filha ilegítima de uma família pobre da região rural de San Miguel Nepantla, México;
1656 – É mandada para a Cidade do México, parta viver com uma tia do lado materno; aprende Latim;
1664 – Ingressa na Corte, aos 16 anos, em virtude de sua prodigiosa inteligência e por sua beleza física;
1668 – Entre no Convento de San Jerónimo, aos 20 anos,; escreve muitos poemas, peças de teatro, estuda filosofia, música e ciências;
1691 – Escreve a famosa Respuesta a Sor Filotea, pseudônimo de um bispo católico com quem polemizou, defendendo o direito da mulher a estudar e escrever; recebe pressão da hierarquia eclesiástica para abandonar seus estudos;
1694 – Abjura, sob grande pressão, e é forçada a vender seus livros e instrumentos musicais e científicos;
1695 – Uma praga atinge seu convento; ela adquire a doença e morre a 17 de abril, com a idade presumida de 46 anos.
Juana Inês de La Cruz, que alma grandiosa, e que inacreditável precocidade. Era chamada a “Monja da Biblioteca” e possuía uma das maiores bibliotecas do seu tempo. É tida como a primeira grande poetiza da América. Em seu convento era visitada pelos grandes sábios da época.
Sua imagem intelectual e sua defesa dos direitos da mulher nos leva a Atenas do Séc. V a.C., onde Aspásia, segunda mulher de Péricles e grande amiga de Sócrates, reunia em sua casa os poetas, filósofos, amigos e admiradores. Intelectual brilhante quando a norma da época ditava que a mulher deveria se destacar pela invisibilidade e o silêncio, Aspásia teve uma forte influência nos destinos políticos da Grécia, quando Atenas era governada por Péricles. Sócrates a admirava pela “rara sabedoria política” e “pelo grande número de atenienses que com ela vinham aprender a arte da retórica”.
Cleto,
Ótima indicação e muito obrigado pela sua generosidade.
Grande abraço.
Amigos do banco de poesia, estou com lágrimas nos olhos em lendo este artigo, e ainda mais porque vocês sem saber me auxiliaram e muito em minha pesquisa sobre Soror Juana. Tenho certeza de que as informações que recolhi aqui serão de grande importância para meu trabalho de conclusão de curso. Gostaria que vocês me indicassem outras fontes de pesquisa sobre ela.
Muito obrigada e parabéns pelo artigo.
Grande abraço.
Boa noite amigos do Banco de Poesia. Tenho pesquisado Soror Mariana, pelo facto de ter adquirido uma publicação contendo a Redondilla ” Homens Néscios…..”, com aspeto de ser muito próximo da época da poetisa, talvez póstumo á sua morte. Vou procurar informação credível acerca do mesmo, nomeadamente junto da Torre do Tombo e da Biblioteca Nacional.
Caso alguém deste grupo tenha conhecimento para dar uma opinião, poderei enviar fotos da publicação.
Os meus cumprimentos e aguardo
Amandio Marecos