Manoel de Andrade navega em um mar de memórias

Travessia

 Manoel de Andrade, com seus bigodes zapatianos da juventude, passeia nas memórias marítimas de

Manoel de Andrade, com bigodes zapatianos, moldura de sua juventude, passeia nas recordações marítimas

A praia quase deserta
a manhã despertando na luz dos elementos
o céu e o mar buscando os seus azuis
as águas que se iluminam lentamente
o vôo preguiçoso das gaivotas
a serenidade de uma vela na distância
as ondas que se quebram mansamente
o enigma dessa paz que só o mar nos concede.

Meus olhos perscrutam o impossível
na invisível beleza marítima da vida.
Minha alma penetra no âmago majestoso da paisagem
e viaja longamente pelo instante mágico do tempo.

Mar, imenso mar
meu olhar flutua na imobilidade do teu corpo iluminado
nestas canoas batidas pela luz ao largo da baía
nestes pescadores curtidos pelo sol e pelo azul
a recolher, de longe em longe, seus frutos de escamas coloridas.
Beijo-te na salgada madeira destes barcos recolhidos,
te abraço no velho homem remendando sua rede.

Caminho neste estuante cenário de água e areia
recordo-me menino neste banquete de espumas flutuantes
na frescura das ondas que morrem aos meus pés
mergulho no teu ritmo
e danço contigo no encanto desta valsa milenar.

Atlântico, meu Atlântico
águas que não conheço nas distâncias do horizonte
esse mar visto apenas das areias
da foz exuberante das correntes
da barra destes rios que tu acolhes
águas fundas, águas rasas
águas doces que cruzei.

Recortados litorais do sul
meu norte
minha praia
meu idioma açoriano
meu salgado fruto
minha fritura, meu peixe, meu pirão
roteiro prematuro dos meus passos
itinerário incansável em meus pés descalços
íntimos recantos de baías e enseadas
antigo esconderijo dos corsários
história nas estórias de velhos habitantes.

Mar, imenso mar
planície total e palpitante
miragem e sedução
misteriosa superfície nos caminhos do destino
o mar de todas as proas
esse território dos meus sonhos.

Navegar, não naveguei…
as águas do Titicaca foram minha gota de oceano no alto da Cordilheira.
Navegar, como quisera navegar, nunca naveguei…
Rota costeira de Quayaquil a Callao,
minha única travessia
meu mar sem horizontes
minha comovida migalha de aventura.

Curitiba, março de 2004
Do livro Cantares, editora Escrituras, 2007


2 Respostas para “Manoel de Andrade navega em um mar de memórias

  1. ”Navegar, não naveguei…”
    Não concordo… O pouco que conheço de si, meu amigo, tem sido um navegar constante, em mares serenos ou revoltos, mas sempre um navegar constante, em busca de algum porto.
    Gostei muito deste poema meu amigo poeta/navegante.
    Um beijo.
    Vera Lucia

  2. Sim,Vera Lucia, um navegar constante, em busca de um porto, de uma ilha de sol, mas navegar, como quisera, literalmente, nunca naveguei. Naveguei altas montanhas, e entre duas Cordilheiras. Naveguei por verdes vales semeados, entre rebanhos de lhamas e alpacas nas trilhas do altiplano, naveguei os dias e as noites de um deserto, aportei em cidades fantasmas, cruzei minúsculos povoados e grandes metrópoles, atravessei densas florestas, perambulei por tantos portos, estive no convés de grandes navios mercantes , me deslumbrei com a chegada e a partida de tantos deles e naveguei pelo mundo inteiro a bordo dos meus versos como um grumete sonhador e como um “Um homem no Cais”. Cruzei os sete mares nas estrofes de “Marítimo”. Mas nunca fui além do cais porque encalhei nos seus bancos de areia e quebrei meu casco em seus costões escarpados. Navegar como quisera, literalmente, nunca naveguei.

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