Cleto de Assis
xxxxxxxIlustração: C. de A.
Um dia, não sei ao certo de que ano,
passei o dorso de minha mão em um rosto ferido
e meu gesto foi recebido como um imenso ato de ternura.
Assim foram muitos dos outros dias seguintes
até que o dia se tornou noite,
a ternura transmutou-se
em atos de extrema rudeza, quase morte.
O dorso de minha mão, minha mão inteira
e meu espírito todo
receberam a capa do tempo e incontáveis calos e cicatrizes.
De quando em quando, o consolo de um sonho melífluo, mas fugaz,
a reproduzir a ternura e os sabores e os perfumes
da intensa alegria de encontros furtivos
com direito a cantiga de roda.
xxxxxxxxNesta rua, nesta rua mora um anjo
xxxxxxxxque não veio, que não veio iluminar
xxxxxxxxa janela, a janela da esperança
xxxxxxxxe impediu, e impediu o amor de amar.
Quem dissecará comigo as sensações pessoanas
e olhará o mar com a certeza de que, além do horizonte,
há milhões de outros horizontes mais belos?
Quem aceitará voar comigo no céu sem fim
e catar estrelas, uma a uma,
para montar um grandioso colar de esperanças?
Quem conseguirá fazer-me companhia
para deslizar na suavimensa curva do infinito?
xxxxxxxxTinha um anjo, tinha um anjo nessa casa
xxxxxxxxque eu deixei, que eu deixei esvoaçar.
xxxxxxxxFoi-se a casa, o amor e mais o anjo
xxxxxxxxSó restou uma história pra contar.
E no fim da história
uma ternura tão suave e imensa
como o dorso de minha mão antiga.